“Um governo com 80% de aprovação não fazer nada por uma sociedade mais coesa realmente cometeu graves equívocos”
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- Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação
- 16/06/2016
O Correio prossegue na publicação de análises da política econômica do governo interino de Michel Temer e suas consequências nas áreas sociais. Dessa vez, entrevistamos Lena Lavinas, professora do Instituto de Economia da UFRJ com estudos focalizados nas políticas públicas de cunho social, claramente penalizadas no programa comandado pelo ministro da Fazenda Henrique Meirelles e, a seu ver, alvos constantes do processo de financeirização. “A medida mais grave é colocar justamente a previdência, a maior política social brasileira e algo em torno de 8,5% do PIB, nas mãos da Fazenda”.
Além de considerar que as novas medidas têm na mira favorecer de maneira forçosa o setor da previdência privada, que cresceu menos justamente por conta do aumento da formalização no mercado de trabalho, Lena critica a própria compreensão do caráter de correção de “gastos excessivos”, conforme falado diuturnamente pelos apoiadores, mais ou menos enrustidos, do novo governo.
“Não há uma complementaridade entre política social e política econômica para tentar sair da crise, o que evidentemente é uma visão equivocada, já que sabemos ser a política social fundamental justamente para relançar a economia e aquecer o mercado doméstico, um elemento dinâmico no processo de recuperação econômica, como aprendemos lá atrás no pós-guerra e em diversas outras crises no mundo,” explicou a economista.
No entanto, não deixa de lado a responsabilidade dos governos do PT, que tiveram excelentes condições para impor outra agenda econômica, para além do já clássico tripé macroeconômico herdado dos anos 90. “A situação de agora, evidentemente, não é causada por geração espontânea. É reflexo dos grandes equívocos cometidos pelo Partido dos Trabalhadores ao longo de seus 13 anos no poder. Um governo que teve 80% de aprovação, eleito também com o apoio das classes médias, e não consegue fazer nada para ter uma sociedade mais coesa e unificada, realmente cometeu equívocos muito grandes”, ponderou.
A entrevista completa com Lena Lavinas pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: O governo interino de Temer acaba de anunciar uma série de medidas na área econômica, com forte impacto social. Qual a sua avaliação da orientação econômica que já está clara, no que se refere aos seus impactos no financiamento e operação de áreas sociais em geral?
Lena Lavinas: Primeiramente, o que vimos até agora no governo interino de Temer é uma mudança de peões. Ele está substituindo pessoas à frente do IBGE, do Banco Central, do IPEA, isto é, está se cercando de pessoas que realmente fizeram oposição ferrenha à política expansionista da gestão Lula-Dilma. É a primeira constatação. No que diz respeito aos demais ministérios, as escolhas do governo interino são absolutamente medíocres e refletem, antes de mais nada, suas alianças políticas, que não têm um real compromisso com o país.
De fato, é um governo onde as orientações vão ocorrer pelo ponto de vista da política macroeconômica, ou seja, todas as políticas sociais são secundárias e subalternas, vão apenas refletir e resultar das diretrizes macroeconômicas. Isso é importante, porque mostra que não há uma complementaridade entre política social e política econômica para tentar sair da crise, o que evidentemente é uma visão equivocada, já que sabemos ser a política social fundamental justamente para relançar a economia e aquecer mercado doméstico, um elemento dinâmico no processo de recuperação econômica, como aprendemos lá atrás no pós-guerra e em diversas outras crises no mundo. Essa é uma primeira observação.
A segunda observação é que há uma clara orientação privatista no governo quanto à previdência social, ou seja, o regime geral da previdência social. O INSS e a previdência em si são deslocados para um ministério específico, o da Fazenda. Simplesmente, uma medida abusiva que contraria o bom senso e a institucionalidade consolidada e efetiva da previdência pública. Existe um orçamento específico para a seguridade social, ademais, superavitário. Ainda não temos déficit na seguridade social, apesar da DRU (Desvinculação de Receitas da União), que retira recursos na ordem de 50, 60 bilhões de reais ao ano do orçamento da seguridade.
Apesar de todas as desonerações que foram praticadas na gestão Dilma, a enfraquecer e debilitar bastante o orçamento da seguridade, a medida tomada pelo governo interino de Temer me parece ser a mais grave: colocar justamente a previdência social, que é a maior política social brasileira e representa algo em torno de 8,5% do PIB, nas mãos da Fazenda. Portanto, este governo interino tenta desmontar os mecanismos de financiamento da previdência para favorecer um setor que se expandiu menos nos últimos anos: os planos de aposentadoria complementar.
E por que eles se expandiram aquém do esperado pelo setor financeiro? Justamente porque nos últimos anos, entre 2003-2014, nós tivemos um fortalecimento do emprego formal. Essa formalização permitiu elevar significativamente as contribuições dos empregados e empregadores, e reforçou o orçamento da seguridade. Ademais, como houve expansão do mercado de consumo doméstico, houve também, pelo lado das contribuições sociais, um aumento expressivo das receitas exclusivas da Seguridade. Logo, o crescimento com formalização fortaleceu a previdência pública, instituição benquista e que tem o respeito e a confiança da população brasileira.
Também Cofins, CSLL, PIS e impostos sobre o consumo tiveram sua alíquota ampliada e contribuíram para ampliar o orçamento da seguridade. O que devemos assistir com a eventual desvinculação do salário mínimo (não acredito que seja aprovada), ao lado de medidas como manutenção das desonerações, é uma tentativa de reduzir o escopo, a amplitude e a relevância da previdência pública e do fundo público, a fim de fortalecer a previdência privada, que cresceu pouco justamente em razão da conjuntura descrita acima. Hoje, ela representa alguma coisa em torno de 2% do PIB, enquanto temos 8,5% do PIB na previdência pública. É esse fundo público que será objeto de grande disputa.
Correio da Cidadania: Nesse contexto, o que deve acontecer mais especificamente com duas áreas tão essenciais como saúde e educação?
Lena Lavinas: A vinculação de receita para saúde e educação é preceito constitucional e o governo interino vai querer mudar isso. Eu não sei se vão conseguir aprovar. Podem até querer, mas acredito que, na medida em que temos um Congresso igualmente medíocre, oportunista e fisiológico, o pessoal vai se preocupar um pouquinho com suas respectivas eleições, em 2018. Se fosse início de governo seria mais fácil, por ter quatro anos adiante, mas agora a coisa está um pouco complicada.
A tentativa de desvinculação é gravíssima. Primeiro porque é uma quebra constitucional; em segundo lugar, vai agravar ainda mais o efeito da desvinculação da receita da União, frente em que eles já estão atacando, ou seja, esvaziar os orçamentos da educação e da saúde de duas maneiras. Uma porque vão passar a DRU por mais quatro anos, desta feita elevando a alíquota de 20% para 30%, um total escândalo. Só para ter uma ideia, entre 2000 e 2014, via DRU, foram retirados do orçamento da seguridade social, portanto da saúde, da assistência e da previdência, 820 bilhões de reais em valores constantes de dezembro de 2015. É uma fortuna.
Em 2014, gastamos com saúde pública R$ 80 bilhões. Imagina que foram 10 anos de gastos com saúde retirados em 15 anos de governo do PT do orçamento da seguridade social. Só que antes a alíquota era de 20%; agora serão 30%. A educação havia conseguido, há cerca de quatro anos, suprimir a incidência da DRU sobre seu orçamento. Agora, ela volta maior. É extremamente grave, visto que temos poucos recursos, até porque se esperava melhorar as receitas para a educação com o Pré-Sal, o que também está em suspenso. Tampouco sabemos como vai evoluir a questão da Petrobrás e do Pré-Sal, pois certamente haverá privatização de algumas áreas.
É uma situação indefinida. É mais fácil aprovar a DRU com apoio desse Congresso absolutamente medíocre e fisiológico. Trata-se, simplesmente, da desvinculação das receitas de saúde e educação. Eu não sei se será aprovada, mas o fato de a DRU passar – fato já consumado na Câmara dos Deputados – já é um descompromisso muito grande no que tange justamente o financiamento das políticas de educação e saúde, que vêm sendo privatizadas. São duas áreas que já vêm passando por um processo de privatização aceleradíssimo. Portanto, tende a se agravar o aumento das desigualdades de acesso em ambos os setores, reduzindo oportunidades entre brasileiros afluentes e aqueles desfavorecidos.
Correio da Cidadania: Considerando que as expectativas com relação a esse governo interino não eram nada favoráveis, vamos retomar os governos Lula e Dilma. Que avaliação você faz desses dois governos com relação ao seu desempenho em áreas sociais de uma forma geral, especialmente no que diz respeito à polêmica em torno do assistencialismo versus universalização de políticas sociais?
Lena Lavinas: A situação de agora, evidentemente, não é causada por geração espontânea. É reflexo dos grandes equívocos cometidos pelo Partido dos Trabalhadores ao longo de seus 13 anos no poder. Treze anos nos quais os governos Lula e Dilma chegaram a ter praticamente 80% de aprovação. Um governo que teve 80% de aprovação, eleito também com o apoio das classes médias, e não consegue fazer nada para ter uma sociedade mais coesa e unificada, realmente cometeu equívocos muito grandes. Mas sabemos por que não o fez.
O governo manteve uma política de preservação do tripé macroeconômico, uma política bastante conservadora, com superávits primários elevados mesmo em períodos de crescimento. Podiam ter feito mais investimento social, pecaram em não incentivar mais o investimento público, que poderia alavancar o investimento privado. Houve muitos equívocos do ponto de vista da política macroeconômica. E do ponto de vista da política social, o que o governo do PT fez foi aplicar uma política claramente neoliberal.
A menina dos olhos do governo, aplaudida internacionalmente, foi o Bolsa Família, que nada mais é do que garantir mínimos sociais em níveis muito baixos. Afinal, em um país de renda média alta como o Brasil, dar em média 160 reais por mês para uma família é lamentável, muito baixo. Inclusive durante cinco anos dos governos Lula e Dilma, entre 2009 e 2013, a linha de pobreza e indigência não foi indexada à inflação, o mesmo ocorrendo com os benefícios do Bolsa Família. Perderam, portanto, valor real. Mais grave ainda, este programa nunca se tornou um direito. O governo do PT sai de cena sem ter consolidado o Bolsa Família como um direito, à imagem do que é o Benefício de Prestação Continuada, no qual ninguém pode mexer sem que haja dois terços de votos no Congresso, por ser um preceito constitucional.
Foi claramente uma escolha do governo fortalecer políticas residuais em detrimento de políticas universais como as de saúde, certamente o setor que mais sofreu. A saúde passou por um processo de privatização muito acentuado, com o crescimento exponencial da oferta privada, uma série de modalidades novas de seguro vendidas pelo setor financeiro e por aí vai.
A educação também sofreu. Em todos os décimos da distribuição vemos um deslocamento: à medida que a renda dos trabalhadores aumentava, as pessoas tendiam a colocar os filhos em escolas privadas, pensando ser melhor justamente porque o ensino público está completamente desconfigurado, desvalorizado e descreditado. Assim, se a renda está subindo e a previdência pública é deficiente, faz-se uma transição para o setor privado – que ao mesmo tempo não é regulado e não oferece serviço de qualidade.
Para concluir, ao longo desses 13, 14 anos de governo do PT tivemos uma elevação do salário médio da ordem de 1,9% ao ano, enquanto os custos da saúde privada aumentaram 8,5% ao ano e os custos da educação privada 7,7% ao ano. Portanto, é evidente que as pessoas passaram a se endividar para ter acesso a tais serviços. E eles passaram a pesar no orçamento das famílias, apesar de ter havido uma elevação dos rendimentos dos salários médios das mesmas. Tudo isso por falha na provisão pública dos governos do PT, que nunca tiveram comprometimento com a esfera pública.
Correio da Cidadania: Quanto ao já mencionado Bolsa Família, que avaliação que você faria do programa mais especificamente nesses governos, considerando os rumos que tomou e pode tomar?
Lena Lavinas: O Bolsa Família não tem nada de inédito, é um programa que já se pratica nas economias mais avançadas, como no modelo norte-americano de garantir renda para os muitos pobres. É absolutamente indispensável e foi fundamental o governo do PT ter estendido a cobertura de uma renda de sobrevivência aos mais carentes e vulneráveis. A Constituição estabelece como preceito garantir uma renda mínima para as famílias comprovadamente pobres.
Assim, tínhamos, de início, na assistência social, apenas os benefícios de prestação continuada que só eram alcançados pelas pessoas pobres, portadoras de deficiência ou idosos com mais 65 anos. Depois, finalmente se estendeu a cobertura e o direito a uma renda mínima de sobrevivência para uma clientela cujo perfil não se restringe aos idosos ou portadores de deficiência muito pobres.
Isso é muito importante porque, evidentemente, alcança muitas famílias, crianças etc. Sem dúvida, o Bolsa Família foi de grande relevância, é indispensável e deve ser mantido. O grande problema é que nunca se fez dele algo melhor. Primeiro, a linha de pobreza é muito baixa – 77 reais na linha de indigência e 154 reais na linha de pobreza; em termos atualizados, deveria estar em R$ 101 para a linha de indigência e R$ 202 para a linha de pobreza. Os pobres já foram lesados porque, como disse, a linha de pobreza não acompanhou a indexação necessária com a inflação passada.
Em segundo lugar, o beneficio é muito baixo, realmente muito aquém de um mínimo vital. Ao mesmo tempo, o Bolsa Família reflete aquilo que é a lógica neoliberal mais acabada, justamente a de garantir a renda para solucionar falhas de mercado. Para se garantir que o excedente econômico se realize no mercado, todo mundo precisa ter renda. E não foi o Brasil, foi toda a América Latina que adotou esse tipo de programa neste início de século 21. Na África também há programas assim, não é nada de novo, nada de extraordinário. Reflete a lógica neoliberal: garantir uma renda mínima para todos, mas a provisão pública e desmercantilizada de serviços que são direitos constitucionais vai desaparecendo, tornando-se crescentemente privada.
Assim, consegue-se tornar a economia mais vibrante por ampliar muito o escopo do mercado doméstico, garantir trocas internacionais, aumentar as importações etc., porque todo mundo tem uma renda que, aliás, acaba servindo colateralmente para as pessoas poderem tomar empréstimos no setor financeiro. Hoje, temos empréstimos de valores bastante baixos, que contribuem justamente para manter essa população como consumidora num mercado de consumo de massa. Essa foi a grande obra do governo do PT: promover a transição para uma economia de consumo de massa, sem fomentar as bases para uma real equalização no acesso a bens públicos. E isso ao preço de um constante processo de endividamento das famílias.
Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.
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