Desvendando o Hamas
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- Luiz Eça
- 12/08/2014
Mesmo a maioria daqueles que criticam duramente Israel pelos ataques a Gaza dão de barato que o Hamas é uma aberração
Fundamentalistas retrógados, terroristas sanguinários, fanáticos insensíveis ao sofrimento dos civis, uma pedra no caminho da paz no Oriente Médio, é o que dizem do movimento palestino.
Parece válida uma reflexão serena para se aferir até onde vão o preconceito e a realidade. Não há dúvida de que a Carta do Hamas, na sua fundação, em 1988, tinha ideias típicas de um fundamentalismo bastante sectário.
Ela defendia um Estado Islâmico, seguindo as rígidas leis da Sharia, elaboradas na Idade Média. Restringia os direitos das mulheres. Considerava que renunciar a qualquer parte da Palestina significava renunciar a parte da religião.
Na Carta do Hamas, os “Protocolos dos Sábios de Sião” eram tidos como artigo de fé. Essa “obra”, criação da polícia do czar russo, falava de uma sinistra conspiração para submeter o mundo aos judeus.
Só por considerá-la verdadeira, a Carta do Hamas já demonstrava seu antissemitismo, como, aliás, Israel nunca deixou de denunciar.
Recentemente, Yossi Kuperwaser, diretor-geral do Ministério dos Assuntos Estratégicos, foi um pouco mais longe: “o Hamas não mudou sua ideologia, ele ainda quer matar os judeus”.
Mas o tempo passou e o Hamas parece ter mudado, sim. Em 2006, aboliu oficialmente a prática de atentados contra civis israelenses. E a Carta de 1988 foi enfiada no fundo de uma gaveta e esquecida.
Por isso mesmo, Khaled Marshaal, chefe do Birô Político do Hamas, informou a Robert Pastor, do Carter Center (do presidente Jimmy Carter), que o documento era apenas “uma peça histórica, não mais relevante”.
Em 2009, foi atestado pelo ex-embaixador do Reino Unido na ONU, sir Jeremy Greenstock, que a Carta nunca mais fora adotada depois que o Hamas assumiu o governo de Gaza, em 2006.
Nenhuma lei impondo “roupas islâmicas” ou qualquer tipo de conduta específica às mulheres foi aplicada. Claro, houve tentativas por parte de elementos radicais, mas não tiveram êxito.
Vários depoimentos de líderes do Hamas asseguram que não há planos de se impor a lei islâmica à Faixa de Gaza.
Pelo contrário: Yusuf, vice-ministro do exterior do Hamas, chegou a afirmar que o modelo do seu movimento é o regime turco.
A Turquia é uma democracia, com igualdade de direitos para a mulher, embora mantenha restrições à liberdade de imprensa e um executivo excessivamente poderoso.
Na entrevista em que essas posições foram expostas, Yusuf fez pesadas críticas ao Taleban e à al Qaeda, assegurando que o objetivo do Hamas é estabelecer boas relações entre os elementos seculares e religiosos da sociedade.
Essa abertura aparece também no relacionamento com os judeus. Em 2012, Ismael Hamyeh primeiro-ministro de Gaza, declarou publicamente que seu movimento nada tem contra os judeus, apenas combate o Estado de Israel por ocupar militarmente a Palestina.
E em duas ocasiões diferentes os principais líderes do Hamas passaram por cima da proibição contida na Carta de ceder parte do território a Israel.
Khaled Marshaal, chefe do Birô Político, em 2009, e Ismael Hanyeh, primeiro-ministro de Gaza, em 2010, aceitaram um Estado Palestino nas fronteiras de 1967, desde que se encontrasse uma solução para os palestinos expulsos de Israel e Jerusalém se tornasse capital do novo Estado.
Em outras palavras, reconheciam tacitamente o Estado de Israel, já que o Novo Estado Palestino deveria ocupar apenas os territórios acima das fronteiras de 1967.
Este reconhecimento é uma das exigências postas pelos EUA e a União Europeia para admitir o Hamas como governo de Gaza. As outras também foram atendidas.
Como já foi dito, desde 2006, o Hamas renunciou ao terrorismo e já se declarou pronto a aceitar os acordos firmados pela Autoridade Palestina.
O Ocidente fez de conta que nada mudou. O Hamas continua na lista negra. É costume dos regimes coloniais, ditaduras e governos oriundos de golpes de Estado chamar de terrorista quem se opõe a eles.
É o que estão fazendo os EUA e Europa, a ditadura do Egito e o governo da Ucrânia. É fato que o Hamas já foi terrorista, mesmo.
Praticou atentados que mataram cerca de 300 israelenses. Mas isso foi no século passado.
Depois de assumir o governo de Gaza, os grupos moderados levaram o movimento para posições mais civilizadas.
Nos últimos dois anos, respeitaram escrupulosamente um cessar-fogo com Israel. Chegaram a formar uma unidade policial com 600 homens para impedir que grupos mais radicais lançassem foguetes contra territórios israelenses.
Queriam evitar retaliações sempre desproporcionais, quando bombardeios do exército de Telavive matam muitos civis e destroem prédios, na tentativa de atingir terroristas.
A polícia de Gaza teve um êxito relativo. Nesses últimos anos, apenas três israelenses foram mortos por foguetes – nenhum deles disparado por gente do Hamas.
Claro, agora o clima é outro, não se pode esperar equilíbrio de quem vê diariamente um exército matar muitas dezenas de moradores de sua terra, além de destruir casas, edifícios públicos e, especialmente, seus armamentos, túneis e milicianos.
Nem por isso as acusações de crimes de guerra feitas por Israel podem ser, por enquanto, levadas a sério.
Tendo Netanyahu decretado que 44% da área habitável de Gaza seria “zona de segurança”, 250 mil palestinos tiveram de deixar seus lares para fugir das bombas. Com isso, a já pequena área de Gaza ficou pra lá de superlotada.
Um milhão e setecentas mil pessoas que viviam em 147 milhas quadradas tiveram de se apertar em apenas 82 milhas quadradas.
Seria uma missão impossível para o Hamas posicionar sua estrutura militar longe de civis. O uso dos chamados “escudos humanos”, quando os milicianos teriam se misturado com civis nos ataques israelenses, nunca foi comprovado por uma organização independente.
A última análise dessa acusação foi feita em 2009 pela Comissão Goldstein de Inquérito, da ONU, que não encontrou nada.
Todos estes fatos não bastam para pintar o Hamas como uma organização tipo Madre Teresa.
Longe disso.
Há sérias críticas das organizações de direitos humanos sobre seu sistema judiciário, que não respeita os direitos dos réus.
Em 2012, o insuspeito HRW (Human´s Rights Watch) apresentou um relatório com uma lista de violações aos direitos humanos praticadas pelo Hamas de deixar os cabelos em pé.
Reportou espancamentos com bastões de metal e mangueiras de borracha, enforcamento de suspeitos de colaboracionismo com Israel e torturas, atingindo 102 pessoas. Havia inclusive casos de violências contra ativistas da sociedade civil e manifestantes pacíficos.
Alega-se que sendo uma comunidade fraca, oito anos sob bloqueio, ataque e espionagem do poderoso Israel, seria natural que o Hamas exagerasse na sua defesa. Isso explica, mas está longe de justificar.
O que se pode levar em conta é a consideração dedicada pela comunidade internacional a países tão ou mais violentos do que o Hamas.
A Arábia Saudita, por exemplo, com 30 mil prisioneiros políticos e sucessivas denúncias do HRW e da Anistia Internacional.
Ou o Egito, autor de todas as violações de que se acusa o Hamas, mais o assassinato de centenas de manifestantes pacíficos e a condenação à morte de muitos oposicionistas. Ou certos países africanos que não se distinguem pela delicadeza com que tratam insurgentes.
Ou mesmo Israel, que respeita as liberdades dos cidadãos israelenses, mas pratica um cardápio variado de brutalidades e infrações às leis internacionais no trato com os palestinos. Nenhum destes países é carimbado como terrorista.
A maioria recebe ajuda dos EUA e da União Europeia, seus líderes discutem acordos com o Ocidente, são recebidos com caviar e champanhe em Nova Iorque, Londres e Paris.
Já que o Hamas não é assim tão diferente deles, o Ocidente não tem porque continuar o tratando como uma espécie de delinquente internacional.
Talvez isso não seja a solução para a eterna crise da Palestina, mas certamente deixará de ser um espinhoso problema.
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Luiz Eça é jornalista.
Website: Olhar o Mundo.