Ucrânia sem propaganda
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- Luiz Eça
- 07/02/2014
A mídia vem apresentando os eventos da Ucrânia como uma luta entre o Bem e o Mal.
Seria uma autêntica manifestação democrática, na qual o povo exige liberdade e integração à Europa, contra a repressão de um governo autoritário, satélite da Rússia.
Mas, a realidade é diferente da propaganda.
O presidente Yanukovych não é um tirano, foi eleito democraticamente em 2010, com 48% dos votos, para um período de 5 anos. E o pleito foi considerado legítimo por organizações independentes.
É verdade que a maioria dos manifestantes é pacífica, cidadãos comuns, que aspiram uma vida melhor no padrão dos países europeus.
No entanto, no meio deles, há grande número de agressivos adeptos de agrupamentos ultranacionalistas de direita, fascistas.
Estão reunidos no “ Setor de Direita”, que inclui o Skovoda, o “Patriotas da Ucrânia”, a “Assembleia Nacional da Ucrânia - Autodefesa Nacional Ucraniana” - e o Trizub.
Todos eles anti-russos, anti-semitas e anti-imigrantes.
Não são grupos insignificantes, cada um conta com milhares de partidários.
O Skovoda, por exemplo, é tão forte que seu líder, Oleh Tyanhnybok, é um dos 3 principais dirigentes da campanha anti-Yanukunovih.
Longe de ser um good guy, Oleh proclama que o país é controlado por uma máfia judaico-moscovita…
O Skovoda, que governa Lvov, uma das maiores cidades ucranianas, recentemente organizou uma marcha de 15 mil militantes carregando tochas, em memória do fascista Stefan Bandera, cujas tropas lutaram ao lado dos nazistas e promoveram massacres de judeus na última guerra.
Ao se iniciarem os protestos, em novembro, quando Yanukovich adiou a assinatura de acordo com a Europa, visto como primeiro passo para entrada na Comunidade Europeia, a repressão foi dura, mas não particularmente violenta.
Tanto é que o povo ocupou o centro de Kiev, sem que a polícia usasse armas de fogo, como fez a segurança egípcia em situação análoga.
As coisas só degringolaram em 17 de janeiro, depois de o governo emitir severas leis contra as manifestações.
Aí os grupos fascistas assumiram a vanguarda da manifestação.
Seus militantes entraram em choque com a polícia, usando porretes, capacetes e bombas improvisadas.
Prédios do governo, inclusive ministérios, foram ocupados, já agora com a participação da massa dos manifestantes.
A reação violenta da polícia e de milícias pró-governo causou pelo menos 6 mortos civis, além de centenas de feridos.
Nada comparável com os 1.000 mortos, vítimas dos agentes de segurança egípcios, nas manifestações da oposição à ditadura militar.
Assustado com as bestas do Apocalipse que ele desencadeou, Yanukovich suspendeu as leis repressivas.
E concedeu anistia a todos os presos, desde que desocupassem os prédios públicos. Além de oferecer a renúncia do primeiro-ministro e a entrada de oposicionistas no governo, pedindo a paralisação dos enfrentamentos, enquanto se discutiam essas ideias e o acordo europeu.
A princípio, os líderes rebeldes toparam.
Mas, quando Klitschko, o mais popular deles, pediu o apoio da massa de manifestantes, foi contestado pelo “Setor da Direita”.
Chegou a ser atacado por um dos membros do grupo com um extintor de incêndio.
E a rebeldia dos opositores tornou-se incontrolável.
Agora seus objetivos se ampliaram. Não basta as concessões do presidente e sua assinatura do acordo com a Europa, ele tem de renunciar e novas eleições têm de ser marcadas.
A Europa e os EUA somam com eles.
É extremamente apetitoso um país com um mercado de 46 milhões de habitantes; boa estrutura industrial; um dos maiores produtores mundiais de cereais, com 30% das terras negras do mundo (as mais férteis) e o segundo exército mais poderoso da Europa.
A Europa aspira atrair esse desejável país, hoje muito próximo da Rússia, seu maior parceiro no comércio exterior.
Yanukovich vinha negociando um acordo inicial nesse sentido há anos.
Na hora de assinar, deu pra trás, alegando não gostar das duras reformas econômicas tipo FMI que deveria aceitar, diante da crise financeira do país.
Nessa ocasião, a Rússia acenou com um pacote de 15 bilhões de dólares e descontos de 30% no preço do gás natural russo importado pela Ucrânia.
Tudo que o país deveria fazer seria ingressar na nova comunidade aduaneira de livre comércio, que Putin está formando com a Rússia, Belarus e o Cazaquistão.
As vantagens são de peso, considerando que a Ucrânia é o maior importador mundial de gás natural, gasta enorme fatia de seus recursos nesse item.
A Europa não quer perder a parada e está estudando um pacote de auxílios capaz de encarar as propostas russas.
Tem a seu favor o apoio da maioria das populações das duas maiores cidades da Ucrânia e das regiões oeste e norte do país, maciçamente de língua ucraniana, cerca de 60% do total do país.
Depois da independência ucraniana da União Soviética, em 1991, o processo de privatização do Estado causou uma forte recessão, o PIB perdeu 60% até 1999.
Seguiu-se um período de recuperação, seguido pela crise de 2008/2009, que puxou a qualidade de vida do povo de novo para baixo.
Apesar de certa melhoria nos índices de crescimento, a crise econômico-financeira ainda prossegue. As dívidas do governo são pesadas.
Em todos estes anos, os oligarcas, que compraram as empresas estatais a preço de banana, dominaram a política local. E o povo sofreu todo o peso das crises e fracassos.
Hoje, a maioria do povo sonha com a prosperidade, que o país alcançaria com sua integração na Comunidade Europeia.
Sua indignação foi despertada violentamente quando o governo adiou sine die a assinatura do acordo com a Europa.
Mas as massas ocupando as praças não representam todo o povo.
As regiões sul e leste, habitadas por pessoas de origem e língua russa – cerca de 40% do país –, são favoráveis à aliança com a Rússia.
Há um temor de que, na integração com a Comunidade Europeia, as pequenas e médias indústrias, minerações, siderúrgicas, indústrias farmacêuticas e químicas e agronegócios seriam destruídos.
Tendo sido criadas na era soviética, são empresas antiquadas, sem condições de competir com as modernas corporações europeias.
Prevê-se que muitas empresas locais fechariam e haveria um desemprego em massa.
Os 15 bilhões da Rússia trariam um alívio, dando tempo a que pelo menos boa parte dos empresários fizesse as reformas necessárias para tornar suas empresas competitivas.
A Ucrânia na Comunidade Europeia é estrategicamente muito importante para a política do Ocidente.
A OTAN aumentaria seu poder, tomando um aliado da Rússia e empurrando as fronteiras da influência moscovita mais para o Leste.
Cada vez mais a Rússia ficaria circundada por países que não comem do mesmo prato dela.
De olho nisso, líderes europeus apoiam de público a oposição.
Os mais recentes foram Hague, ministro do Exterior do Reino Unido e o ministro do Exterior da Alemanha.
Não vacilaram em incentivar os grupos que ocupam à força praças e ministérios de um governo legal.
O que deu chance para Serge Lavrov, ministro do exterior da Rússia, comentar: “Por que muitos políticos europeus importantes, na verdade, encorajam essas ações, enquanto em casa eles estão sempre prontos a punir severamente qualquer violação da lei?”.
Por sua vez, os EUA mostram-se ansiosos por derrubar um aliado da sempre rival Rússia.
Vários políticos americanos de primeiro time, inclusive o senador John McCain, já visitaram Kiev levando sua solidariedade aos rebeldes.
E o secretário de Estado, John Kerry, chegou a declarar que a oposição ucraniana “…terá o total apoio do presidente Obama e do povo americano a seus esforços”.
Não se deteve para pensar se isso não seria uma intervenção de seu país nos assuntos de outro país: em outras palavras, violação de soberania, proibida pelo direito internacional.
É fato que o governo de Kiev por vezes agiu com excesso de violência, mas nada que se compare à matança praticada pelos militares na oposição egípcia, pavimentando o terreno para sua vitória nas próximas eleições de lá.
No clássico double standards da política americana, o governo do Cairo, conforme o eufórico Kerry declarou, estaria “… pondo o Egito nos trilhos da democracia…”.
Não é o caso da Ucrânia, onde a democracia, por ora, não está em jogo.
A não ser que os choques entre oposicionistas e governo evolua para uma guerra civil. O que parece absurdo, embora não impossível.
Luiz Eça é jornalista - Blog: http://olharomundo.com.br