Por trás da demonização de Assad
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- Luiz Eça
- 12/09/2013
A proposta russa de destruição das armas químicas, sob controle internacional, pode ter evitado o ataque à Síria.
Inicialmente os EUA aceitaram, depois voltaram atrás para, por fim, Obama concordar. Claro, sem se interromper a investigação feita pela ONU do incidente de Ghouta.
Mais importante do que isso seria acabar com a guerra, que está martirizando o povo sírio.
Duvido que, se os EUA e a Arábia Saudita pressionassem os rebeldes e a Rússia e o Irã fizessem o mesmo com o governo, as partes não topariam reunir-se e engolir um acordo de paz, mesmo a contragosto.
Mas dificilmente acontecerá, o principal objetivo norte-americano não é o fim do conflito, é o fim do regime sírio.
A guerra civil não tinha ainda um ano e já Obama e a secretária de Estado de então, a senhora Clinton, apresentavam Assad como um misto de Hitler e Gengis Khan, que perdera legitimidade por massacrar o povo.
Sua defenestração era mais do que necessária. Embora os rebeldes também praticassem violências, somente as de responsabilidade do governo eram divulgadas e aceitas como verdade pelos EUA e aliados.
Coisa que nem sempre eram. Como em Houla, quando vídeos no Youtube mostravam os corpos de 100 civis que teriam sido mortos pela gente de Assad.
A opinião pública mundial ficou absolutamente chocada, até que reportagem no jornal alemão Frankfurter Algemine Zeitung mostrou que os autores do massacre teriam sido provavelmente os rebeldes, pois a maioria dos mortos era de xiitas e alauítas, firmes apoiadores do governo.
Em Tremseh, a história se repetiu: mais de uma centena de civis mortos pelo “satânico” Assad. Desta vez, o desmentido veio pelo New York Times: “... as evidências disponíveis sugerem que os eventos de quinta-feira estavam mais perto de terem acontecido conforme a versão do governo”.
Com o prosseguimento da guerra, o imenso número de mortes civis, mais as multidões desalojadas, fugindo para os países vizinhos, reclamavam uma ação da comunidade internacional.
Os EUA apresentaram várias propostas à ONU: todas condenando o governo de Damasco, exigindo sua derrubada.
Talvez pressionado pela Rússia, Assad várias vezes declarou-se a fim de discutir a paz com os rebeldes.
Os EUA sempre se manifestaram contra, alegando que seriam apenas medidas protelatórias.
Os russos chegaram a preparar um plano de paz, baseado em ideias negociadas em Genebra, numa reunião das potências interessadas em ajudar os sírios.
Hillary Clinton logo colocou obstáculos: declarou que só seria aceitável se previsse “consequências”, caso o regime não cumprisse o acordado.
Os russos desistiram. Foi com base numa cláusula destas que a resolução de zona de exclusão aérea na Líbia foi transformada em licença para intervenção militar estrangeira.
Por sua vez, o Irã, grande aliado de Assad, ofereceu-se para ajudar a mediar a paz. O Secretário-Geral da ONU apoiou, declarou que “o Irã não poderia ser ignorado”. Impossível, responderam os norte-americanos, “como eles podem ajudar se são parte do problema, por fornecerem armas ao governo?”.
Estranho argumento, pois Arábia Saudita, Turquia, Catar e Emirados também fornecem armas e são aceitos pelo Ocidente nas conversações para resolver o impasse sírio.
Há uma diferença: eles ajudam os rebeldes...
Foi dos iranianos a melhor proposta apresentada até então. Ela previa que todos os países que enviavam armas ou dinheiro parassem com isso; conversações de paz entre as partes em luta; supervisão, por potências da região, do processo de encerramento das violências e de negociações, entre outras medidas.
Os EUA continuaram rejeitando qualquer participação iraniana. Afinal, nada de bom poderia vir desses bad guys. Como rejeitaram outra tentativa de acabar com essa guerra devastadora.
Al-Khatib, líder da coalizão da oposição síria, propôs negociar com o inimigo. Foi também fortemente criticado pelos seus parceiros. E tudo não deu em nada.
Diante destes fatos, a pergunta que fica é: por que os EUA querem tanto destruir o regime Assad?
Eliminamos as “razões humanitárias”, os norte-americanos certamente sabem que violações de direitos humanos acontecem dos dois lados.
Há quem diga que o petróleo seria um bom motivo, pois se descobriu que a Síria tem imensas jazidas inexploradas. Certamente, não faria negócio com empresas de países tão pouco amigáveis.
É de se crer que, por trás da fúria anti-Assad, estejam razões políticas. A primeira é o fato de o regime sírio ser o principal aliado do Irã no Oriente Médio.
Sendo o único país em condições de contestar a hegemonia dos EUA no Oriente Médio, por seu poderio econômico e militar, o Irã é uma pedra no sapato de Tio Sam, desde a revolução islâmica, que derrubou o xá.
Enfraquecer o Irã via queda de Assad atenderia também aos satélites Israel, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Kuwait. Israel, porque o Irã é seu mais duro inimigo.
A Arábia Saudita, que é sunita, se ressente muito da influência dos iranianos sobre os xiitas, concentrados justamente na principal região petrolífera do país.
Teme também a força militar de Teerã, assustadora, devido a seu possível programa atômico. O Bahrein se vê na mesma situação. O Kuwait e os Emirados sentem-se ameaçados por uma república islâmica nas suas proximidades, capaz de estimular os dissidentes desses países.
Todos eles não veem a hora de Obama ordenar a partida dos mísseis. A rejeição do Parlamento britânico e do povo estadunidense fez o presidente adiar esse momento tão ansiosamente esperado pelo war party.
Para reforçar sua posição, ele resolveu submeter sua belicosa decisão ao Congresso. Não deu certo.
A oposição cresce nas duas casas. Considera-se hoje duvidoso o apoio do Senado. E na Câmara dos Representantes, a derrota é bem provável.
Afinal, as eleições vêm aí e os congressistas não querem desgostar o eleitorado norte-americano, majoritariamente contra o ataque à Síria, conforme todas as pesquisas.
Diante deste quadro nada otimista, a discussão do ataque foi adiada no Congresso. Mesmo que o governo dos EUA acabe aprovando a proposta russa de liquidar as armas químicas sírias, o principal problema, a guerra, ainda está longe de ser solucionado.
Há quem espere que, com a ascensão do moderado Rouhani ao governo, o Irã e os EUA cheguem a um acordo de convivência pacífica.
Com isso, não seria mais tão importante para os EUA arrasarem o governo Assad. Ficaria mais fácil se chegar a um acordo que pusesse fim à guerra da Síria.
Quem foi o culpado?
Para os EUA, foi Assad quem mandou lançar bombas químicas sobre Ghouta.
Dennis McDonough, chefe do Gabinete de Obama, admite que contra Assad não existem “evidências além de uma dúvida razoável”.
E daí, eles dizem, isso é um critério dos tribunais de justiça. Em questões de guerra e paz não valem.
As culpas de Assad seriam claras “por uma questão de bom senso”. O governo Obama acha que isso é mais do que suficiente.
Afinal, houve um ataque químico, provavelmente com sarin, e os rebeldes, segundo a inteligência yankee, não têm bombas deste hediondo gás. Já Assad tem; portanto, por eliminação, só ele pode ser o autor da barbaridade.
Há quem questione. O general libanês aposentado, Hisham Jaber, observador da política do Oriente Médio, afirma que, entre os muitos oficiais que desertaram das hostes de Assad, vários teriam sido treinados no uso do gás sarin. O qual fora adquirido pelos rebeldes de tribos da Líbia, depois da queda do ditador Kadafi, através de intermediários sauditas.
O governo diz que muitos dos seus soldados foram contaminados em Jobar, arredores de Damasco, quando penetraram em túneis abandonados pelos insurgentes. A comissão de investigação da ONU examinou esses soldados num hospital e, em breve, vamos saber se é verdade.
A agência de notícias norte-americana Mint Press News praticamente confirma a denúncia do regime Assad, citando declarações de civis e milicianos rebeldes da cidade de Ghouta (onde aconteceu o ataque químico).
O pai de um miliciano contou que seu filho e mais 12 companheiros morreram no interior de um túnel onde eles estavam estocando armas, inclusive algumas descritas como tendo “forma de tubo” ou como “imensos garrafões de gás”.
Diversos rebeldes informaram que transportaram as armas em forma de tubo e de garrafão de um lugar para outro, durante vários dias.
Em maio deste ano, alguns jornais turcos noticiaram a prisão de 12 membros do movimento Nusra (integrante do exército rebelde) com cerca de dois quilos de sarin.
O governo turco desmentiu, mas não se sabe se dá para acreditar muito, já que se trata de inimigo do regime sírio, por isso mesmo interessado em aliviar possíveis culpas do exército insurgente.
Há meses atrás, Carla Del Ponte, membro de comissão da ONU para investigar acusações de uso de bombas químicas na Síria, declarou que, embora faltassem provas definitivas, havia indícios de culpa dos rebeldes em casos sucedidos em outras regiões do país.
Uma nova teoria surgiu quando o jornal Bild am Sonnantag afirmou ser possível que oficiais do exército sírio sejam os responsáveis pelo ataque.
Segundo fontes da inteligência alemã, mensagens de rádio e chamadas telefônicas interceptadas pela BND (serviço de inteligência da Alemanha) revelaram que, em diversas vezes, Assad rejeitou pedidos das suas forças armadas para usarem bombas químicas.
Como se vê, há dúvidas mais do que razoáveis sobre a autoria do crime de Ghouta.
Com os dados disponíveis, não há nem sombra de bom senso na ideia de culpar Assad.
Só nos resta esperar pelas conclusões dos especialistas da ONU.
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Luiz Eça é jornalista.
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