Crimeia ilegal, golpe legal
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- Luiz Eça
- 14/03/2014
“Você não pode fazer no século 21 o que no século 19 era comum”. Nada a objetar a Kerry quando condena a Rússia no affair Criméia, dizendo que não se pode invadir outro país com pretextos falsos, como se fazia no século 19.
Como os EUA estão acima das leis, isso não se aplica à invasão (e ocupação) do Iraque sob o falso pretexto de que possuía armas nucleares.
Além da invasão do Afeganistão; dos bombardeios do Paquistão, Iêmen e Somália por drones; da participação nos ataques ao governo da Líbia.
E como acredito que os hábitos agressivos do século 19 também não seriam aceitos no século 20, lembro que, somente depois da 2ª guerra mundial, os EUA invadiram a pequena ilha de Granada, a República Dominicana, o Haiti e o Vietnã – ali fabricando pretextos para a guerra, conforme provou Daniel Elsberg, com documentos publicados no New York Times.
Claro, todas estas reincidências específicas não justificam a clara intervenção russa e o referendo da Criméia.
De acordo com as leis internacionais, uma região de um país não pode se declarar independente.
Foi exatamente o que aconteceu com Kosovo. Sob os auspícios das armas da OTAN e da diplomacia norte-americana, tornou-se independente da Sérvia, em 1999. O caminho para chegar lá foi uma revolta, através de milícias armadas, apoiadas pelos EUA.
Mais ou menos o que aconteceu na Ucrânia. Manifestações populares inicialmente exigiam que o presidente Yanukovich assinasse acordo para entrar na União Europeia (UE). Mais tarde, que se mudasse a Constituição para reduzir os poderes presidenciais e antecipar as eleições.
Houve violências policiais, mas a situação só se tornou realmente grave depois que o governo aprovou leis repressivas dos protestos.
Aí a brutalidade policial aumentou e os grupos fascistas assumiram a vanguarda da massa popular.
Os principais desses grupos são o Svoboda e o Setor da Direita, ambos ultra-nacionalistas, anti-russos e antissemitas.
Oleg Tyahnybok, chefe do Svoboda e um dos três principais líderes da rebeldia, defende a libertação do país da “máfia judaico-moscovita”.
Em 2010, quando Demjamjuk, guarda do campo nazista de Sobibor, foi condenado à prisão na Alemanha por participação no extermínio de 30 mil judeus, Oleg o proclamou um herói “lutando pela justiça.”
O patrono do Svoboda é Stepan Bandera que, na guerra mundial, liderou um grupo aliado do exército nazista que massacrou milhares de judeus e russos.
Segundo o jornal israelense Haaretz (24/2/2014), milicianos do Svoboda e do Setor da Direita distribuíram edições do Mein Kampf e dos Protocolos dos Sábios de Sião, na praça ocupada pelos manifestantes.
Foram principalmente os grupos nazistas que entraram em choque com a polícia, usando porretes, capacetes, coquetéis Molotov e armas de fogo.
Prédios do governo, inclusive ministérios, foram ocupados e depredados, agora com a participação da maioria dos que protestavam.
Já não era, portanto, uma manifestação pacífica, mas um verdadeiro movimento revolucionário, com combates ferozes entre as forças de segurança e milícias do governo contra oposicionistas, liderados pelos grupos fascistas.
Ativistas estimam que, nesses conflitos, os fascistas representavam cerca de 1/3 do total dos combatentes.
Mesmo antes, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, tinha anunciado que a oposição ucraniana “...terá todo o apoio do presidente Obama e do povo norte-americano a seus esforços”.
O senador John McCain foi mais longe: levou pessoalmente a Kiev seu apoio ao movimento, onde subiu em palanque ao lado dos três principais chefes.
Um deles, Vitaly Klitschko, viajou aos EUA. Certamente, não foi para conhecer a estátua da Liberdade e o Empire State Building... Há notícias de que manteve reuniões com altas autoridades estadunidenses.
Todos estes fatos não deixam de representar uma intervenção norte-americana nos assuntos de outro país.
Sem panos quentes, o governo dos EUA apoiou a derrubada pela força do governo eleito da Ucrânia.
Isso não era legal nem no século 19... Mas a subsecretária de Estado para a Europa, Victoria Nuland, foi ainda mais longe do que John Kerry.
Em fins do ano passado, ela informou que os EUA já tinham aplicado 5 bilhões de dólares durante vários anos para colocar a Ucrânia na órbita dos países “democráticos”.
Talvez com o mesmo salutar objetivo, Nuland, em fevereiro último, discutiu com o embaixador norte-americano na Ucrânia, em ligação telefônica gravada, quem deveria ser o novo primeiro-ministro do país. Sua escolha era Arseniy Yatseniuk.
Adivinhem foi quem acabou sendo nomeado.
Parece que os bilhões norte-americanos foram bem empregados. A National Endowment for Democracy (NED), criada por Ronald Reagan, em 1983, para promover ações políticas e guerra psicológica contra países pouco amigáveis, provavelmente não deve ter estado fora de tudo isso.
Conforme Carl Hersham, seu presidente, escreveu no Washington Post (26/09/2013): “A Ucrânia é o maior prêmio”. Que se concretizou quando Yanukovich acabou caindo. Depois que a mortandade chegou ao auge, com 67 mortos da oposição e 13 das forças de segurança, ele havia pedido água.
Assinou um acordo com a oposição, dando tudo que ela queria: novo governo com participação dos oposicionistas; volta da constituição anterior, com redução dos poderes do presidente; eleições antecipadas para este ano; anistia plena, geral e irrestrita.
E ainda dissolveu a sua violenta polícia anti-motim. Era pouco para os movimentos fascistas. Eles continuaram em armas, ocupando prédios públicos, atacando policiais – ações documentadas pela mídia e publicadas pelo You Tube.
Assustado com ameaças de ataque a sua residência, Yanukovich fugiu. Pressuroso, o parlamento declarou seu cargo vago e nomeou um governo interino.
Se não foi um golpe, ficou muito perto. Sob pressão do Svoboda e do Setor da Direita, o novo primeiro-ministro Yatseniuk (o preferido de Victoria Nuland), nomeou oito membros deles no seu ministério.
Pior, esses fascistas ocupam importantes postos na delicada área de segurança nacional: ministro da Defesa, chefe do Conselho Nacional da Segurança e vice-chefe do mesmo conselho.
Yarosh (chefe do Setor da Direita), exigiu que o novo governo desse a seu grupo parte das armas e equipamentos militares do exército, assim como diversos centros de treinamento.
Apresentou uma proposta ao parlamento para tornar o grupo uma unidade militar (algo como a SS na Alemanha nazista). E o primeiro ministro demitiu vices do ministério de Defesa que se recusaram a apoiar tal proposta.
Temendo o crescente poder desses grupos antissemitas, o rabino Moshe Reuven Azman, de Kiev, aconselhou os judeus a saírem da cidade ou mesmo do país (Haaretz, 24/2/2014).
E a organização judaico-americana, Liga Anti-Difamação, condenou a presença de fascistas no novo governo ucraniano e as nações que o apoiam moral e financeiramente, como EUA, Canadá e União Européia.
Evidentemente, o fato de o ministério do novo governo de Kiev ser o primeiro na Europa integrado por fascistas não o torna ilegal.
No entanto, foi suspeita a forma violenta com que a oposição assumiu o poder, depois de o presidente ter sido afastado pelo parlamento por ter fugido, sob ameaça das milícias ultra-nacionalistas.
Convém lembrar que as forças armadas estavam neutras e a polícia anti-motim, dissolvida. Yanukovich não tinha defesa.
Difícil falar que ele foi derrubado pelo povo do país; 40% dele, moradores do sul e do leste e defensores da aliança com a Rússia, não foram ouvidos.
É de se crer que a legitimidade da destituição do presidente Yanukovich é pelo menos discutível.
Lembremos um princípio na justiça estadunidense, aplicável a provas obtidas de forma ilegal: a árvore doente contamina os frutos.
Sendo assim, tudo que aconteceu depois do ato parlamentar que favoreceu a oposição não teria valor. Talvez o buraco esteja ainda mais abaixo.
Como houve uma intervenção norte-americana no processo que conduziu à queda do governo, teria se configurado um atentado à soberania da Ucrânia.
Seria legal uma mudança de governo favorecida por um atentado?
Mesmo não sendo, a Criméia não tem direito de se tornar independente ou parte da Rússia.
Mas ainda resta uma questão: é direito que as leis internacionais nunca sejam aplicadas contra os EUA?
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Luiz Eça é jornalista.
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