A agonia continua depois do domingo
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- Marcelo Castañeda
- 14/04/2016
Com a votação do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) no plenário da Câmara neste domingo nada se definirá. A crise da representação que atinge Executivo, Legislativo, Judiciário, partidos políticos, mídia e movimentos sociais mais estruturados não vai passar de uma hora para outra com a rejeição ou aprovação do impeachment para que o Senado prossiga no rito. Ainda que os ânimos do mercado sinalizem que o impeachment é muito provável – as altas da bolsa e o derretimento do dólar vão neste sentido – o fato é que ninguém tem condição de afirmar o que acontecerá no domingo.
Uma coisa é certa: o que for decidido pelo Congresso mais contestado da história não vai mudar muito os desafios que se tecem nos terrenos de luta, que é de onde podemos esperar mudanças. Essa constatação se deve ao fato de que o governo Dilma por si só é indefensável e não sinaliza qualquer mudança de postura no sentido de uma abertura democrática para discutir os rumos do país caso permaneça. Por outro lado, um governo Temer promete ser ultraliberal com sua “ponte para o futuro”. Portanto, cabe traçar alguns cenários tendo em vista que todos os principais atores políticos que atuam no âmbito da representação parecem ser responsáveis por este impasse político que já dura pelo menos cinco meses.
É importante salientar: o que está em curso não me parece ser um golpe no sentido estrito, que remete a 1964, muito menos um golpe que pega o governo Dilma de surpresa. Trata-se de uma agudização da tensão no âmbito da coalizão governista que se esfacela. Fosse golpe mesmo, não haveria sequer tempo de negociar acordos em torno de cargos e emendas como está sendo feito a torto e direito. Sem falar que o governo Dilma pode entrar com uma ação no STF, contestando o parecer favorável ou mesmo a regularidade dos tais créditos suplementares. Aliás, até agora o governo Dilma e o PT não produziram qualquer questionamento em relação ao rito do impeachment. Nada melhor que o tempo para mostrar o jogo político: estamos a assistir uma disputa pelo poder com os devidos chutes na canela e pudor algum.
A narrativa do “não vai ter golpe” parece afastada de qualquer base social para além do esquerdismo praticado por parcela dominante da esquerda institucional, limitando o contato com a maior parte da população no jogo da opinião pública, que é o que se disputa na escala das ruas e redes, tendo em vista que o que se passa acima, na institucionalidade, parece descolado em relação à opinião pública, e atende uma lógica própria, mais próxima dos interesses econômicos que regem mandatos.
No máximo trata-se de um golpe lento e paciente desferido pelo PMDB sobre o PT, que mobiliza sua base apoio de forma justa para tentar equilibrar um jogo que lhe é cada vez mais desfavorável conforme o tempo passa, vide a decisão do PP em votar a favor do impeachment mesmo depois de todas as negociatas que envolviam até o Ministério da Saúde.
Vou trabalhar aqui com o cenário menos provável neste momento em que as contagens de voto dos deputados favoráveis ao impeachment somam 320 votos dos 342 necessários, ou seja, a permanência de Dilma. Para começar, um elemento importante: a Lava Jato vai ser encurtada independentemente do que aconteça neste domingo. Pelo menos o juiz Moro já disse que encerra em dezembro e dali por diante é com o STF, o que significa um passo mais lento. Com a permanência de Dilma num governo mais fisiológico e a sua incapacidade de dar qualquer guinada democrática (não estou falando de nada à esquerda) os ajustes vão continuar e viveremos rendidos aos humores do capital financeiro.
Para se ter ideia, analistas de mercado projetam o dólar a R$ 3 em um governo Temer, o que significa que qualquer valor acima disso é especulação e jogo político. Teremos que lidar com um ajuste severo e precisamos manter a articulação que se formou em torno da permanência deste governo para contestá-lo. É onde veremos quem é quem no jogo da articulação social. Na prática, a permanência de Dilma significa deixar o PT fazer o jogo sujo para se manter no poder e decidir lá na frente, em 2018, se é mesmo hora de tal partido voltar para a oposição. Da mesma forma, caso Temer assuma, o PT tende a voltar imediatamente para a oposição. Precisamos ter clareza de que não é mais possível qualquer ambiguidade em relação ao PT.
Por fim, parece que as novas eleições perderam força no âmbito do TSE, que, pelo ineditismo da ação, só deve votar o processo no ano que vem, o que daria ensejo a eleições indiretas. Talvez por isso, Marina e Aécio tenham se voltado para declarações a favor do impeachment. O mais provável é que tenham de esperar até 2018. No fundo, a agonia não termina domingo, ela vai atravessar o país com suas crises e parece que vai continuar até que consigamos instituir uma democracia que vá além do voto, que se faça a partir da sociedade contra o Estado e a representação apodrecida.
Esse é o desafio da luta política: tecer democracia a partir de pautas concretas e não de ícones a nos dominar. Neste sentido, as lutas podem ser tidas como estratégicas e as eleições como táticas a operar em determinados momentos. Só que a lógica é inversa, por isso a agonia sem fim.
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Marcelo Castañeda é sociólogo e pesquisador.