Lula na Casa Civil: o que muda para a esquerda?
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- Fábio Nassif
- 17/03/2016
A presidenta Dilma Rousseff (PT) decidiu nesta quarta-feira nomear o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil. Os impactos concretos disso são incertos. A entrada de Lula poderá dar uma sobrevida ao governo Dilma, como poderá levar ainda mais as investigações de corrupção para dentro do Palácio. Mas vale a reflexão: o que isso muda para a esquerda socialista?
A primeira coisa que veremos serão suspiros de alívio e até comemoração de parte da sociedade que sentiu o baque das manifestações reacionárias e muito massivas do último dia 13. Faz sentido para quem enxerga que existe um golpe de Estado em curso, onde uma grande conspiração envolvendo as instituições da Justiça, a Polícia Federal, a grande mídia, empresários, as Forças Armadas e até o Obama estariam alinhadíssimos para derrubar Dilma.
Outros setores, bem mais entusiasmados – inclusive por estarem bem mais encurralados – vão além: irão resgatar o discurso de que a entrada de Lula irá significar um giro à esquerda no governo. Para acreditar nisso é necessário uma boa dose de amnésia, de capitulação ou de uma crença mitológica absurda. Ou os três juntos.
A força política de Lula é inquestionável. E ela é tão grande que demonstrou ter capacidade de domesticar boa parte do movimento social e construir aliança com boa parte da burguesia e seus representantes. Demorou, mas hoje qualquer cabeça pensante identifica que o projeto petista de poder foi balizado pela conciliação de classes e pela coalizão com parte da direita tradicional e com setores do grande capital, especialmente o tripé empreiteiras, agronegócio e capital financeiro (acreditem: tem gente que afirma que esta política conciliatória não daria certo, do ponto de vista da vertebração de um projeto de esquerda, há mais de 13 anos... O PSOL surgiu justamente em contraposição a este projeto).
Os setores que estão comemorando a entrada de Lula no governo precisam decidir se isso significa um giro à esquerda do governo ou se o ex-presidente irá reestabelecer o pacto de classes que sustentou seus governos, abalado no governo Dilma. Se juntarmos estes dois aspectos em uma única pergunta teremos uma resposta negativa implacável: é possível fazer um governo de esquerda com uma reciclagem e ao mesmo tempo repaginar uma política de conciliação de classes? A resposta que temos pela experiência é: não!
Vale a suposição, com único objetivo de fazermos uma análise conjuntural, de que Lula teria a intenção de dar a tal guinada à esquerda (acreditem: tem gente esperando isso há mais de 13 anos, argumentando que os governos petistas sempre estiveram sendo disputados à esquerda).
Evidentemente, é preciso considerar antes de tudo a atual correlação de forças da sociedade, os desdobramentos da Operação Lava Jato, a reação da grande mídia, as movimentações de Cunha, do PMDB e do Congresso e, ironicamente, se está correta a esperança dos petistas de que o STF (o mesmo que julgou o “mensalão”) poderá fazer um “julgamento mais justo” de Lula, caso de torne réu, do que o juiz Sérgio Moro. Lembremos ainda que o cenário da conjuntura internacional favorável ao modelo brasileiro de exportador de commodities mudou bastante em relação ao período de auge do lulismo.
Deste ponto de vista, Lula estava em melhores condições para aplicar o projeto petista em 2002, quando foi eleito pela primeira vez, do que agora como ministro. Não vivíamos uma crise política, econômica, social e ambiental como vivemos agora. Era o auge do pacto de classes. Mas muita coisa mudou de lá pra cá. Principalmente porque no meio do caminho teve junho de 2013, que fez massas explodirem com os podres pactos da República. Dilma, apesar de defensora do projeto de conciliação, não foi bem sucedida.
A crise econômica é a mais grave pelo menos dos últimos 25 anos. O nível de desemprego crescente, a inflação exorbitante e a desconfiança dos mercados, que não deve ser ignorada, pois ela pautou os governos Lula, é enorme.
Na política o cenário também não é fácil, nem para o projeto petista, nem para a classe trabalhadora (duas coisas bem diferentes). Há poucos dias, o PMDB deu passos para se afastar do governo, e, consequentemente, se aproximou mais da oposição de direita. Cunha, apesar de mais manchar do que ajudar o processo de impeachment da direita tradicional, deve também utilizar esta sua principal cartada para se manter no cargo. E a Operação Lava Jato segue tomando grandes proporções, agora com o bônus de não acusar somente os petistas, mas também grandes figuras do PMDB e do PSDB.
A análise sobre a capacidade de Lula ressuscitar o defunto do projeto petista não pode se resumir à questão do foro privilegiado que poderá ter o ex-presidente. A reação exaltada sobre a entrada de Lula no Planalto, alimentada tanto pela grande mídia como por petistas, por motivos diferentes, segue a linha da insuportável falsa polarização e empobrece o debate sobre o futuro do país. Para os primeiros é um foragido da justiça, para os segundos é um exilado político.
Boa parte das políticas que deram sustentação aos governos petistas também estão em xeque hoje. A começar pelas empreiteiras e grandes construtoras que foram fundamentais para a existência do PAC e do Minha Casa Minha Vida, por exemplo. O BNDES apostou aproximadamente metade de seus recursos nelas nos últimos anos. E, não por coincidência, foram as principais doadoras de campanha. Ou seja, são base fundamental do projeto de conciliação. Acontece que eles não poderão se reunir com Lula neste momento, pois estão presos. Algumas dessas empresas reduziram seu lucro e já fazem demissões em massa.
O que poderá fazer Lula, por exemplo, para salvar os empresários da educação beneficiados com a contrarreforma universitária e que hoje assistem o número de matrículas cair e a inadimplência subir? O que fará Lula para acalmar a Fiesp e reverter a desindustrialização do país? O que fará para agradar os mercados e convencer a classe trabalhadora que sua perda de direitos valerá a pena?
Pra quem tinha esquecido que a luta de classes existe e só lembrou disso no último dia 13, não pode nem se enganar e muito menos enganar a população de que a “volta” de Lula desliga este motor da História. O verdadeiro pedido é da ajuda a Lula em dar sobrevida ao governo Dilma, refazendo negociações mais amplas ainda com as elites e oligarquias mais retrógradas deste país, com os banqueiros, megaempresários e o agronegócio. E também com a grande mídia, que necessariamente terá que fazer parte deste acordo (como fez nos governos petistas anteriores).
Para ser considerado um giro à esquerda, Lula teria que, em primeiro lugar, rasgar a Carta ao Povo Brasileiro. Teria que, não só frear a Reforma da Previdência de Dilma como desfazer a sua própria Reforma da Previdência. Teria que romper com as elites e oligarquias. Teria que fazer uma reforma política que democratizasse radicalmente o poder e os meios de comunicação. Teria que fazer a auditoria da Dívida Pública e deixar de pagar os banqueiros. Teria que fazer uma Reforma Agrária e Urbana de verdade. Teria que demarcar terras indígenas e quilombolas. Enfim, teria que fazer exatamente o oposto do que fez quando presidente. E não há nada, absolutamente nenhum sinal, nem pela conjuntura nem pela correlação de forças, de que ele fará isso.
Quase tudo é incerto. Lula pode ou não ajudar a travar o impeachment de Dilma, pode ou não ajudar a trazer mais estabilidade política e econômica, pode ou não resgatar parte da popularidade do governo. Lula pode até fazer Dilma vestir bonezinho dos movimentos sociais. Mas é totalmente alucinatório considerar que Lula fará deste governo um governo de esquerda, pelo simples fato de que este não é o projeto lulista de poder.
O projeto lulista de poder pressupõe a manutenção da engrenagem da democracia pautada pelas elites econômicas. Tem em sua essência exatamente o que está sendo categoricamente rejeitado em amplas camadas da sociedade, da nova geração de ativistas que foi às ruas em junho de 2013 à classe trabalhadora hoje desesperançada. O fôlego que Lula dará ao governo poderá significar a aceleração da morte estratégica deste projeto. E o pouco ar da esquerda socialista deve ser usado para organizar nas ruas os anseios por transformação radical da sociedade, verdadeiramente à esquerda.
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Fabio Nassif é jornalista.