“O Estado e as passeatas” ou “estamos em 1919?”
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- Rubens Glezer e Roberto Dias
- 08/09/2016
A recorrência de protestos e passeatas de grandes proporções é uma novidade para a população brasileira em geral, que traz problemas inéditos e complexos, alguns deles jurídicos. O mais recente deles é saber se a Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP) e a Polícia Militar (PM) podem controlar ou limitar de alguma maneira os locais de passeata e sua trajetória. Além disso, há dúvidas razoáveis a respeito dos deveres de os manifestantes informarem antecipadamente toda a sua trajetória para a SSP e a PM. Essas dúvidas são sérias, pois a resposta dada a tais problemas desenha a qualidade dos direitos, da democracia e da república que temos.
Em 1919, o STF já julgava que o então chefe da Polícia não podia estabelecer o local de reunião para manifestações. A decisão histórica do HC 4.781 não foi tomada somente com base em discursos e valores abstratos, mas levando em conta as peculiaridades do caso, que merecem atenção: “como é notório, a polícia, por soldados à paisana e desordeiros da pior espécie, dispersou, a tiros de revólver, um comício que, a 25 de março findo, os Drs. Miguel Calmon e Pedro Lago e outros pretendiam realizar, na praça Rio Branco” (destacamos). Nesse caso, a conduta policial e do Estado foi decisiva para que o STF se manifestasse de maneira rigorosa sobre o tema, fixando que a polícia não pode “determinar que só em certos lugares é que eles (os protestos) se podem efetuar, se forem convocados para fins lícitos”.
É claro que o conteúdo do julgamento impressiona por sua atualidade; ou talvez por indicar a falta de atualidade do que vivemos. Porém, esse julgado foi apenas o início do estabelecimento de entendimentos que levaram a sério o direito de manifestação e reunião (durante períodos democráticos, é claro). Em 1999, o STF decidiu que é parte constitutiva do direito de manifestação incomodar e atrapalhar a rotina de vida e trabalho daquela comunidade política, mesmo que isso ocorra na Praça dos Três Poderes. Em 2011, o STF julgou a licitude da “Marcha da Maconha” e, com isso, ao determinar que os manifestantes não incorriam no crime de apologia ao uso de drogas, estabeleceu que as motivações dos manifestantes são democraticamente relevantes. Com isso, se decidiu que o Estado não pode reprimir o discurso de natureza política, que busque reformar leis, políticas públicas ou a conduta de agentes públicos.
Tal conjunto de precedentes não resolve os atuais problemas que as manifestações recentes – como a do Movimento Passe Livre (MPL) – enfrentam, mas certamente apontam para uma direção. Atualmente a SSP de São Paulo considera que a Constituição Federal autoriza a PM a controlar o trajeto dos manifestantes, em razão de uma ambiguidade semântica no texto Constitucional. Nos termos da Constituição, “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. Sob o argumento de que deve ser evitado frustrar outras reuniões, a SSP de São Paulo declarou ter o direito de determinar o trajeto da manifestação do MPL em 21 de janeiro de 2016. Contudo, essa é uma leitura equivocada da Constituição.
Não é possível presumir atualmente que a passagem de uma manifestação móvel pelo local de outra necessariamente irá frustrá-la. Cabe ao Estado notificar a organização desses movimentos sobre a coincidência de trajetos. Porém, apenas se um dos movimentos reivindicar a exclusividade do espaço é que o Poder Público deve interferir. Em uma época de fácil comunicação, é possível (por vezes, provável) que diferentes manifestações se juntem para ganhar sinergia. Além disso, impedir a passagem por um determinado espaço (quando solicitado por particulares), não autoriza que disso o Poder Público extrapole sua ação para determinar todo o trajeto.
Mas, afinal, seria realmente ruim se a SSP e a PM definissem o trajeto? Será que essa não é uma medida importante para manter uma ordem urbana razoável? Talvez a resposta poderia ser afirmativa, se o governo e a PM não tivessem um histórico de repressão, violência, desrespeito aos direitos fundamentais dos cidadãos e ilegalidades ao lidar com tais manifestações. Passando por um cenário de violência excessiva (desde estudantes de escolas públicas até jornalistas), por restrições arbitrárias, chegando a forjar provas falsas para criminalizar manifestantes. Esse histórico importa e explica os motivos de os manifestantes desconfiarem do Estado.
Mas o que a Constituição diz? Ela não dá abertura para a interpretação da SSP de São Paulo? Em caso de dúvidas sobre como interpretar uma norma constitucional, é preciso verificar qual é aquela que melhor se adequa a casos semelhantes, ao histórico de decisões judiciais e ao ordenamento jurídico como um todo, para apontar qual sentido da norma dá a melhor concretização para os valores protegidos pela Constituição.
Todo o histórico de decisões do STF, da teoria jurídica sobre liberdade de expressão e manifestação, bem como a lógica de direitos fundamentais da Constituição Federal, aponta para a direção de que qualquer restrição de direitos fundamentais deve ser realizada no estrito limite de fortalecer aquela garantia ou liberdade como um todo. Nesse sentido, qualquer ingerência sobre o direito de manifestação deve existir para promovê-lo e não para extingui-lo.
Com isso, no caso do confronto entre MPL e o governo de São Paulo, os manifestantes têm a melhor intepretação de seus direitos. Isso porque há razões fortes para acreditar que a SSP de São Paulo e a Polícia Militar apenas querem controlar o trajeto e saber antecipadamente o caminho que será percorrido para reprimir (violentamente) e coibir a manifestação que ocorre de maneira pacífica, lícita e legítima. Se houver manifestantes violentos, não é preciso dispersar a manifestação, mas deter apenas esses poucos indivíduos que realizam agressões injustificadas.
Para se manifestar, ninguém precisa de autorização. Por outro lado, o Poder Público não pode definir onde e quando um protesto ocorrerá. E, enfim, não há motivo para que esse ou qualquer outro movimento pacífico colabore com a SSP enquanto o Estado e a PM agirem como se ainda estivéssemos em 1919.
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Rubens Glezer (FGV Direito) e Roberto Dias (PUC-SP) são professores de Direito Constitucional
Originalmente publicado no Jota.