Vida Além do Trabalho: luta pela abolição da escala 6x1 toma as ruas
- Detalhes
- Raphael Sanz, da Redação (texto e fotos)
- 19/11/2024
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Na última sexta-feira (15), dia da Proclamação da República, a classe trabalhadora brasileira saiu às ruas das principais cidades do país, embalada pelo movimento VAT (Vida Além do Trabalho), para exigir a abolição da escala 6x1 no mercado de trabalho. Florianópolis, capital de Santa Catarina, foi uma das cidades em que as mobilizações começaram mais cedo, com concentração diante do Ticen (Terminal [de ônibus] de Integração do Centro) a partir das 10h da manhã e presença da reportagem do Correio. Horas mais tarde, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre e outras também sairiam às ruas.
Em seu auge, a manifestação contou com cerca de 2 mil pessoas, o que foi um tanto surpreendente para a capital catarinense que fazia algum tempo não era palco de manifestações sociais. A pauta engaja, e o VAT local recebeu o apoio de dezenas de organizações para realizar o protesto que percorreu o centro da cidade sem registrar quaisquer ocorrências negativas. “Não caiam em provocações das forças de segurança”, disse uma das vozes que falou aos presentes ainda na concentração, antes da marcha começar.
A partir das 10 horas as pessoas começaram a se reunir. Às 11h foram feitas uma série de falas dos representantes das organizações que compuseram o ato ao lado do movimento VAT. Pouco antes do meio dia a manifestação saiu em marcha, percorreu o centro velho de Florianópolis e terminou por volta das 13h com um jogral e a promessa de que “amanhã vai ser maior”.
“Tivemos um ato pacífico, tranquilo, com adesão de diversas ideologias, profissões e meios diferentes. Tivemos uma manifestação simbólica, acredito que uma das mais simbólicas aqui na capital nos últimos tempos, com o apoio de mais de 70 movimentos sociais, culturais, políticos e sindicais. Fizemos um bom trabalho e é apenas o começo”, avaliou Vanessa, da coordenação do VAT em Santa Catarina.
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
O público foi variado. Trabalhadores da escala 6x1 que porventura estavam de folga, estudantes, sindicatos, partidos de esquerda – especialmente aqueles identificados como socialistas e comunistas -, e toda uma miríade de pessoas que são contrárias a essa faceta da superexploração capitalista dos dias atuais. O tom, ao contrário do que nos acostumamos a ver, é de combate. “Sem negociação com patrão, fim da escala 6x1 é solução”; “trabalhador, preste atenção, escala 6x1 só é boa pro patrão”; e “um dois três quatro cinco mil, derruba a escala ou paramos o Brasil” foram algumas das palavras de ordem e frases de cartazes que podíamos ver e escutar.
Em reportagem à Carta Capital, o jornalista Marcelo Soares definiu o objeto do protesto como “a cara do Brasil que trabalha demais e ganha de menos”. A matéria ainda trouxe dados da Lagom Data que apontam que dois terços dos contratos formais de trabalho no Brasil estão celebrados com a escala 6x1 – em números absolutos seriam 32 milhões de trabalhadores. Dentre as mulheres pretas que estão no grupo, 90% recebe menos do que 2 salários mínimos – porcentagem que cai para um ainda alto 68% em se tratando de homens brancos.
“Estamos aqui hoje na luta pelo fim da escala 6x1, porque acreditamos que o trabalhador é superexplorado pelo sistema. Um sistema que não se preocupa se o trabalhador terá tempo ou não para ficar com sua família, que recebe pouco para pagar alugueis extremamente altos. A isso se soma um transporte público que pode nos tomar horas para ir e voltar, o que torna essa escala ainda mais desumana. Enquanto isso, os engravatados de Brasília trabalham numa escala 3x4 e o trabalhador que está aqui, na vida real, trabalha 6 dias para folgar 1. O fim da escala 6x1 é só o estopim, o ponto de partida de uma luta maior”, analisou Felipe Bezerra, morador e coordenador da Ocupação Carlos Marighella (Palhoça-SC) e militante do PCBR.
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Veja vídeo com imagens do protesto
As ruas reivindicam a pauta
A abolição da escala 6x1 é uma urgência da classe trabalhadora brasileira muito antes de Rick Azevedo (Psol-RJ) formar o VAT nas redes sociais e da deputada federal Erika Hilton (Psol-SP) articular a PEC (proposta de emenda à Constituição) que pode finalmente trazer a abolição desse regime de trabalho considerado por muitos como uma espécie de escravidão moderna e assalariada.
A pauta ganhou a notoriedade na internet e assim conquistou a atenção do parlamento e da imprensa. A razão para isso parece ser mais do que óbvia: o fim da escala 6x1 toca no âmago da alma da classe trabalhadora. Como explicado pelo militante comunista acima entrevistado, é preciso ter tempo livre para cuidar da família, da saúde e, para aqueles que assim desejam, lutar por um mundo realmente melhor. Ainda que uma melhor jornada esteja inserida numa perspectiva de gestão do capitalismo como apontam alguns críticos, trata-se de algo mais urgente: o cotidiano da classe trabalhadora, distante do tato de alguns daqueles analistas. Ou seja, não é apenas a economia. É o cuidado, o lazer, o estudo, é poder ter uma vida, e construí-la através do trabalho ou apesar dele.
Partindo de uma situação absolutamente orgânica, o barulho que Rick Azevedo (recém-eleito vereador do Rio de Janeiro pelo Psol graças a sua atuação em torno da pauta nas ruas e redes) e o VAT fazem foi fundamental para que a deputada psolista fizesse o que se espera de um parlamentar de esquerda: redigir e articular apoio a uma PEC que é de interesse do conjunto dos trabalhadores. Se será vitoriosa ainda não sabemos.
No momento, a deputada conseguiu 233 assinaturas favoráveis à PEC e já pode protocolar o texto – o número mínimo de assinaturas para que isso seja possível é de 171. Mas ela pretende angariar um número maior de apoios uma vez que para ser aprovada a PEC precisa de 308 votos na Câmara, ou três quintos dos deputados federais. O texto ainda prevê o estabelecimento de uma jornada de 36 horas de trabalho semanais distribuídas ao longo de 4 dias da semana. Alguém dúvida que deputados e senadores tentam derrubar essa parte?
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Enquanto isso, Rick Azevedo se prepara para tomar posse em 2025 como vereador carioca e organiza uma série de panfletagens e protestos de rua por meio do Movimento VAT. O objetivo parece ser justamente levar a pauta para o palco onde é a classe trabalhadora quem dá as cartas: as ruas. Sem essa presença física, dificilmente o Congresso – historicamente dominado por todo tipo de patrão – votará a favor da PEC.
Vanessa, da coordenação do Movimento VAT em Santa Catarina, contou alguns bastidores da mobilização local. Ela explica que o movimento é encabeçado no Rio de Janeiro pelo próprio Rick Azevedo, que faz a gestão da comunicação tanto para o público, centralizando as páginas do movimento nas redes sociais, como entre as coordenações estaduais e pessoas envolvidas diretamente com o VAT.
“Nossa ação de formação se dá por meio do panfletaço. Vamos nas lojas, fazemos o panfletaço, falando com o trabalhador brasileiro sobre a escala 6x1. Isso ocorre em todo o Brasil e sim, já sofremos retaliações. E todo tipo de acusação que vocês puderem imaginar, de todos os campos políticos e dos empresários. Mas estamos nas ruas”, declarou a militante, que está há cerca de um ano com o VAT e mostrava um semblante cansado após dias de ações de mobilização.
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Um pouco de história
No início do século 20, as fábricas brasileiras, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, eram lugares onde se admitia trabalho infantil, jornadas superiores a 14 horas diárias e outras práticas hoje consideradas análogas à escravidão. Em 1917, paralelamente à Revolução Russa, o movimento operário paulistano, de hegemonia anarcossindicalista, organizou uma greve geral contra aquelas condições de trabalho que impulsionou uma série de campanhas no mesmo sentido nos anos seguintes. ‘Curiosamente’, esse movimento é pouco conhecido.
Já nos anos 30, com Getúlio Vargas no poder, foi concedida a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) como uma forma de apaziguar aquele ciclo de lutas iniciado anos antes. Estabeleceu-se uma jornada máxima de 8 horas diárias, entre diversos outros direitos trabalhistas concedidos naquela ocasião ou ao longo das décadas seguintes, como o décimo terceiro salário.
À época, dizia-se que o Brasil quebraria. Tal como hoje é possível vermos na boca de deputados da extrema direita e dos meios de comunicação que a eles fazem assessoria de imprensa. O Brasil não quebrou e a vida seguiu um pouco melhor do que antes, ainda que continuasse ruim.
Em 1962, a criação do 13o. salário, então qualificado como gratificação de Natal, foi condenada em manchete do jornal O Globo, com o título até hoje resgatado para lembrar como funciona a ideologia patronal na hora de fazer qualquer concessão a trabalhadores: "Considerado um desastre para o país um décimo terceiro saláro". Tal como hoje, as fontes que avalizavam a afirmação eram o tal "mercado". E o tema foi central para motivar a burguesia brasileira a participar ativamente do golpe que instalou a ditadura de 1964.
Décadas mais tarde, em 1988, quando saíamos da ditadura civil-militar iniciada em 1964, a Assembleia Constituinte havia previsto uma jornada de trabalho máxima de 40 horas semanais, ao contrário das 48 horas vigentes durante o desgraçado período dos generais. Essas 40 horas equivaleriam a jornadas de 8 horas diárias ao longo de cinco dias da semana. Mas o Congresso Nacional, sempre fiel a quem o financia, negociou um ‘meio-termo’ para o texto final: as atuais 44 horas semanais que, na prática, derivam para a jornada 6x1 com pequenos ajustes contratuais permitidos pela Reforma Trabalhista aprovada durante o Governo Temer.
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Quem tem medo das ruas?
Nos últimos anos diferentes categorias precarizadas e subrepresentadas têm se apresentado à luta de classes. Em 2020, durante a pandemia, foram os trabalhadores de aplicativos – entregadores, motoristas etc. - que tomaram as ruas em busca de melhores condições de trabalho. Dessa vez são trabalhadores formais, que rompem as máscaras da hipocrisia neoliberal para dizer que mesmo assinando carteira vivem um regime de semiescravidão. Em comum, a precarização, os salários baixos, a instabilidade e a sub-representação.
Tal como no caso pandêmico dos entregadores, a mobilização contra a escala 6x1 não tem assombrado apenas o empresariado mais medieval ou os políticos mais eticamente questionáveis da extrema direita, mas a própria esquerda da ordem, representada por um progressismo conspiratório de “guerra híbridas”, “identitarismos” e “revoluções coloridas". Enquanto seus quadros mais sagazes pedem que se dê atenção à demanda, esse setor já busca desculpas para, tal como Kiko, “não se misturar com aquela gentalha”. Mal sabem eles que mais da metade da classe trabalhadora é composta por mulheres e negros.
“Isso tem um potencial de ser um novo junho de 2013”, gritam, em tom de denúncia, esperando a próxima derrota eleitoral para culpar o “pobre de direita”. Mas se questionar o papel do trabalho nas nossas vidas invariavelmente levar a uma nova revolta que nossa esquerda da ordem não possa dirigir, que assim seja! Foi assim com a CLT.
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
Manifestação do Movimento VAT em Florianópolis. 15 de novembro de 2024. Créditos: Raphael Sanz/Correio da Cidadania
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Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.