Os EUA não se emendam
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- Luiz Eça
- 30/08/2013
Os EUA preparam-se para brindar o mundo com uma nova guerra do tipo da que moveram ao Iraque. Dentro de alguns dias (talvez até sexta, dia 30), eles devem atacar a Síria, sem provas e sem respeito às leis internacionais, como fizeram contra o país de Saddam Hussein.
Embora os EUA jurem ser incontestável a responsabilidade do governo sírio no bombardeio químico de Ghouta, os fatos não dizem o mesmo.
Obama e Kerry baseiam suas certezas apenas em vídeos e informações oferecidos pelos adversários do governo sírio, o Mossad e a CIA.
Os primeiros são evidentemente suspeitos. Quanto à CIA, não foi ela que forneceu a Bush “provas insofismáveis dos projetos militares nucleares do Iraque?”
Os argumentos contra a tese norte-americana são ponderáveis. Como Assad disse, jogando bombas químicas em Goutha, uma zona de guerra instável – ora ocupada por um lado, ora pelo outro –, seu governo estaria vitimando seus próprios soldados.
Além disso, agora que as tropas do governo estão ganhando em todos os fronts, seria absurdo, porque desnecessário, lançar mão das armas químicas.
Pior: seria um ato suicida, pois o uso das armas proibidas forneceria um bom pretexto para que EUA e aliados entrassem na guerra, com seu imenso arsenal bélico.
Especialistas em armas químicas duvidam das culpas do governo sírio, alegando que não possui o tipo de gás descrito pela mídia ocidental.
Um deles, Stephen Johnson, do Cranfield Forensic Institute, aponta inconsistências nos sintomas das vítimas. Ele nota detalhes ”hiper-realísticos”, que poderiam ter sido preparados para parecerem reais. Estranha o fato da espuma de certos corpos serem excessivamente brancas e puras, quando, em caso de envenenamento por gases, deveriam ser amareladas e sangrentas.
Apesar disso, Johnson não descarta totalmente as acusações; apenas tem sérias dúvidas a respeito.
Por sua vez, Assad afirma que tudo se trata de uma armação dos rebeldes exatamente para convencer o hesitante Obama a partir para ações radicais. E informa que soldados das tropas do governo, ao penetrarem em túneis em perseguição aos inimigos, teriam deparado com nuvens de gás que os lesionaram seriamente.
Os russos são adeptos da mesma teoria. E até apresentam uma possível prova: os vídeos mostrando centenas de presumíveis vítimas de gases foram colocados no You Tube algumas horas antes do ataque.
Para alguns analistas, há duas hipóteses até mais prováveis.
A primeira implica elementos linha-dura do cercle intime de Assad que, temendo a disposição do presidente de fazer concessões pela paz, ordenaram um bombardeio químico justamente para acirrar os ânimos de vez.
O contrário também é possível. Ou seja, grupos jihadistas – aliados do exército da Frente Nacional Síria – lançarem bombas químicas para jogar o Ocidente contra o governo de Damasco.
As dúvidas sobre a culpabilidade de Assad são reforçadas por Carla Del Ponte, membro da “Comissão de Inquéritos sobre a Síria”, da ONU, que declarou existirem fortes e concretas suspeitas – mas “provas ainda não incontroversas” – de que foram os rebeldes quem usaram gás sarim em Ghouta. Acha necessárias mais investigações, admitindo, inclusive, que possam surgir evidências contra Assad.
Para resolver a questão, seria necessário que a comissão de investigação da ONU fosse a Ghouta analisar os fatos. Inicialmente era o que os EUA defendiam.
Assad tinha de permitir a entrada da ONU na área bombardeada. Dois dias depois, o pedido formal da ONU foi entregue por Angela Kane, Alta Representante da ONU para Assuntos de Desarmamento, ao governo sírio.
Aí, surpresa!, Assad autorizou na hora. Nova surpresa: o governo Obama mudou de ideia.
John Kerry declarou que os EUA já estavam convencidos das culpas de Assad, sendo, portanto, inútil a investigação da ONU. E uma autoridade do departamento de Estado pressionou Ban-Ki-Moon, o secretário-geral da ONU, a cancelar a investigação, já que “não havia mais segurança para os inspetores permanecerem na Síria” (Wall Street Journal).
Kerry acrescentou que o governo sírio teria demorado (?) a aceitar a investigação de caso pensado – para que a passagem do tempo e os bombardeios sobre a região apagassem quaisquer vestígios químicos de suas perversas ações. Seria mais uma prova da culpa de Assad.
Mas o Secretário-Geral da ONU rejeitou a solicitação estadunidense: os inspetores da ONU continuariam seu trabalho.
Rebatendo Kerry, o porta-voz da ONU declarou ser plenamente possível encontrar evidências, apesar das condições aventadas pelos norte-americanos.
Ralph Trapp, consultor em proliferação de armas químicas e biológicas, atestou: “eles (os investigadores) podem, definitivamente, responder a questão da possível existência de um ataque químico, além de definirem qual o agente usado”.
Diante disso, o certo seria esperar pelos resultados da investigação da ONU. Mas os EUA nem pensam nisso. Para Obama, está na hora de John Wayne sacar seus revólveres e mandar brasa.
Por que tanta pressa? Afinal, conforme Ban-Ki-Moon, bastam quatro dias para se conhecer o resultado do trabalho da comissão da ONU.
Parece provável que Obama receie que a comissão inocente Assad, ou, pelo menos, lance grandes dúvidas sobre as culpas dele.
Aí, seria altamente desmoralizante para a Casa Branca. Com uma chuva de mísseis, Ban-Ki-Moon será obrigado a mandar interromper o trabalho dos seus técnicos.
As tropas norte-americanas estão de prontidão, esperando apenas pelas ordens do presidente.
E, assim, Obama repete Bush que, em 2002 e 2003, rejeitou as conclusões da comissão da ONU de que não havia armas nucleares no Iraque. E se recusou a dar mais tempo para as investigações, optando pelo ataque.
Como Bush, Obama viola as leis internacionais, dispensando a aprovação do Conselho de Segurança da ONU.
Alega que o faz por razões humanitárias e para garantir o cumprimento do tratado internacional de proscrição das armas químicas, datado de 1988. O qual, aliás, os EUA já desrespeitaram duas vezes.
A primeira vez, ainda em l988, quando forneceram imagens de satélites e mapas para Saddam Hussein usar em quatro ofensivas com gás sarim contra os iranianos, na guerra entre os dois países.
Fato atestado, em entrevista, pelo coronel Rick Francona, então adido militar à embaixada estadunidense em Bagdá: “os iraquianos nunca nos contaram que iriam usar gás sarim. Não precisava. Nós sabíamos”.
Em 2004, durante a guerra do Iraque, os EUA lançaram sobre a cidade rebelde de Faluja bombas com fósforo branco, material tão terrível que incendeia o ar.
No período 2007/2010, ou seja, entre 3 e 6 anos depois da invasão de Faluja, as bombas norte-americanas continuaram a agir: mais da metade das crianças pesquisadas nasceram com deficiências. Antes a média era de apenas um caso em dez.
Também antes da invasão, 10% dos casos de gravidez terminavam em aborto. Entre 2005 e 2006, esse número subiu para 45% (estudos da World Health Organization).
Parece certo que se repetirá a injustiça brutal do affair Iraque, mas não o principal erro da Casa Branca: serão evitadas perdas de vidas norte-americanas, pois todo o ataque será feito por ondas de mísseis, disparados de vasos de guerra e bases militares no Oriente Médio.
Fala-se que os alvos seriam artilharias, mísseis, baterias anti-aéreas, concentrações de tanques e até depósitos de armas químicas.
A hipocrisia dos EUA chega ao ponto de dizer que não se visa derrubar o governo Assad, mas, sim, castigá-lo e evitar que reincida no seu “criminoso ato”.
É claro que, com a destruição a ser causada, o exército de Assad se enfraquecerá e a sorte da guerra poderá mudar. Se isso não acontecer, ninguém duvida que Obama aprofunde sua participação no conflito.
Quanto às negociações de paz que Kerry vinha montando com Putin, a Casa Branca adiou – ficam para as calendas.
Sempre fingindo um respeito pelas normas internacionais, coisa que não está demonstrando, Obama procura evitar a pecha de unilateralismo, convocando países satélites a aderirem a sua cruzada.
O Reino Unido e a França já toparam, até com entusiasmo. A Arábia Saudita, nem se fala, já que tem sido a maior fornecedora de armas para os rebeldes e quem mais tem defendido a opção militar.
O mais grave é que essas potências, ardorosas defensoras das leis internacionais, admitem que o ataque será feito mesmo sem autorização do Conselho de Segurança da ONU.
Pesa mais o interesse em destruir o principal aliado do Irã no Oriente Médio.
Isso é fundamental para a Arábia Saudita, que teme a influência da revolução islâmica nas manifestações que ameaçam os regimes feudais do Golfo.
E para Israel que vê no Irã um inimigo poderoso, capaz de enfrentar suas forças militares no Oriente Médio, algo que Tel-aviv não admite.
Os EUA sempre quiseram acabar com Assad para enfraquecer o Irã, mas temiam que os jihadistas do exército rebelde tomassem o poder e lhes causassem maiores danos.
Parece que, sendo a grande fonte de armamentos e dinheiro desses grupos, o governo saudita ganhou controle sobre o movimento rebelde. No caso de vitória, teria meios para mantê-lo na linha. Foi, aliás, o que o príncipe Bandar, chefe da segurança saudita, garantiu recentemente a Putin.
Talvez por isso, Obama tenha abandonado sua relutância em entrar na guerra. A denúncia dos rebeldes forneceu um pretexto para ele se justificar perante a opinião pública.
Bem que precisa: de acordo com pesquisa Reuters, recentíssima, 60% dos estadunidenses são contra a ajuda dos EUA aos rebeldes. Mesmo no caso de Assad ter usado armas químicas, a oposição à intervenção vence: 46% x 25%. O ataque à Síria tem desdobramentos difíceis de serem previstos.
Assad pode até retaliar, atacando bases norte-americanas e alvos em Israel, mas acho improvável. Ele não é louco, como os EUA parecem acreditar.
Certamente, as perspectivas de entendimento do Ocidente com o novo governo iraniano ficam bastante prejudicadas.
Os elementos linha-dura do país ganharão força e Rouhani será fatalmente impelido para uma posição agressiva, que ele não quer.
A rejeição dos povos do mundo árabe aos EUA deve aumentar ainda mais. Note-se que, embora muitos governos da região sejam favoráveis ao ataque à Síria, nenhum ainda teve coragem de manifestar seu apoio oficialmente.
A Al-Qaeda vai ganhar duplamente: seus contingentes no exército rebelde passarão à ofensiva contra o exército de Assad, debilitado pela chuva de mísseis ocidentais, e seu recrutamento de jovens exaltados vai crescer substancialmente.
Muito triste é que, mais uma vez, os EUA se sobrepõem à ONU e ao direito internacional. E se arrogam o direito de atacar outro país, invocando provas que seu governo não se dá ao trabalho de revelar.
Talvez porque não existam. As centenas de milhares de iraquianos vítimas de uma guerra injusta não bastaram para fazer Obama pensar duas vezes. Afinal, eles estão mortos. E os interesses imperiais norte-americanos continuam bem vivos.
Luiz Eça é jornalista.
Website: Olhar o Mundo.
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