Correio da Cidadania

“O Brasil está ensandecido e corre risco de entrar numa aventura de briga de rua”

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O Brasil acordou sob o assombro da ida de Lula, sob “coerção jurídica”, à Polícia Federal, a fim de prestar depoimento na cada vez mais midiática e politizada Operação Lava Jato. Enquanto o país absorve tamanho impacto e os lados interessados convocam suas manifestações de apoio, o Correio da Cidadania entrevista o cientista político Rudá Ricci, que foi categórico em afirmar que a condução das investigações ameaça colocar o Brasil numa tremenda aventura e parece refletir um espírito de “tudo ou nada”.

 

“Estamos a um passo da venezuelização. Vai bastar um louco atirar um sapato numa autoridade pública, ou os apoiadores abraçarem o prédio onde Lula mora, e alguma reação oposta ser gerada. O Brasil está ensandecido e pode criar alguma reação de rua que comece a fazer rolar sangue na sarjeta, principalmente nos grandes centros. É uma irresponsabilidade e não estamos conduzindo as investigações, de maneira alguma, de forma madura. Parece, realmente, uma final de campeonato”, resumiu.

 

A seu ver, tanto a Operação Lava Jato como a mídia convencional tomaram as rédeas da oposição política, de modo que até a questão do impeachment perde força. Dessa forma, Rudá afirma que precisamos refazer o contrato social e reestabelecer bases mínimas de disputa política, a fim de tratar de questões relativas ao futuro do país, pois o acordo representado pela Constituinte de 1988 está praticamente desfeito.

 

“A atual histeria midiática é amoral. Ela não tem valor que unifique as pessoas. A ideia é atacar. Assim, cria-se uma instabilidade que acaba insuflando pessoas teoricamente de bem a entrar numa aventura de briga de rua. Ou a gente volta ao bom senso e repõe, aos poucos, uma base de disputa política e ideológica que não jogue o país numa aventura, ou partimos pra essa aventura. Estamos no limiar dessa decisão. A Globo, ao colocar o Lula falando ao vivo por 10 minutos, dá uma espécie de declaração de que foi um exagero”, analisou.

 

A entrevista completa com Rudá Ricci pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Como você recebeu o impacto dessa sexta-feira que começou com Lula forçado a depor pela PF e uma histeria de lado a lado entre petistas e oposicionistas conservadores?

 

Rudá Ricci: Basicamente, já era perceptível que a Operação Lava Jato tinha mudado o rumo inicial e adquiriu ares de tudo ou nada. Para nós é muito ruim, porque coloca as instituições – como a Polícia Federal, o Ministério Público e, no caso, o judiciário de primeira instância, dirigido pelo juiz Sérgio Moro – em questão. A Lava Jato tinha, até então, foco nos empresários, o que era o correto. Porque se há corruptor, este é o empresariado; se a investigação vai por esse caminho a tendência é pegar todo o sistema. E parte dele começou a ser pega, envolvendo partes do PT, PSDB, PMDB, PSB e DEM, os cinco partidos que formam a estrutura central do sistema partidário brasileiro.

 

Depois veio a segunda fase, do final do ano passado pra cá. Ela começou a concentrar as investigações no PT e especialmente no Lula. E já trouxe inseguranças, erros de condução, como, por exemplo, a história do barquinho de alumínio do Lula. Essa foi a investida mais errática e equivocada, porque não conseguiu comprovar nenhum desvio e deixou evidente que o Lula mantinha hábitos de operário. Foi um tiro no pé, ao passo que foi se negando quaisquer tipos de investigações e delações que pegassem, principalmente, o PSDB.

 

Finalmente, chegamos ao estágio atual: uma espécie de desespero dos coordenadores da Operação Lava jato, o tudo ou nada. Dá impressão de estarmos chegando ao final da história, que mais parece um movimento macarthista. O que podia ser feito? Focar, pouco a pouco, no núcleo sobre o qual se tem indícios de corrupção, ou seja, chegar, no caso do Instituto Lula, primeiro em alguns diretores, para depois eventualmente alcançar o ex-presidente da República – talvez o mais festejado internacionalmente desde JK, visto como aquele que mais tirou gente da miséria na história do país. Exige-se certo respeito, pois Lula, assim como FHC, é uma espécie de instituição, mas o que vimos foi a perseguição a sua família e locais de trabalho.

 

Aí... Parece que houve um exagero. Um lance tão violento que acabamos chegando ao tudo ou nada. A surpresa maior é esse tudo ou nada. Agora é o seguinte: ou se prende Lula nos próximos dias ou se começa uma reforma constitucional do papel do MP e da PF no Brasil. Não tem outra saída.

 

Correio da Cidadania: O que pensa da postura da mídia de mercado e parcelas do poder judiciário e policial, que mal escondem sua cumplicidade, inclusive em termos de fornecimento de informações privilegiadas?

 

Rudá Ricci: A questão específica da mídia é que não temos no Brasil empresários que saibam vender seu produto na área de comunicação. O fato é que, historicamente, temos uma imprensa dependente dos recursos estatais, através de anúncios públicos. Não temos um veiculo de mídia no Brasil que consiga vender seu produto e sobreviver disso. Eles não têm interesse no consumidor e, justamente, preferem fazer chantagens sobre os governos e receber recursos para sua sobrevivência.

 

O estado onde moro (Minas Gerais) é o que melhor evidencia: para se ter ideia, com a derrota do candidato de Aécio ao governo, o jornal Estado de Minas está fechando – na verdade está sendo vendido ao Newton Cardoso, ex-governador. O jornal Hoje em Dia faliu, não paga os funcionários e distribuidores e acaba de ser vendido ao prefeito de Montes Claros (Ruy Muniz). Ou seja: os jornais mineiros estão falindo porque viveram à sombra de certo estatismo. Falam de liberdade de mercado, mas dependem do Estado. Na verdade, gostam dos impostos, porque a partir deles sobrevivem sem a necessidade de fazer um bom produto.

 

E tais veículos não foram perdendo esse subsídio porque o governo federal deixou de passar imensos recursos, mas porque lá atrás começou um fatiamento entre veículos e cidades menores, a partir da antiga elaboração do Gushiken e do Franklin Martins. A partir daí a disputa começou a ficar mais acirrada.

 

De novo: estamos diante do clássico macarthismo. A denúncia vira sentença. Interessante notar que a imprensa não apura mais. Ela vaza. Vive de furos. É como atingir a meta de venda de remédio na farmácia. Não importa como se vende, mas tem que vender. E assim não se apura mais nada, e se cai até na disputa com meninos e crianças que postam o que querem em facebook. Uma disputa pra ver quem vaza antes, sem saber se são fatos concretos. O risco para o Estado de Direito é que, ao menos até aqui, uma pessoa acusada tem direito de defesa. Sem ser sentenciada, não pode ser tratada como culpada.

 

Mas agora, segundo a imprensa brasileira, temos julgamentos instantâneos. Basta vazar delação que já se é tratado como alguém à beira de ser preso. A imprensa brasileira decidiu ser juiz. Por outro lado, o Sergio Moro – que até escreveu um texto nesse sentido – acredita que a imprensa (a “opinião pública qualificada”, como definiu) precisa ser usada para criar clima de terror e pressionar os acusados e seu entorno, para que todos fiquem assustados e passem a entregar uns aos outros.

 

Portanto, existe uma relação delicadíssima e pouco profissional entre uma investigação e os “vazamentos acusatórios” da grande imprensa.

 

Correio da Cidadania: Acredita numa “forçada de barra” para inflar os protestos anti-Dilma, marcados para o próximo dia 13 ou o quadro é ainda mais complexo?

 

Rudá Ricci: Estamos a um passo da venezuelização. Vai bastar um louco atirar um sapato numa autoridade pública, ou os apoiadores abraçarem o prédio onde Lula mora, e alguma reação oposta ser gerada. O Brasil está ensandecido e pode criar alguma reação de rua que comece a fazer rolar sangue na sarjeta, principalmente nos grandes centros. É uma irresponsabilidade e não estamos conduzindo as investigações, de maneira alguma, de forma madura. Parece, realmente, uma final de campeonato.

 

Correio da Cidadania: Acredita que o impeachment de Dilma volta a ganhar força ou estamos diante de uma luta pela eleição de 2018?

 

Rudá Ricci: Nem um pouco. O impeachment está fora de questão. Não existe possibilidade alguma no momento. Primeiro porque o governo tem a maioria da comissão especial da Câmara. Pode vir algo via TSE, mas ainda caberia recurso no Supremo. Impeachment não é a questão, tanto que não se ouve mais o Temer falar. O foco agora é Lula, não mais a Dilma. Quem tem o protagonismo da oposição hoje são a Operação Lava Jato e parte da grande imprensa. Não são mais os partidos de oposição, e muito menos o Congresso.

 

Correio da Cidadania: No meio disso, o STF votou pela abertura de processo contra Eduardo Cunha. Como esse elemento interage com o espetáculo da Operação Lava Jato?

 

Rudá Ricci: Eduardo Cunha está vivendo seus dias de Collor. Ele perdeu o apoio de todos os partidos, organizações, sindicatos empresariais e até da própria família. Eduardo Cunha chegou a essa situação. Seu poder estava na caneta, na possibilidade de financiar e prover recursos para suas bases de deputados. Na medida em que foi cercado, perdeu o poder da caneta, e assim vai sumir do mapa. Ele não conta mais nada.

 

No momento, infelizmente, o que conta é, de um lado, a liberdade de Lula, e de outro lado a Operação Lava Jato. Se for comprovado algo contra Lula, parte da estrutura política construída a seu redor é praticamente desfeita, some na história. E pra piorar, o que as pesquisas de Ibope e DataFolha revelam é que a oposição não tem força pra eleger seu nome. Se Lula começa a decair em termos de intenções de voto, todos os outros grandes candidatos caem também, com exceção da Marina. Mas ela não está no topo. No caso de o candidato ser Alckmin, ele fica em terceiro, atrás de Lula e Marina, por exemplo.

 

O índice de rejeição de todos os grandes nomes, inclusive da oposição, gira em torno de 50%. Portanto, não é o Lula que está perdendo, é o sistema de representação inteiro. Se não se comprova nada contra Lula, colocam-se em xeque as estruturas institucionais de poder no Brasil, principalmente MP e PF, incluindo o juiz Moro. Eles usaram tais estruturas para uma aventura. É uma aposta muito alta. Uma aposta que não terá vencedores no país, apenas derrotados. É temerário, irresponsável.

 

Sinto saudades de uma liderança política como Ulysses Guimarães, que tinha autoridade suficiente para falar: “parem meninos, chega de brincadeira, é hora de pensar no país”. Falta uma autoridade de tal estatura, fora dessa polarização ideológica, para dar fim a um Fla-Flu que está desgastando demais nosso país.

 

Correio da Cidadania: Para onde vai o Brasil em meio a esses escândalos todos, crise econômica, desemprego e avanço de diversas pautas conservadoras?

 

Rudá Ricci: Em meio à bagunça, estava melhorando um pouquinho. Os índices de popularidade do governo melhoraram e tivemos uma recuperação – apesar de lenta e frágil – da indústria. Aquilo que os grandes economistas do Brasil vinham apontando – que em 2017 a recessão será metade da deste ano e 2018 daria início à recuperação – estava sendo corroborado pelos dados econômicos.

 

Acontece que a atual histeria midiática é amoral. Ela não tem valor que unifique as pessoas. A ideia é atacar. Assim, cria-se uma instabilidade que acaba insuflando pessoas teoricamente de bem a entrar numa aventura de briga de rua.

 

O pacote do governo no ano passado foi desastroso para os trabalhadores. Mas já tínhamos tocado o fundo do poço. Começamos a melhorar. Porém, com a gritaria midiática do momento começamos a chacoalhar o país e podemos cair numa briga de rua. Espero sinceramente que o bom senso retorne aos poucos, como já ocorre na economia, e consigamos entender que investigação não é decisão judicial.

 

A investigação é a instrumentalização do judiciário, e não é ele que decide – a despeito da vontade de Sergio Moro – dar um julgamento sem chance de o acusado se defender. Existe um termo chamado “processo inquisitorial”, que se dá quando o acusador se confunde com o juiz. Isso depõe contra o Estado de Direito.

 

Reitero: ou a gente volta ao bom senso e repõe, aos poucos, uma base de disputa política e ideológica que não jogue o país numa aventura, ou partimos pra essa aventura. Estamos no limiar dessa decisão. A Globo, ao colocar o Lula falando ao vivo por 10 minutos (no momento desta entrevista), dá uma espécie de declaração de que foi um exagero. Espero que o bom senso comece a retornar aos meios de comunicação.

 

Correio da Cidadania: Como fica o grosso da população e o próprio movimento popular ante esse cenário? Qual deveria ser a reação organizada de uma oposição alternativa às forças dominantes?

 

Rudá Ricci: Nesse caso é bem mais difícil. Primeiro precisamos do mínimo de acordo, formar bases para uma alternativa ao desenvolvimento do país. Creio que teremos de começar do zero e do óbvio. Precisaremos de um acordo entre os brasileiros, no sentido de garantir a redução da desigualdade, o consumo das famílias e o emprego. É o básico. Um programa liberal-social, nem de longe de esquerda.

 

No entanto, a classe média do Centro-Sul refuta a primeira questão. É contra políticas distributivas que reduzam a desigualdade social. O discurso da classe média de são Paulo, por exemplo, é de recriminação a qualquer política distributiva, que denomina “populista”, “bolivariana”...

 

O problema é que não temos um acordo básico na população pra se pensar um programa alternativo de massa. Vamos ter de recomeçar de baixo. Fazer discussões na periferia, nas Igrejas, sindicatos, nas organizações de massa, a fim de reconstruirmos um acordo básico sobre o que queremos para o futuro do país.

 

São pontos essenciais para mais adiante concluirmos como deve ser a política tributária, a ação do Estado contra a sonegação, a função social da propriedade... Dos anos 80 pra cá, regredimos. O acordo básico da Constituinte de 1988 foi desfeito. E voltamos a caminhar rumo à barbárie. Ou seja, quem fala mais grosso e ameaça mais acha que vai ganhar.

 

Precisamos reconstruir um contrato social que atenda a maioria da população, pois o anterior foi desfeito.

 

 

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Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

 

 

 

Comentários   

0 #1 Precisamos mesmo de um novo contrato social?Alberto Nogueira 07-03-2016 11:12
Muito boa a entrevista. Como de costume, o CdC traz luz ao debate sério sobre os principais temas. Gostaria de colocar ao debate dos leitores se o que precisamos mesmo é de um novo contrato social, como sugere o autor, ou se precisamos de uma renovação do processo de mobilização dos trabalhadores, com vistas a fazer refluir a nova onda conservadora que, na crise (como de costume), faz recair seus custos sobre os trabalhadores?
Estimo que a formação de um novo pacto, na crise, é inviável. As classes dominantes não abrirão mão de socializar os prejuízos da crise. Estão a impor reformas liberalizantes e assim tendem a seguir.
Elas também estão num processo (inicialmente caótico) de restabelecimento da ordem, pois que, opino, estamos atravessando uma grande crise de representação (sugestão de tema para os amigos do CdC), caracterizada pelo esfacelamento da direita tradicional, cujos discurso e prática foram roubados pelo PT, e pelo super-esfacelamento da nova direita (liderada pelo PT), pois que nunca foi da confiança do capital.
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