Brasil fragmentado na expectativa do dia seguinte
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- Hamilton Octavio de Souza
- 06/04/2016
A sociedade brasileira não está rachada, está fragmentada. Não existem apenas dois grandes grupos em disputa radicalizada pelo Palácio do Planalto. Existem inúmeras propostas para o enfrentamento da crise política defendidas por diferentes segmentos sociais na imprensa, no parlamento, nas entidades de classes e nas ruas. Elas tratam do impeachment, da renúncia, da cassação de uns e outros e de todos também. A defesa do atual “Estado Democrático de Direito” não exclui nem mesmo a convocação de eleições gerais ou a realização de uma Assembleia Constituinte exclusiva para a reforma do sistema representativo. Enfim, a crise política está em aberto e sem solução à vista – apesar das urgentes demandas da gravíssima crise econômica.
Independentemente do que o Congresso Nacional venha a decidir sobre o atual processo de impeachment da presidente da República, a sociedade brasileira continuará na expectativa sobre o que vai acontecer no dia seguinte. Se o plenário da Câmara aprovar a admissibilidade do impeachment, o processo segue para o Senado, o que implica em mais alguns meses de forte tensão social e suspense. Se o plenário da Câmara rejeitar a atual proposta, estão na fila pelo menos mais dez propostas de impeachment, inclusive a da Ordem dos Advogados do Brasil. E nada impede que ganhe força a ação de cassação da chapa Dilma-Temer em tramitação no TSE ou a proposta de convocação de eleições gerais ainda este ano, que tem alguma simpatia entre governistas e nas oposições de direita e de esquerda.
Nada disso, porém, está a garantir que um governo com Dilma, Temer ou qualquer outro na linha de sucessão constitucional tenha condições reais de governabilidade, com maioria no Congresso Nacional, com respeito das entidades de classe dos trabalhadores e dos empresários, com a simpatia das classes médias e das várias correntes que atuam na sociedade.
Qualquer governo precisará de duas condições básicas para funcionar minimamente: 1) contar com articulação política capaz de inspirar confiança suficiente para conter a radicalização e a guerra generalizada dos vários fragmentos da sociedade; 2) dispor de proposta de enfrentamento da crise econômica que agrade ao mesmo tempo as classes trabalhadoras e os vários grupos empresariais, que retome o desenvolvimento com rápida geração de empregos, contenha a sangria dos cofres públicos e invista pesado nas áreas sociais (saúde, educação, habitação e transportes públicos).
Essa saída de conciliação não interessa nem para o capital nem para os trabalhadores, nem para a direita nem para a esquerda, nem para os governistas nem para as oposições. Mas, na atual conjuntura de polarização e de grande confusão ideológica, a imposição de qualquer facção não será suficiente para superar a fragmentação e continuará a ausência de sustentabilidade no governo, se não somar grupos e correntes numa proposta com razoável articulação. Mesmo porque a fragmentação atual não está definida pela luta de classes clássica, entre trabalho versus capital, trabalhadores versus empresários ou empregados versus patrões. Também não é uma luta entre projetos distintos para a sociedade entre a esquerda socialista versus direita capitalista.
O que divide a sociedade brasileira hoje está nos marcos do capitalismo, no máximo entre visões sobre como superar a crise do neoliberalismo na economia globalizada, seja com medidas mais ortodoxas, seja com medidas mais heterodoxas, seja com austeridade, seja com neodesenvolvimentismo, seja com cortes no investimento e no superávit primário, seja com cortes nos programas sociais. Por isso mesmo a fragmentação de forças se espalha na sociedade de forma tão emaranhada, ao ponto de dividir as frações do capital e as frações dos trabalhadores entre esse ou aquele alinhamento político.
Dificilmente um governo sem respaldo social terá condições de levar adiante qualquer programa para reverter o baixo nível da atividade econômica, que tem gerado desemprego, reduzido o consumo, diminuído a arrecadação tributária, obrigado o Estado a cortar gastos e investimentos. Um governo sem credibilidade dificilmente conseguirá reverter a queda dos investimentos privados e a acelerada evasão de capitais. Apoio e credibilidade são pressupostos para a superação da crise política e início do enfrentamento da crise econômica.
Um governo fraco, despojado de apoio social, não conseguirá nem mesmo estimular o país a sair da recessão para projetar o ingresso em novo ciclo virtuoso de crescimento. Menos ainda terá condições de desenvolver programa progressista que faça o confronto direto com os mecanismos de maior acumulação e maior concentração do capital. Como reduzir drasticamente a taxa de juros e interromper a sangria da dívida pública sem entrar em conflito com os bancos e com os especuladores financeiros? Da mesma forma, como fazer ampla reforma agrária para assentar milhões de famílias no campo sem entrar em conflito com o latifúndio e o poderoso agronegócio?
Por isso mesmo, a luta dos trabalhadores, independentemente do desfecho da atual crise política, deve ser sempre a afirmação de uma agenda própria, autônoma, alternativa às propostas dos partidos e das entidades que defendem os interesses do capital. Não interessa aos trabalhadores nem o aprofundamento da atual crise econômica nem a articulação de um governo que continue jogando nas costas dos trabalhadores e do povo os erros e os equívocos de um modelo que gerou desemprego, arrochou os salários, destruiu conquistas e direitos sociais, esfacelou os serviços públicos, enfim, colocou a economia do país refém dos capitais nacional e internacional.
Os trabalhadores só vão impedir maiores retrocessos nas condições de vida e de trabalho se conseguirem construir maior unidade classista, se conseguirem atuar de forma combativa, sem entrar no jogo das forças vinculadas aos grupos dominantes dos vários partidos de situação e oposição. O quadro geral está muito embaralhado. Por isso mesmo os trabalhadores precisam ter o seu programa independentemente do governo que sair da crise atual. Esse é o desafio.
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Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor.