Luiza Erundina: “teremos um período de instabilidade seguida de ressignificação da política”
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- Gabriel Brito e Raphael Sanz, da Redação
- 26/09/2016
As eleições municipais se aproximam em meio a um “refluxo” político e social, desgastadas pela crescente deslegitimação da classe política. Ao lado disso, as campanhas parecem ter tido seu tempo acelerado em meio a um cenário nacional intenso e traumático, que levou ao impeachment do segundo presidente eleito por voto direto desde a redemocratização do país. Para uma reflexão sobre esse momento, da crise generalizada às eleições municipais, conversamos com Luiza Erundina, candidata a prefeita de São Paulo pelo PSOL, cargo que ocupou de 1989 a 1992.
“Haddad fez uma boa gestão em diferentes aspectos. Trouxe propostas interessantes para a cidade, como a criação da Controladoria do Município, a negociação da dívida com a União e as políticas de cultura e de mobilidade. Porém, a prefeitura segue funcionando numa lógica de terceirização dos serviços públicos. Hoje, 65% dos equipamentos de saúde estão nas mãos das OSs. A maioria das creches que o prefeito diz que entregou é gerida por convênios com a iniciativa privada e a ampliação, na educação infantil, para as escolas em ‘tempo integral’, não foi acompanhada das condições ideais”, analisou.
Enquanto há um debate aparentemente estéril em setores ditos de esquerda, a elucubrar uma suposta divisão em suas fileiras, a ponto de sugerir a desistência da candidata em favor do avanço de Haddad ao segundo turno (teoria pouco amparada em dados concretos), Erundina fala de uma onda conservadora que toma conta de fatos e debates muito além de meras eleições. O que não a impede de abordar a fragilidade da retórica petista e sua exigência de “unidade”.
“A eleição de Rodrigo Maia, infelizmente, foi mais do mesmo. E foi triste ver que alguns partidos que se afirmam de esquerda trabalharam nos bastidores por seu nome, na linha do ‘menos pior’. Rodrigo Maia não é ‘menos pior’, e a prova nós tivemos na última semana, quando ele autorizou colocar em votação Projeto de Lei de 2007, que estava parado, e quase anistiou todos os políticos que haviam praticado caixa 2”, pontuou, ao comentar a queda de Eduardo Cunha e uma eleição para a Câmara na qual restou-lhe o simbolismo de “anticandidata”.
Por fim, Erundina comentou as intenções do governo Temer, que “vai aproveitar a maioria na Câmara para aprovar rapidamente o maior retrocesso que este país já viveu em termos de direitos sociais e trabalhistas”, e elencou algumas pautas que podem unir setores que se compreendem progressistas em pautas mais objetivas.
“O que unifica a esquerda hoje é: lutar contra a PEC 241, que impõe teto para gastos como saúde e educação; a Reforma da Previdência, que penaliza os trabalhadores com o aumento do tempo de contribuição; e a Reforma Trabalhista. Precisamos de uma esquerda que também mostre à população não ter medo de investigar e combater a corrupção, que defende a ética na política em todos os aspectos. O saldo positivo é que a sociedade passou a discutir mais política e a juventude se mobilizou”, resumiu.
A entrevista completa com Luiza Erundina pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Quais são suas principais ambições políticas no momento em que a senhora acaba de se filiar ao PSOL? Que expectativas carrega?
Luiza Erundina: Filiei-me ao PSOL porque é o partido com o qual hoje tenho maior identidade ideológica e de prática política. Já estava votando com o partido há muito tempo no Congresso e isolada politicamente dentro do PSB. Infelizmente, minha legenda anterior só tinha de socialista o “S” na sigla. Tomou decisões políticas muito equivocadas no último período e eu já não me sentia mais à vontade ali.
Fui convidada, então, a ingressar nas fileiras do PSOL e, como já participava de um processo de construção do Raíz – hoje um movimento cidadanista, mas que pode vir a ser um partido –, entrei no PSOL por meio de uma filiação democrática.
Agora, minha ambição política é vencer a disputa pela prefeitura de São Paulo e, além de transformar a cidade, contribuir para transformar também o país. É urgente resgatarmos a democracia, que foi brutalmente atingida com este golpe parlamentar e trabalharmos para reconstruir a esquerda e seus valores em nossa sociedade.
Correio da Cidadania: Que avaliação faz da atual gestão municipal e quais erros e acertos destacaria?
Luiza Erundina: Haddad fez uma boa gestão em diferentes aspectos. Trouxe propostas interessantes para a cidade, como a criação da Controladoria do Município, a negociação da dívida com a União e as políticas de cultura e de mobilidade, com as ciclovias, as faixas exclusivas para ônibus e a redução dos limites de velocidade.
Porém, a prefeitura segue funcionando numa lógica de terceirização dos serviços públicos. Hoje, 65% dos equipamentos de saúde estão nas mãos das OSs, gerando duplo comando, conflitos entre funcionários e problemas sérios na qualidade do serviço prestado. A maioria das creches que o prefeito diz que entregou é gerida por convênios com a iniciativa privada. Em muitas delas, as crianças ficam confinadas, sem qualquer acesso a uma área verde. A ampliação, na educação infantil, para as escolas em “tempo integral”, não foi acompanhada das condições ideais. As crianças ficam 7 horas sentadas, sem que os professores tenham condições de elaborar qualquer alternativa em termos de projeto pedagógico.
No transporte, os contratos de concessão das linhas de ônibus não foram atualizados e hoje a superlotação é insuportável. O direito à mobilidade ainda não é garantido como mobilidade social. Por fim, é importante dizer que faltou diálogo da gestão com a cidade. As decisões seguem sendo tomadas de maneira centralizada, sem considerar as especificidades de cada região e sem consulta à população.
Correio da Cidadania: Quais devem ser as prioridades da prefeitura nos próximos quatro anos?
Luiza Erundina: Em primeiro lugar, congelar (não ampliar) novos contratos e convênios com OSs ou com a iniciativa privada. A prefeitura precisa deixar de ser refém dessas organizações e retomar o comando da maioria dos serviços públicos da cidade. Em segundo, é preciso definir as prioridades para a população em diálogo com os moradores de São Paulo, de maneira participativa e descentralizada. São Paulo deve ser uma cidade das pessoas e seu futuro tem de ser construído a partir das demandas e expectativas de seus cidadãos.
Alguns temas, entretanto, a prefeitura deve tratar como centrais, como zerar o déficit de mais de 100 mil vagas nas creches; reconstruir o Programa Saúde da Família, investindo na saúde preventiva e ampliando as unidades especializadas e hospitais – na minha época, fizemos sete; implantar progressivamente a tarifa zero na cidade; e retomar os mutirões para a construção de moradias populares.
Para fazermos tudo isso, vamos ampliar o caixa da prefeitura, cobrando os grandes devedores da cidade (hoje a dívida ativa do município é de mais de 60 bilhões), implantando o IPTU progressivo, para imóveis de mais de R$ 5 milhões, e combatendo os sonegadores.
Correio da Cidadania: O que pensa das novas regras eleitorais, que entre outras coisas limitaram o financiamento empresarial de campanha, mas também criam dificuldades para a inserção de partidos atualmente menos representados no parlamento?
Luiza Erundina: A cada véspera de eleições, o Congresso muda as regras eleitorais para favorecer cada vez mais os de sempre. Dessa vez não foi diferente. Chamaram de reforma política, mas, na realidade, esta foi uma antirreforma. Nem mesmo a proibição do financiamento empresarial foi resultado da votação na Câmara. Quem proibiu foi o STF. Na prática, a “reforma política” aprovada priorizou os partidos grandes e, sob o pretexto de combater as legendas de aluguel, atingiu significativamente partidos como o PSOL, que agora praticamente não têm tempo nos meios de comunicação de massa para apresentar suas propostas à população.
Tivemos de ir ao STF para garantir nossa participação nos debates, porque até isso quiseram tirar de nós. Pense no descalabro que é uma regra que permite a um candidato definir se seu adversário pode ou não participar de um debate eleitoral. É inacreditável. E os resultados dessas medidas autoritárias estão sendo sentidos agora. Com a enxurrada na televisão da propaganda de alguns candidatos e a invisibilização de outros, as intenções de voto estão mudando e partidos ideológicos e programáticos como o PSOL estão sendo claramente prejudicados.
Correio da Cidadania: Ainda dentro desse contexto, como viu a cassação do deputado Eduardo Cunha, um dos grandes artífices da referida reforma?
Luiza Erundina: Foi fundamental, uma das conquistas que conseguimos obter em meio a esta grande crise política que ataca a democracia do país. E foi resultado direto da atuação e combatividade do PSOL no Congresso Nacional. Enquanto muitos duvidavam da importância em denunciar Cunha e outros defendiam descaradamente o ex-presidente da Câmara, o PSOL foi firme desde o início, representou no Conselho de Ética e ajudou a mobilizar a sociedade para pressionar a Câmara por sua cassação. É um exemplo de que a mobilização popular pode alterar correlações de força no Congresso. E de que o combate à corrupção não pode ser seletivo.
Correio da Cidadania: Para muitos, a senhora foi uma anticandidata à presidência da Câmara. Como enxergou o mais recente processo eleitoral, a colocar Rodrigo Maia (DEM) na chefia da casa?
Luiza Erundina: O PSOL sempre apresenta candidatos à presidência na Câmara. Isso porque nosso partido tem propostas diferentes das que sempre estão na mesa para dirigir com democracia e transparência o Congresso. A eleição de Rodrigo Maia, infelizmente, foi mais do mesmo. E foi triste ver que alguns partidos que se afirmam de esquerda trabalharam nos bastidores por seu nome, na linha do “menos pior”.
Rodrigo Maia não é “menos pior”, e a prova nós tivemos na última semana, quando ele autorizou colocar em votação Projeto de Lei de 2007, que estava parado, e quase anistiou todos os políticos que haviam praticado caixa 2. O projeto só não passou porque o PSOL, ao lado de partidos como a Rede, literalmente gritou contra a proposta.
Na prática, temos também na presidência da Câmara alguém que atende ao comando do governo golpista de Temer e conduzirá os trabalhos para garantir a aprovação, o mais rápido possível, do programa do golpe, com impactos seríssimos para os trabalhadores e a população mais pobre do país.
Correio da Cidadania: Que papel acredita que a Câmara desempenhará na gestão provisória de Michel Temer?
Luiza Erundina: Infelizmente, também essa gestão não é mais interina, apesar de totalmente ilegítima, imoral e ilegal. Temer vai aproveitar que tem maioria na Câmara para aprovar rapidamente o maior retrocesso que este país já viveu em termos de direitos sociais e trabalhistas, e também do ponto de vista da cultura, com a legitimação desta forte ascensão do conservadorismo. A MP que acaba de ser assinada para mudar o ensino médio, por exemplo, é bastante simbólica neste sentido.
Apesar de Temer dizer que “era errada”, o governo assinou uma proposta que excluía dos currículos disciplinas como filosofia e sociologia, retirando da juventude qualquer espaço para a promoção de uma reflexão crítica nas escolas. É o mesmo tipo de objetivo perseguido quando ele ataca a autonomia e promove o desmonte da EBC, a empresa pública de comunicação, ou quando quase acabou com o Ministério da Cultura. Temer vai tentar passar tudo isso no Congresso, onde tem maioria tanto na Câmara e como no Senado.
É preciso lembrar que esta é a Câmara que votou pelo impeachment de Dilma. Mudança ali só com muita pressão de baixo pra cima. Para que a Câmara não seja uma mera carimbadora e avalista deste retrocesso, precisaremos de muita resistência, dos deputados ainda comprometidos com a democracia, com direitos e com valores progressistas, e também da população, que precisará, como nunca, pressionar seus representantes para evitar o mal maior.
Correio da Cidadania: Como enxerga a esquerda brasileira nesse momento histórico, pós-impeachment de Dilma Rousseff? Em que deveria focalizar seus esforços?
Luiza Erundina: A esquerda brasileira precisa ter foco para viabilizar a resistência ao governo Temer e conquistar as eleições diretas através do voto popular. Para acumular forças, precisamos de uma plataforma política que mostre que o governo golpista veio para acenar ainda mais para o mercado financeiro.
O que unifica a esquerda hoje, portanto, é: lutar contra a PEC 241, que impõe teto para gastos como saúde e educação; lutar contra a Reforma da Previdência, que penaliza os trabalhadores com o aumento do tempo de contribuição; lutar contra a Reforma Trabalhista, que aumenta jornada, flexibiliza direitos e pode acabar com conquistas históricas como o 13º salário.
Precisamos de uma esquerda que também mostre à população não ter medo de investigar e combater a corrupção, que defende a ética na política em todos os aspectos. Estes devem ser nossos focos neste momento.
Correio da Cidadania: O que vislumbra para o Brasil no próximo período, em meio a diversas manifestações contra o novo governo e uma série de crises ainda sem solução?
Luiza Erundina: Teremos um período de instabilidade política em que haverá um crescimento da insatisfação de trabalhadores e trabalhadoras, politicamente conturbado em decorrência das perdas de direitos e das políticas econômicas. Nesse governo autoritário, não há projeto de país, apenas medidas pontuais que favorecem a poucos. Um exemplo é a reforma do Ensino Médio, que não deu margem à discussão de projetos nem sequer ao Congresso, quanto mais aos especialistas e à comunidade escolar.
O saldo positivo é que a sociedade passou a discutir mais política e a juventude se mobilizou, reagiu e está protagonizando a política. Os jovens sairão mais maduros, já que se formam politicamente fazendo política. Teremos a formação de novas lideranças e ressignificação da política.
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Gabriel Brito e Raphael Sanz são jornalistas do Correio da Cidadania.