Licença para matar
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- Luiz Eça
- 05/08/2014
Quando Israel iniciou seus bombardeios maciços sobre Gaza, o presidente Obama apressou-se em justificá-los.
“Israel tem o direito de se defender”, foi sua frase, logo transformada num mantra, repetido fielmente pelos principais estadistas do Ocidente.
Até mesmo Catherine Ashton, chefe de Relações Exteriores da Europa Unida, que costuma ter bom senso, embarcou na onda sem pensar duas vezes.
Claro, houve quem se excedesse. O secretário de Estado John Kerry chegou a afirmar que Israel se achava sitiado pelo Hamas. Uma curiosa troca de papéis na fábula do lobo e do cordeiro.
No mundo de “faz de conta”, que Kerry às vezes parece habitar, as forças do Hamas é que estariam bloqueando Israel, proibindo as exportações e impedindo a importação de vasta gama de produtos essenciais.
Além de limitar entradas e saídas somente a quem bem entendesse. Como é exatamente o contrário que acontece, Gaza vive sob um bloqueio de 7 anos, que destruiu sua economia, seus empregos e a qualidade de vida do seu povo.
Como disse o cardeal Martino, Gaza “cada vez mais parece um grande campo de concentração”. Para Obama e os respeitáveis estadistas europeus, Gaza não tem o direito de se defender desse devastador bloqueio.
Nenhum deles contesta a licença para matar moradores de Gaza, a que Israel se autoconcedeu. O máximo que eles criticam é o excessivo número de civis mortos. Alguns chegam mesmo a condenar o uso desproporcional de forças pelo exército de Israel.
Obama não vai tão longe. Depois de reafirmar o direito de Israel se defender, ele diz “esperar que Israel irá continuar agindo no processo de um modo que minimize as vítimas civis”.
Ou seja: o exército de Telavive já estaria agindo com moderação. Que continue assim, apela o presidente estadunidense.
Para o embaixador de Israel nos EUA, Ron Demer, até esta amena ponderação é inaceitável. Quanto mais as menções europeias às altíssimas vítimas civis da ofensiva israelense!
Demer declarou, em reunião com 700 líderes judaico-americanos, que o exército de Israel merecia o Prêmio Nobel da Paz por sua “inimaginável moderação” em Gaza.
Os jornalistas norte-americanos gostaram tanto desta macabra piada que perguntaram a opinião de Marie Harf, porta-voz do Departamento de Estado. Ela respondeu com outra pérola.
Embora os militares israelenses adotassem os mais cuidadosos padrões de segurança, talvez pudessem fazer um pouquinho mais para proteger os civis...
O governo Netanyahu garante que seus militares já estão fazendo o máximo para poupar vidas civis. Antes de bombardear um edifício ou uma determinada área, o exército de Israel avisa os moradores para que saiam de lá.
Esta medida não tem dado muito certo por culpa exclusiva do Hamas, que obrigariam os civis
a permanecerem. Seriam os chamados “escudos humanos” tantas vezes denunciados pela propaganda israelense.
As coisas não são bem assim. Em geral, o tempo que os moradores têm para escapar dos bombardeios costuma ser curto; por volta de cinco minutos.
Aqueles que conseguem escapar antes das bombas começarem a cair ainda assim não estão em segurança.
Terão extremas dificuldades para encontrar onde se refugiar. Todos os abrigos já estão lotados com mais de 200 mil refugiados.
“Literalmente, não há lugar seguro para civis (em Gaza)”, disse Jens Laerke, porta-voz do escritório das Nações Unidas para Coordenação de Assuntos Humanitários, em entrevista recente, em Genebra.
Alguns dias depois, provou-se que ele tinha razão. Atendendo a aviso do exército israelense, milhares de palestinos refugiaram-se em escola da ONU, fugindo de suas casas em vias de serem bombardeadas.
Mas os bombardeios foram atingi-los ali, matando até crianças dormindo. Segundo as leis internacionais, alvejar intencionalmente uma área civil é sempre crime de guerra.
De qualquer modo, avisar os moradores não transforma uma área civil num objetivo militar.
O exército de Israel contesta, alega que o Hamas instala plataformas de lançamento mísseis até junto a edifícios públicos.
Daí sua justificação dos ataques a mesquitas, abrigos, campos de refugiados, estádios, hospitais e escolas.
A respeitável Human Rights Watch investigou essa questão. Em oito ataques aéreos israelenses sobre edifícios onde se reúnem civis não descobriu nada que comprovasse as acusações contra o Hamas.
Até agora não apareceu nenhum testemunho independente atestando a existência de “escudos humanos” ou mesmo de unidades militares do Hamas instaladas junto a prédios públicos.
A explicação do imenso número de civis mortos, casas destruídas e hospitais bombardeados parece ser diferente.
Escreve Ian Black no The Guardian, de 29 de julho: “O ataque à usina elétrica nesta terça-feira irá provavelmente alimentar as especulações de que a infraestrutura civil do enclave está sendo deliberadamente destruída na guerra contínua contra o Hamas”.
Não dá para aceitar que o exército israelense seja tão ineficiente a ponto de destruir “por engano” tantos alvos civis.
Uma coisa parece certa: especulações ou não, Israel está levando Gaza a uma situação extrema.
Os devastadores ataques por terra, mar e ar estão tornando insustentável a vida na Faixa.
É absolutamente inviável a sua recuperação econômica, mesmo a médio prazo. Na semana passada, ONGs israelenses informaram que mais da metade dos 1,7 milhão de habitantes de Gaza não dispõe de água, nem de saneamento básico.
“Efeitos colaterais” dos bombardeios. Os hospitais estão parcialmente destruídos, há falta de remédios, de leitos.
Esgotos vazam pelas ruas em consequência de rompimentos nas tubulações. Com o bombardeio da única usina elétrica de Gaza, a população ficou sem energia.
A falta de alimentos se acentua e teme-se para breve uma verdadeira crise humanitária. A vida em Gaza praticamente parou.
Enquanto essa tragédia adquire cores cada vez mais aterradoras, os canhões israelenses prosseguem rugindo.
Obama, Cameron, Hollande, Merkel, todas estas figuras impolutas lamentam, mas não deixam de esclarecer: Israel tem direito de se defender.
Só que Israel agora não está propriamente se defendendo. As toneladas de bombas diariamente lançadas contra Gaza configuram um ataque impiedoso.
O alvo pode ser o Hamas, mas as vítimas são civis (cerca de 80% dos mortos e feridos). Já passou da hora do Ocidente retirar de Israel sua licença para matar inocentes.
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Luiz Eça é jornalista.
Website: Olhar o Mundo.