Referendo revogatório: que o povo decida
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- Henrique Júdice Magalhães
- 21/03/2016
O atual governo da senhora Rousseff é um governo ilegítimo. Não porque corrupto. O é, mas, entre isso e a ilegitimidade, medeia enorme distância.
Muito menos pelas maquiagens contábeis do mandato anterior. Como pretexto para sua destituição, elas são ridículas; como motivo real, piores do que poderia ser qualquer governo. Erigi-las em causa de impeachment implicaria a transformação definitiva do país numa colônia do sistema financeiro, cujos interesses a mal chamada Lei de Responsabilidade Fiscal resguarda.
A ilegitimidade do atual governo não radica nem mesmo nos graves crimes eleitorais a essa altura comprovados. Eles, sem dúvida, mancham sua origem, mas teria sido possível, em um ano, recobrar, no exercício do poder, a legitimidade tisnada. E o fato de tais crimes terem sido cometidos também pelos adversários do segundo turno (PSDB) invalida de antemão que os financiamentos clandestinos tenham desequilibrado a balança eleitoral em prol do PT de modo a decidir o pleito.
O governo da senhora Rousseff é ilegítimo porque se elegeu com a chantagem de ser o único fiador da soberania nacional, do emprego e dos direitos sociais e, antes mesmo de sua segunda posse, passou a trabalhar intensa e sistematicamente para destruí-los.
Cortes nunca antes vistos em garantias previdenciárias de viúvas, órfãos, desempregados e doentes; redução salarial por acordo entre empresas e dirigentes sindicais, eliminando-se as exigências de redução proporcional da remuneração dos diretores das empresas e de aprovação pelos trabalhadores em assembleia; entrega das reservas petrolíferas do pré-sal às Seis Irmãs; cortes no orçamento de programas questionáveis, mas cuja promessa de manutenção foi causa de muitos votos recebidos pela atual presidenta, como Prouni e Pronatec; desemprego em alta, produção industrial em queda livre, renda do trabalho idem. Eis a obra de quem prometia impedir que os banqueiros tirassem a comida do prato dos trabalhadores.
Essa combinação entre a quebra de todas as promessas eleitorais e um quadro econômico e social trágico torna o atual governo da senhora Rousseff tão ilegítimo quanto foi, por exemplo, o segundo de FHC (1999-2002). Que PT e CUT, por decisão de Lula e José Dirceu e contra boa parte de sua base, quadros médios e dirigentes, não tenham pedido, então, o fim daquele governo, não obriga ninguém à mesma conduta no quadro atual.
Ilegítimos, por outro lado, são também muitos dos meios e propósitos da oposição de direita. Não é tanto o caso do pedido de impeachment: por pior que seja seu fundamento, se trata de algo constitucionalmente previsto, em que a margem de discricionariedade do Legislativo é grande. O fato de o atual Congresso não ser bem um repositório de virtudes (o de 92 o era?) tampouco equipara uma destituição por esse meio a um golpe de Estado, como quer o PT.
Outra coisa são as maquinações do Partido Judicial.
Não se pode aceitar que funcionários não eleitos de corporações opacas como o Judiciário e o Ministério Público incorram em toda espécie de extralimitação, divulgando gravações que não estavam a seu alcance realizar e nem mesmo contêm indício de crime, ou bloqueando a nomeação de ministros pela chefe do Executivo.
É fato que só chegam a tanto porque ela própria erodiu pelo mau uso a autoridade que deveria ter. Quando se atinge esse ponto, é necessário que o governo recobre legitimidade ou dê lugar a quem a tenha.
Um processo de impeachment, seja qual for seu resultado, não resolve esse problema. Um governo que sobreviva a tal trâmite é um governo fraco pelo simples fato de ter passado por ele. Um governo que emerge desse procedimento é igualmente fraco por não ter sido eleito e por derivar daquele cujo mandato o Congresso tiver decidido interromper. Principalmente quando, em vez de corrigir o estelionato eleitoral, o aprofunda, como Michel Temer já anunciou que fará.
A cassação pós-eleitoral de Rousseff pelo TSE, se ocorresse, teria as vantagens de levar Temer de roldão e encontrar maior respaldo que o aventado impeachment em crimes realmente ocorridos. Mas exacerbaria o poder ilegítimo do partido da toga, sobretudo por não haver clara definição legal do que fazer após cassado o mandato.
Abrir-se-ia espaço a uma decisão discricionária de um tribunal cuja jurisprudência é dar posse ao segundo colocado, como fez em vários governos estaduais nos últimos anos. Uma das poucas maneiras de piorar o quadro atual seria ter um(a) presidente que deva seu mandato ao TSE. Se for Rousseff (acaso absolvida), a situação seria péssima. Se Aécio Neves (que assumiria com o handicap de ter perdido a eleição), ainda pior.
A única solução democrática para o atual impasse inexiste na Constituição brasileira, mas poderia ser inserida nela por emenda: trata-se do referendo revogatório ou recall. Venezuela e Bolívia passaram recentemente por tal processo. O Equador também o prevê em sua Constituição, a exemplo de vários cantões suíços e estados norte-americanos.
O governo e a oposição parlamentar têm no Congresso os votos necessários para tanto. E parecem ter também a certeza de contar com o apoio da maioria da população.
Deveriam, portanto, se submeter ao crivo dela e deixar que ela escolha entre relegitimar, por seu pronunciamento soberano, o atual governo, ou revogar seu mandato, abrindo caminho a novas eleições das quais emergirá outro tão legítimo quanto possível no atual sistema político.
Não se trata de solução mágica ou maravilhosa: o repertório de escolhas que esse sistema político-partidário põe ao dispor da população continuaria muito restrito. Mas é a única maneira de trasladar o protagonismo atual de juízes e promotores a quem de direito, ou seja, ao povo.
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Henrique Júdice Magalhães é jornalista, ex-servidor do INSS e pesquisador independente em Seguridade Social. Porto Alegre (RS).
Comentários
Acho que está havendo um mal-entendido entre o que eu estou querendo dizer e o que você está entendendo.
Em primeiro lugar, não acho que o PT tenha sequer a possibilidade de voltar a representar os movimentos de esquerda após passar 12 anos desprezando-os. Para mim, o PT já cumpriu sua função histórica, que foi de organizar as esquerdas principalmente nas décadas de 1980 e 1990, caindo em degeneração ao chegar ao poder.
Em segundo lugar, critico os movimentos que eu chamo de "vanguardistas", e nesse caso citei o PSTU, não porque devessem se curvar ao corporativismo político, muito menos defender governo algum, mas porque são refratários à articulação de uma frente única de esquerda, adotando um "puritanismo revolucionário" isolacionista, ao invés de somar com outros setores. Em outras palavras, parece que têm medo de se "contaminar" simplesmente por compor uma frente, onde não há o mesmo espaço para dirigismo que há em um partido político, por exemplo.
Essa proposta beira o surreal, se considerarmos o status de 'lumpenzinato' da maior parte da classe trabalhadora brasileira e do monopólio dos meios de comunicação, que manobrariam pesadamente a condução do processo. Mais realismo! Acho que ao invés de convocarmos um processo de mobilização de massas (sufrágio universal) em momento de intensa guerra de informações, devemos proceder à reorganização consequente de uma frente de esquerda democrática, para garantirmos um contraponto de médio e longo prazo ao ataque neoliberal que vem por aí. O serviço sujo que a presidente Dilma fez até agora não é 1% do que essa máfia oligárquica pretende fazer. Precisamos urgentemente de organização política unitária e ação política planejada, coisa que a esquerda se debate há 10 anos sem conseguir fazer. Ou os nanicos de esquerda, como o PSTU, acham que vão conseguir fazer algo isoladamente? Unidade da esquerda já! Maturidade para a compreensão do momento histórico e da correlação de forças!
tá de sacanagem?
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