As encruzilhadas como possibilidades
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- Marcelo Castañeda
- 18/11/2019
Existem muitas possibilidades reconhecidas de interpretação da realidade. Podemos elencar algumas das que estão em voga: em escalas que vão do global ao individual, perspectivas macro e micro (na economia e na política), olhares que vão do institucional ao molecular. Todas tendem a enfatizar um aspecto em detrimento de outro, sendo difícil dar conta da totalidade dos fenômenos em um texto, artigo ou mesmo tese. A incompletude e abertura à crítica e contribuições é que fazem a beleza do processo de organização e propagação das ideias, e é neste espírito que trago algumas encruzilhadas.
Se há uma determinação sistêmica, global, de uma economia cada vez mais virtualizada e verticalizada sobre os indivíduos que se adequam a uma sociedade de consumo em rede, que perfaz um mundo do trabalho diferenciado e desregulado, também existem brechas que podem ser aproveitadas para a mudança social através da ação política no nível mais individualizado e molecular em que as associações se fazem e podem desaguar em ações coletivas, que são também conectadas no mundo atual.
Nesta frase sintetizei uma perspectiva que procura envolver diversas referências teóricas que não vou apresentar para que a coluna não se transforme num artigo acadêmico, o que seria um retorno enfadonho deste colunista para os leitores do Correio da Cidadania.
Considero que grande parte das análises políticas atuais se volta para uma dimensão específica dentre as destacadas no início do texto, traduzindo uma espécie de determinação (no caso da economia) ou mesmo autonomia (no caso da política). Assim, ficamos com uma sensação de impotência e impossibilidade, considerando o campo no qual me insiro, que foi derrotado institucionalmente (a esquerda, de uma forma bem ampla) por uma estrutura que me parece mais antenada com o contexto apresentado no parágrafo anterior (que podemos chamar de extrema-direita, de forma mais específica).
A encruzilhada envolve múltiplas escalas, articulação entre dimensões macro e micro e a capacidade de entender as mudanças no nível molecular, espalhadas pela sociedade, que consigam se constituir institucionalmente.
Neste sentido, o exemplo chileno pode cair como uma luva: há dois meses, ninguém imaginava que um processo de revolta constituinte pudesse empreender um mês de mobilizações diárias, impondo uma vitória ao nível macroeconômico e político-institucional tido como modelo neoliberal mundial. Elas trazem uma perspectiva de modificação pelo que a sociedade gritava nas ruas (essencialmente: mais direitos), com o ônus de prisões, mutilações e mortes.
Apesar da repressão estatal e governamental, houve a capacidade constituinte da revolta e contestação de um modelo que era dado como permanente, quase que de uma hora para outra, de forma imprevisível, como parece ser o sentido da mudança no mundo interconectado, dominado pelas corporações, em especial pelo capitalismo de plataforma, mas não só, sendo que o controle e a nova dominação trazem as brechas para potenciais mudanças.
Também podemos olhar o cenário do golpe em curso na Bolívia por esse prisma: depois de mais de uma década de hegemonia de uma esquerda institucional que se distanciou do nível molecular, finalizando sua trajetória em uma série de manobras para se perpetuar no poder a partir de 2016, esta esquerda não teve base social para reagir a um golpe de caráter militar, racista e teocrático, impelindo ainda uma disputa por baixo em sua resolução. Pois isso vai depender novamente da capacidade mobilizadora da sociedade, ainda que a perspectiva não seja das melhores no sentido de reverter o cenário, mesmo com a possibilidade de que novas eleições sejam realizadas.
Vamos ao ponto principal: os cenários chileno e boliviano desnudam processos diferenciados que ocorrem tão próximos e distantes da realidade brasileira, em que conseguimos minimamente reagir a uma avalanche de medidas e discursos que se materializam em redes sócio-técnicas, a ponto de o governo Bolsonaro ter aprovado sua principal meta em 2019, a Reforma da Previdência, bem como alinhado as possibilidades para reformas administrativas e tributária no ano de 2020. Ano que também será palco das eleições municipais, logo, de (re)alinhamento político nas bases de capilaridade política que prenunciam as eleições de 2022. Creio que essa linha de reformas é o que sustenta o ex-capitão a frente do governo.
Mesmo com todas as atrocidades verbalizadas quase que diariamente por Bolsonaro, o mercado financeiro e as empresas de um modo geral parecem estar renovando suas apostas nele para 2020. Não há nada, nem mesmo a proximidade com o assassinato de Marielle ou o caso Queiroz, que pareça se configurar como obstáculo para sua continuidade, o que parece ficar claro quando Bolsonaro sai do PSL e vai estruturar um novo partido, que pode ser tido como uma extrema-direita pura, que mistura elementos fascistas e milicianos.
Contra esse arsenal do novo poder constituído no contexto brasileiro, temos iniciativas localizadas que ainda não se articulam a ponto de se fazerem constituintes; uma esquerda institucional que parece viver ainda na década de 1960 tamanho o anacronismo de suas práticas e o teor de sua crítica; e, principalmente, uma ausência de alternativas a oferecer à vertente tupiniquim do neoliberalismo que se mostra em ruínas. O ano de 2019 parece que passou rápido demais, em especial para quem ainda está lambendo as feridas da derrota eleitoral de 2018.
As encruzilhadas que procurei destacar nesse retorno ao Correio da Cidadania são densas e envolvem um conjunto de possibilidades no contexto político brasileiro, que passa por: consideração de aspectos teóricos e práticos; fomento a espaços de mobilização e discussão diferentes dos nós tradicionais pelos quais pensamos a política, tais como partidos e sindicatos; articulação de mais iniciativas no terreno da sociedade para que possamos pensar formas que não sejam mera resistência discursiva em sites de rede social, mas alternativas de existência nas ruínas do neoliberalismo em que a maioria das pessoas está neste momento.
É nessa toada que vou caminhar por aqui toda semana. Até a próxima!
Marcelo Castañeda é cientista social e professor da UFRJ.
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