"Estamos colhendo, exatamente, os frutos dos 13 anos de petismo no governo federal"
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- Gabriel Brito, da Redação
- 16/09/2016
Entre um impeachment e mais um ciclo eleitoral, o Brasil continua a cambalear, no aguardo das medidas econômicas que visam combater a grave crise e sob o calor de frequentes protestos contra o governo de Michel Temer. Além disso, com o cerco da Operação Lava Jato a Lula, indiciado nesta semana, a temperatura dos embates continua a subir, o que deixa várias interrogações no horizonte. Sobre todo esse contexto, o Correio da Cidadania entrevistou o sociólogo do trabalho Ruy Braga, que fez profunda análise do momento.
“Não se pode obscurecer o fato de que a esquerda brasileira colhe hoje aquilo que o PT plantou ao longo de seus 13 anos no Planalto: desmobilização social, estratégia de negociar tudo no parlamento, pacificação apoiada em reformas quase inexistentes, com privilegiamento agudo de setores capitalistas e financeiros”, afirmou, como ponto de partida da compreensão do que se passa.
Conforme já dissera em entrevista anterior, Braga alerta para a necessidade de derrubar o governo de Michel Temer, que visa impor uma dura ordem em favor dos negócios. Aliás, considera que tal combinação de políticas de austeridade com violência política são cada vez mais inerentes ao modelo de democracia em vigor. Mais ainda quando nem mesmo aqueles que subiram ao poder conseguem se entender por completo.
“Ainda existe um potencial de contestação do movimento sindical e também existe mobilização nas ruas. Portanto, um quadro de crise bastante complexo, em que o PMDB tem ressalvas em implantar a agenda desejada pelo PSDB, que pode se beneficiar do ponto de vista eleitoral em dois anos. No entanto, o PMDB não se sente forte o suficiente pra garantir tal agenda, sabendo que favorece os tucanos”.
Ruy Braga também destaca que não pode haver mais vida para os setores de esquerda dentro do lulismo, que mesmo antes do fim da lua de mel com as massas já mostrava uma grande miopia diante dos anseios dos brasileiros. Com isso, considera que há um longo ciclo de reconstrução pela frente, que tem tudo para encontrar duros obstáculos no plano imediato diante de contexto tão aterrador.
“Não tem como manter concessões dos gastos sociais do governo federal numa conjuntura de crise econômica. Isso iria colapsar conforme a crise econômica se aprofundasse. Houve uma desaceleração a partir de 2013. O governo do PT, em tal momento, ainda fez uma leitura vazia das Jornadas de Junho, quando as massas – em especial a juventude da classe trabalhadora, precarizada, mulher, negra e pobre – saíram às ruas exigindo mais democracia, gastos públicos, investimentos em saúde, educação, transporte, moradia. No mês seguinte, em julho de 2013, o governo Dilma cortou mais de 10 bilhões de reais do orçamento federal. A partir de então, não foi mais capaz de retomar a iniciativa política”, contextualizou.
A entrevista completa com Ruy Braga pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você assistiu e sentiu o trâmite final do processo de impeachment de Dilma, apreciado e votado no Senado ao longo da última semana?
Ruy Braga: Não foi nenhuma surpresa. A rigor, o segundo governo de Dilma já tinha acabado na votação da Câmara dos Deputados, em 17 de abril. O resultado no Senado não surpreende porque as forças políticas colocadas no interior do parlamento, associadas às forças econômicas e sociais de fora do parlamento, em especial os bancos, grandes empresas, grandes interesses internacionais, já tinham articulado a decisão de que Dilma deveria ser impedida.
Consequentemente, o resultado coroa a combinação de forças ao mesmo tempo politicas, sociais e midiáticas colocadas em movimento no último ano e meio, a fim de substituir o governo Dilma por Michel Temer, e fazer avançar a agenda de contrarreformas, cujo sentido fundamental é fazer um ajuste estrutural no modelo de desenvolvimento capitalista do país, de modo a privilegiar os setores rentistas. A votação no Senado coroa o processo que redundou na assunção do governo Temer.
Correio da Cidadania: O que achou da postura e discurso da presidente Dilma em sua defesa?
Ruy Braga: Acompanhei todos os debates do Senado de maneira pormenorizada, e dentro da dimensão jurídica do impeachment, me parece absolutamente claro que não houve o crime de responsabilidade. Assim, o que houve foi um golpe parlamentar, midiático, palaciano, no sentido de escolher ou encontrar uma razão pra impedir a sequência do governo de Dilma.
Consequentemente, a situação fortalece, claro, o argumento dos setores outrora governistas e cacifa-os a denunciar um golpe que de fato ocorreu. Dentro disso, seu discurso ao Senado levantou uma série de questões-chave para pensarmos a crise. Parece que a Dilma, como personalidade histórica, se preservou de maneira bastante digna no processo. Historiadores estudarão daqui um tempo o momento vivido pelo país e darão razão à tese do golpe e ao discurso proferido por Dilma no Senado.
O fato de Dilma vir discursar como nunca havia feito se explica, em primeiro lugar, pela clara adoção do PT de um modo de regulação baseado na pacificação social, consequentemente, na desmobilização dos setores populares e da massa da classe trabalhadora. Isso significa que nos governos Lula e Dilma percebe-se um PT no poder que prefere negociar no parlamento a estimular a participação das massas no processo de empoderamento social e popular. Abdica do processo de apostar no poder popular, na capacidade de mobilização dos movimentos e pressão sobre o parlamento pra garantir políticas públicas progressistas ou reformas mais profundas, do tipo que nunca foram implementadas pelo PT.
No momento em que o partido e Dilma percebem que a estratégia de pacificação social ruiu com o processo de impeachment, a polarização política instalada na sociedade e toda a radicalização ocorrida no parlamento, por conta da Operação Lava Jato, aprofundamento da crise econômica e suas repercussões na vida nacional, a presidente resolveu radicalizar o discurso porque a nau já tinha ido a pique, o barco já estava furado.
Numa mistura de desespero com alívio, Dilma passou a ter um comportamento mais ativo, no sentido midiático, denunciar o impeachment como um golpe e apelar aos movimentos sociais, de modo a fazer o papel que lhe cabia, de fato, naquele momento. Mas não se pode obscurecer o fato de que a esquerda brasileira colhe hoje aquilo que o PT plantou ao longo de seus 13 anos no Planalto: desmobilização social, estratégia de negociar tudo no parlamento, pacificação apoiada em reformas quase inexistentes, com privilegiamento agudo de setores capitalistas e financeiros.
Estamos colhendo, exatamente, os frutos dos 13 anos de petismo no governo federal. Portanto, Dilma é vítima de golpe parlamentar, porém, é cúmplice do golpe contra os direitos sociais agora em andamento no país.
Correio da Cidadania: O que pensa do adiamento do julgamento do TSE a respeito da chapa Dilma-Temer para 2017?
Ruy Braga: Eu vejo a possibilidade, sim, da queda de Temer, mas pouquíssimo provável. O ambiente do país é muito volátil, está difícil prever o que vai acontecer em duas semanas, o que dizer até o fim de 2018. Mas parece mais provável ele permanecer no poder e procurar, ainda que não seja certo por conta das forças que tem, implementar a agenda de contrarreformas e ataques aos direitos sociais e trabalhistas da massa subalterna do país.
Mas não está claro. Por várias razões: do ponto de vista político strictu sensu, há uma crise que não foi superada, a despeito da formação de uma maioria parlamentar confortável no Congresso. Isso porque o PMDB incorpora a agenda do PSDB, que por sua vez tenta empurrar ao PMDB o mico de aplicar medidas não aprovadas na eleição de 2014. Significa que o PMDB de forma mais ou menos envergonhada, em alguns setores até flagrantemente contrariado, tem de assumir uma agenda que não é a que assumiria em condições normais. No entanto, o PSDB força tal agenda porque percebeu a janela de oportunidades de fazer aprovar as medidas derrotadas em 2014.
Por outro lado, o PMDB sabe que o governo dependerá da aprovação dessas medidas que favoreçam o capital exportador, financeiro e parte significativa do próprio capital industrial brasileiro. No entanto, não é propriamente uma garantia da aprovação porque as medidas são extremamente antipopulares, num contexto fundamentalmente volátil, de grande mobilização social.
Ainda existe um potencial de contestação do movimento sindical e também existe mobilização nas ruas. Portanto, um quadro de crise bastante complexo, em que o PMDB tem ressalvas em implantar a agenda desejada pelo PSDB, que pode se beneficiar do ponto de vista eleitoral em dois anos. No entanto, o PMDB não se sente forte o suficiente pra garantir tal agenda, sabendo que favorece os tucanos.
Ou seja, continuamos num imbróglio muito grande. E caso a agenda avance no Congresso e a reação popular atinja de morte o governo Temer, o PSDB não irá acompanhá-lo para o túmulo, irá romper com o governo do PMDB caso este se torne ainda mais impopular e ameace suas intenções eleitorais.
Pra resumir, é o seguinte: o impeachment foi uma aventura muito mal calculada pelos diversos atores políticos, improvisada. Imaginava-se que o impeachment poderia bloquear a Lava Jato, mas tampouco aconteceu como esperado. No lugar do governo Dilma enfraquecido, mas ainda legítimo e com algum nível de controle sobre o movimento social e sindical, agora temos um governo e um parlamento que cortaram qualquer vínculo com a sociedade, ao menos com as massas populares, que participam de eleições.
Assim, temos uma crise que deve se estender por mais algum tempo. Também deve continuar com alta volatilidade o cenário social do Brasil.
Correio da Cidadania: Acredita que podemos adentrar tempos de instabilidades, e até quedas, nos próximos tempos, talvez com alguma semelhança com a Argentina entre 2001 e 2003?
Ruy Braga: Há um aprofundamento da crise política e o horizonte não é tranquilo para o governo Temer, pois parece que enfrentará um processo de contestação social cada vez mais forte. Até porque só agora os efeitos deletérios do desemprego estão sendo sentidos de forma mais íntima nas classes populares. A isso se soma o fato de o governo apostar numa agenda antitrabalhista, de flagrante ataque contra os direitos sociais, em especial à previdência pública, através da sua reforma.
Haverá aumento da crise, em razão das respostas populares, mas também creio que a economia, num primeiro movimento, irá se recuperar da recessão dos últimos dois anos. Não no patamar anterior à crise, mas claramente atingimos o fundo do poço e talvez fiquemos lá por mais alguns meses. No entanto, é característica da economia capitalista uma recuperação cíclica, ainda que moderada, após processos de recessão profunda. O que temos para o ano que vem é um cenário de recuperação, ainda que muito modesto, em torno de 1%, que de alguma maneira servirá pra aliviar a pressão econômica, combustível da crise política.
Parece que a tempestade da Argentina, com profunda crise política no interior de uma profunda crise econômica, não deverá, ao menos no ano que vem, acontecer. O cenário que enxergo é de aprofundamento da crise política com alguma recuperação cíclica da economia.
Correio da Cidadania: Em entrevista anterior, você disse “estarmos sendo confrontados com o colapso de um modelo de representação tradicional” e usou a Turquia de Erdogan como um exemplo de democracia com diversas nuances ditatoriais. Com o PMDB à frente do governo, diria que já estamos diante desse experimento?
Ruy Braga: Diria que ainda não pelo simples fato de o governo ser frágil. Mas se conseguir controlar a situação, por meio da frente parlamentar e assegurando, por meio das contrarreformas, a elevação da taxa de lucro das empresas do país, ou seja, se o governo se fortalecer com uma recuperação da economia, aí sim nos encaminhamos para o aprofundamento do autoritarismo no país.
O regime democrático brasileiro é muito frágil, de baixíssima intensidade, e aquilo que os setores empresariais querem (ajuste estrutural na economia com vias de renovar as estratégias de espoliação social) exige governos fortes, centralizadores e autoritários. Pois aquilo que caracteriza o desenvolvimento apoiado em regimes de acumulação por espoliação social é a violência política, ao invés da violência econômica que se dá na acumulação de capital e geralmente na produção.
Na verdade, temos a dependência cada vez maior da estrutura da economia em relação a um Estado autoritário, que se apoia na violência política sobre as massas. Portanto, me parece mais ou menos claro que caso o governo Temer se fortaleça caminhamos para uma espécie de “saída turca”, isto é, um regime cada vez mais autoritário a liderar uma democracia de fachada.
Por isso é tão importante derrubar o governo Temer.
Correio da Cidadania: Como você relacionaria o atual momento com as massivas manifestações de 2013? Como vê, nesse sentido, a sequência de atos realizados nas principais cidades, sob a insígnia do Fora Temer?
Ruy Braga: Basicamente, o “Fora Temer” liberou as forças que se organizam em torno dos movimentos sociais do fardo pesado que era defender o governo Dilma. Isso fez intensificar o processo de mobilização em torno de uma bandeira que unifica quase todo mundo.
Com o fim do processo impeachment, os setores populares estão mais à vontade pra sair às ruas e protestar contra o governo desse usurpador chamado Michel Temer. Diria, ainda, que a mobilização que hoje orbita muito em torno dos movimentos sociais e sindicais organizados tende a se ampliar na medida em que os setores que não saíram às ruas neste ano, mas saíram em 2013, devem se somar, pois se trata daqueles setores não organizadas da juventude, do que chamo de “precariado”, que ainda não deram as caras. Mas cada vez mais tendem a se aproximar da mobilização pelo “Fora Temer”.
De fato, o “Fora Temer” é uma palavra de ordem e um slogan sedutor, na medida em que esse governo é profundamente impopular. Com 8%, 10% de aprovação, tem-se um governo fraquíssimo, e a perspectiva de derrubá-lo torna a mobilização bastante sedutora pra diferentes setores subalternos.
Nesse exato momento, assistimos a mobilização dos setores mais organizados, numa espécie de fagulha que pode ser capaz de incendiar setores não organizados, em especial aqueles formados por jovens trabalhadores.
Correio da Cidadania: Como as manifestações comandadas pela direita entre 2015 e 2016 se situam no meio disso?
Ruy Braga: Vejo como algo pendular, levando em consideração o flagrante aprofundamento da polarização política. 2013 foi majoritariamente espontâneo, sustentou bandeiras ou demandas de esquerda, e tinha no seu interior, no momento de pico, cerca de 30% de setores médios tradicionais, insatisfeitos com Dilma. Tais setores médios passaram a ser majoritários nas manifestações de 2015, quando aqueles grupos que sustentaram plataformas mais à esquerda e radicais, como o próprio MPL, recuaram.
Isso por várias razões, desde certa inorganicidade e incapacidade de sustentar o próprio movimento de contestação aos governos, e, evidentemente, uma relativa perda de espaço para a agenda de direita. Em 2015, tivemos uma onda de manifestações pró-impeachment, que se massificou levando-se em conta, no essencial, a participação da mídia corporativa, que convocava as manifestações no país todo.
Com o processo de impeachment de Dilma, entramos no terceiro momento, de retomada das mobilizações dos setores de esquerda contra a agenda liberal, que significa um recuo aos anos 90, simbolizado nas figuras de Serra e Temer. São movimentos pendulares que acompanham os desdobramentos das crises política e econômica e se alimentam dos fatos espetaculares de tais crises.
Correio da Cidadania: Em meio à crise toda, como viu a sessão de cassação de Eduardo Cunha neste início de semana na Câmara, um dos ícones da recente ingovernabilidade do país e também da queda de Dilma?
Ruy Braga: Não acredito que mude. Parece que, pura e simplesmente, tivemos outra tentativa da Câmara, ao menos de uma parcela majoritária, de salvar sua pele diante da opinião pública. Temos uma classe política desgastada, uma Câmara que se mostrou praticamente nua na votação do impeachment de Dilma e chocou o país com sua faceta caipira, retrógrada, reacionária, conservadora, uma face misógina, além de empresarial, branca, enfim, tudo aquilo que a sociedade brasileira não é em sua maioria. Eles chocaram o país no impeachment de Dilma e agora buscam fazer relações públicas com a opinião nacional ao afastar Eduardo Cunha, que na realidade já tinha perdido todo seu capital político.
É um indivíduo, evidentemente, deplorável, detestável, mas nada mais nada menos representa a condição política do regime brasileiro e sua forma de funcionamento, a face mais visível e perversa dessa classe política. Não acho que a cassação do Cunha resolve a crise política e mudará algo. Foi uma maioria de ocasião, mas não altera as principais determinações da crise política tal como ela se apresenta hoje.
Correio da Cidadania: O que pensa da relação entre manifestantes e PM, mais uma vez a envolver a polêmica a respeito da tática black bloc?
Ruy Braga: O Vladimir Safatle matou a charada quando disse que “a polícia tem partido”. De fato, a Polícia Militar tem partido e é o partido da ordem, no caso aqui de São Paulo o partido que comanda o estado, o PSDB. A polícia reprime duramente as manifestações progressistas, protagonizadas pela juventude, pacíficas, e celebra ou garante as manifestações pelo impeachment, contra o PT, contra Dilma e assim por diante. É uma clara demonstração de que a Polícia Militar tem um partido, um partido antipopular, do ataque aos pobres, à juventude negra; é o partido daquilo que podemos chamar de atraso. Isto ocorre levando-se em consideração o uso cada vez mais frequente, e que tragicamente continuaremos a ver, da violência política contra as massas populares que se rebelam.
A burguesia brasileira não tem um plano B. Ela vai atacar os direitos dos trabalhadores, que reagirão e serão duramente reprimidos pela PM. É o que tem acontecido e vai continuar acontecendo. A estratégia social de acumulação por espoliação depende fundamentalmente da violência da polícia e do Estado. Insisto: a PM ou a militarização frente ao movimento social no Brasil é um componente inerente, não é algo externo do próprio regime e modelo de desenvolvimento. Vai ser cada vez mais usado e não há a menor sombra de dúvidas de que a PM, quando promove a baderna, a confusão e a violência no final das manifestações, absolutamente pacíficas, pelo Fora Temer, está agindo conforme uma diretriz que, seguramente, recebe do governo do estado de São Paulo.
Dessa forma, precisa criar um fato político para justificar a repressão. Apoiada na mídia golpista, a estratégia é aquela que a burguesia brasileira tem à sua disposição hoje. É a única possibilidade. Tudo o que foge disso não é uma alternativa para a burguesia brasileira. A democracia ou a democratização do país não é alternativa para a burguesia brasileira. A alternativa única e exclusiva é a violência contra a pressão popular.
Correio da Cidadania: Teria finalmente algo ainda falar sobre a debacle do governo petista, após anos de euforia e consagração internacional? O que será do lulismo daqui em diante?
Ruy Braga: Naturalmente, a crise do segundo governo Dilma, ou ao menos o ritmo que tomou, tem efetivamente um componente político: a disputa entre Dilma e Eduardo Cunha, que se resolveu neste ano. O ritmo político, de alguma forma, acelerou tanto a queda da Dilma quanto o próprio aprofundamento da crise econômica.
Tivemos no parlamento, a partir de 2015, a votação de uma série de pautas-bomba que vinham sendo acumuladas e praticamente inviabilizaram qualquer capacidade de manobra do governo federal em relação à questão econômica. Assim, temos um componente político que passa pelas características da cena política no parlamento e pela relação entre o legislativo e o executivo.
Entretanto, não vi como surpresa o colapso do lulismo. Colapso do lulismo como modo de regulação do conflito de classes no Brasil, apoiado pelas ideias de pacificação social, por um consentimento ativo dos setores mais organizados da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, e um consentimento mais passivo, basicamente formado pela combinação de políticas sociais do Bolsa Família para o subproletariado e a formalização e valorização do salário mínimo para o precariado brasileiro. Tal combinação de consentimentos, ativo e passivo, tinha um colapso mais ou menos previsível, a partir do aprofundamento da crise econômica.
Não tem como manter concessões, ainda que sejam concessões mínimas e do ponto de vista do mercado de trabalho, dos gastos sociais do governo federal, numa conjuntura de crise econômica. Isso iria notoriamente colapsar conforme a crise econômica se aprofundasse. Houve uma desaceleração a partir de 2013. O governo do PT, em tal momento, ainda fez uma leitura vazia das Jornadas de Junho de 2013, quando as massas – em especial a juventude da classe trabalhadora, precarizada, mulher, negra e pobre – saíram às ruas exigindo mais democracia, mais gastos públicos, mais investimentos em saúde, em educação, em transporte, em moradia. No mês seguinte, em julho de 2013, o governo Dilma cortou mais de 10 bilhões de reais do orçamento federal. Ou seja, fez uma leitura totalmente às avessas e cavou sua própria sepultura, porque a partir de então não foi mais capaz de retomar a iniciativa política.
O governo Dilma, assim, ficou cada vez mais refém de um parlamento conservador e reacionário e de um ente político (PMDB) que deu uma acelerada guinada para a direita, de modo a ficar cada vez mais dependente. A ponto de, ao ver aquelas massas de verde e amarelo invadirem as ruas, em grande medida convocadas pela mídia golpista, ficar totalmente sem medida no cenário político. Não podia contar com os setores populares, que havia traído com uma campanha à esquerda em 2014 e medidas à direita em 2015 – cortes de gastos aos direitos sociais e trabalhistas etc.; por outro lado, não podia propriamente contar com uma base parlamentar que estava dando uma guinada à direita muito improvisada e acelerada, levando-se em conta a própria reação à Operação Lava Jato.
O governo tornou-se insustentável, mas apenas expressa e representa o colapso daquele modo de regulação que o lulismo representou durante ao menos 12 anos. Ou seja, uma acomodação mais ou menos geral dos interesses das classes populares no interior de um modelo de desenvolvimento financeirizado, que privilegiava fundamentalmente setores do capital financeiro e algumas frações do capital interno, mas internacionalizado, como o agronegócio, a construção civil e assim por diante.
O fim do governo Dilma, da forma como vimos, representa um desdobramento razoavelmente natural do colapso do modo de representação lulista.
Correio da Cidadania: Dentro disso, como imagina a esquerda, de modo geral, nos próximos anos?
Ruy Braga: Dentro do lulismo, não imagino mais esquerda, não há esperança. Fora do lulismo, e pensando basicamente fora desse projeto de conciliação de classe e pacificação social, acredito que há espaço para uma esquerda mais radical no país. Uma esquerda radical que terá pela frente uma enorme tarefa de reconstrução de um projeto socialista de país, que parte necessariamente de uma reconstrução das suas práticas políticas.
Não consigo imaginar hoje um projeto de esquerda no Brasil que tenha futuro se não for capaz de articular de maneira não sectária tantos segmentos de esquerda, que ainda existem em termos eleitorais, e de enraizamento na vida política brasileira. Notoriamente, o PSOL, ao lado de outros partidos de menor expressão, como o caso do PCB e do PSTU, em diálogo com os movimentos sociais. E estou pensando tanto nos movimentos sociais urbanos, com o MTST à frente, quanto nos setores do campo, MST e outros movimentos populares, que sejam capazes de superar a experiência de 13 anos do PT no governo.
Hoje, estamos diante da possibilidade de reinventarmos a esquerda no país a partir da fórmula que envolve partido e movimento. Que seja uma fórmula radicalmente democrática, capaz de colocar o controle das direções pelas bases e a reinventar práticas democráticas dentro das organizações socialistas como prioridade absoluta. Caso contrário, não vejo possibilidade de superar a crise que o PT nos legou.
Correio da Cidadania: Como a destituição da presidente Dilma deve se refletir nas eleições municipais?
Ruy Braga: Acho que o impacto principal é uma espécie de comprovação de que o PT não é capaz de tirar o país da crise. Consequentemente, candidaturas conservadoras ou de direita devem ser beneficiadas pela queda da Dilma. Temos, por outro lado, um PT buscando explorar politicamente a história do golpe, mas acho pouco provável que consiga – ao menos nos centros urbanos mais importantes como São Paulo e Rio de Janeiro; talvez haja alguma esperança para o PT no Nordeste, ainda que com dificuldades.
O cenário político eleitoral deste ano não deve destoar muito daquilo que temos percebido em pesquisas de opinião. Provavelmente, prevalecerão candidaturas de centro ou centro-direita, com algumas eventuais surpresas positivas, como o caso da Luciana Genro em Porto Alegre, que possui chances efetivas de ganhar a prefeitura – e não vai ser fácil, pela existência do segundo turno. Parece que o cenário geral é bastante desalentador para a esquerda brasileira. Novamente, tal cenário se deve à derrota imposta a toda a esquerda brasileira, não apenas aos setores petistas.
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Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.
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