Correio da Cidadania

Planejamento do setor elétrico

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É comum serem ouvidas frases como, por exemplo: “a energia elétrica gerada a partir da fonte eólica é mais atrativa do que aquela gerada por uma usina nuclear, bastando ver os respectivos custos de geração”.

Proponho-me a mostrar que o planejamento do setor elétrico deve levar em consideração outros aspectos, além da simples comparação dos custos de geração. Inclusive, o próprio cálculo do custo de geração deve ser repensado. A seguir, tenta-se explicar estas afirmações.

1 - Os aproveitamentos hidráulicos

Cada aproveitamento hidráulico é único, tendo vazão, altura da queda d’água e necessidade de barragens para formação do lago, diferentes. Assim, não há a possibilidade de se falar em módulo de energia hidráulica. Já a geração térmica a combustível fóssil ou biomassa, a nuclear, a eólica, a solar, além de outras são modulares. Desta forma, qualquer comparação com a geração hidráulica se dá através da escolha de um aproveitamento específico.

Para as energias que se expandem através de módulos pode-se falar em custo daquela energia, enquanto para a eletricidade de origem hidráulica fala-se do custo da energia gerada em cada hidroelétrica, especificamente. É comum ouvir-se: “a energia hidroelétrica é a mais barata de todas”. Seria mais preciso ouvir: “aproveitamentos hidráulicos geradores de energia elétrica competitiva existem em grande número”.

No planejamento elétrico, as gerações hidroelétricas, para serem comparadas a outras opções de geração, precisam ter o seu custo composto do custo da geração mais o custo da respectiva transmissão. As hidroelétricas, na maioria das situações, estão distantes dos grandes centros consumidores e, assim, o custo da transmissão as penaliza. As gerações eólica e solar também requerem o mesmo cuidado.

2 – O conceito de energia firme

Este conceito é bastante natural. Se a disponibilidade de uma fonte geradora é variável e em função da ocorrência de eventos da natureza, como chuvas, insolação e ventos, ela terá menor possibilidade de geração firme. O mercado consumidor demanda energia firme, e não energia sujeita a intempéries.

A eólica e a solar são fontes de geração intermitentes, pois podem ocorrer calmarias ou nuvens encobrindo o sol, o que acarreta oscilações na geração durante o dia. São também sazonais, porque a intensidade do vento ou a insolação são variáveis durante o ano.

A hidroelétrica é sazonal devido à variação pluviométrica durante o ano ou de um ano para outro. Nestes casos, a energia firme a ser gerada é sempre descrita com uma probabilidade de ocorrência do valor. As térmicas movidas a combustível fóssil e a biomassa, e a nuclear geram energia firme.

As fontes intermitentes e sazonais precisam ter unidades de sobreaviso, de preferência de energia firme, ou mesmo outra intermitente ou sazonal. É possível saber, através de cálculo estatístico e baseado em dados históricos, qual é a curva provável de geração de determinada unidade intermitente ou sazonal. Assim, a unidade de sobreaviso terá custos que precisam ser absorvidos pelas unidades que elas viabilizam.

Desta forma, está-se cometendo um erro ao se dizer que “o kWh eólico é mais barato que o kWh nuclear” por se estar comparando valores de unidades diferentes. É como se fosse possível comparar cinco bananas com quatro abacaxis. Os defensores da geração a partir das energias solar e eólica afirmam que baterias capazes de armazenar eletricidade para ser utilizada em momentos nublados ou de calmaria, estão prestes a serem desenvolvidas. Contudo, pelo conhecimento atual, isto não é possível. A geração eólica teve, nos últimos anos, grandes desenvolvimentos tecnológicos que baratearam o correspondente custo do kWh gerado, se houver vento.

O fato de a energia hidráulica ser sazonal nunca foi problema durante muitos anos. Os governos militares, que existiram no país de 1964 a 1985, garantiram o abastecimento de eletricidade do país. Nesta época, a energia hidráulica era implantada de forma tal que, com um grau de confiabilidade de 95%, ela iria suprir boa parcela da necessidade de eletricidade, restando somente pequenas complementações térmicas. Assim, obras eram decididas e implantadas e não houve escassez de eletricidade no período.

A crítica justa que era feita à época era a prioridade dada aos investimentos na geração elétrica em detrimento dos investimentos sociais. Lembro-me de um palestrante, à época, dizer que não era justa a confiabilidade de se ter energia elétrica ser praticamente igual à segurança de que uma criança não iria morrer antes de completar um ano. A mortalidade infantil era alta, então.

3 – Reservatórios plurianuais de hidroelétricas e usinas a fio d’água

Com relação à sazonalidade da fonte hidráulica, pode ser lembrado que os grandes lagos das hidroelétricas mais antigas serviam para estocar água para períodos com escassez de chuvas. Eram os reservatórios plurianuais. As usinas hidroelétricas com reservatórios plurianuais, como foram as primeiras a serem construídas, geravam eletricidade mais barata. As hidroelétricas construídas durante os governos militares, recém-citadas, possuíam reservatórios plurianuais. Estes reservatórios foram combatidos por ambientalistas por inundarem flora e fauna, e algumas vezes inundavam até comunidades inteiras, rodovias, ferrovias e áreas prováveis de mineração.

Como já foi dito, estes lagos “regularizavam” as chuvas, à medida que um ano seco poderia usar água acumulada de ano chuvoso anterior. Com a crítica feroz a eles, caiu-se em outro extremo, que foi o caso, por exemplo, de se perder uma capacidade adicional de 6.000 MW em Belo Monte para evitar que uma comunidade limitada de índios fosse inundada. A sociedade deveria encontrar um meio termo.

Por cerca de 40 anos (mais ou menos, entre 1950 e 1990), grandes reservatórios foram construídos. Mas, há algum tempo, têm-se construído unicamente hidroelétricas a fio d’água. Elas usam a vazão do rio com turbinas a bulbo para a geração e não usam queda d’água, até porque praticamente não há queda. Como consequência, estas usinas não formam um grande lago. Com as restrições hoje existentes para a construção de novas hidroelétricas, restam poucos aproveitamentos atraentes que podem vir a ser utilizados.

4 – Supermotorização de hidroelétricas

Como beneficio das hidroelétricas, surgiu também a ideia de colocação de unidades geradoras adicionais, além das necessárias para a geração da energia firme planejada, visando ajudar a usina a acompanhar a “curva diária de carga” ou a curva da demanda diária de eletricidade. O conjunto de gerador acoplado à turbina está sendo aqui chamado de “unidade geradora”. Este procedimento é chamado de supermotorização das hidroelétricas, que resulta no atendimento da curva de carga, mas, também, no decréscimo do coeficiente de utilização das hidroelétricas.

Esta supermotorização das hidroelétricas serviu também para colocar energia no sistema quando as eólicas não podiam gerar por falta de vento. Acontece que, recentemente, como não se constroem mais hidroelétricas com reservatórios plurianuais e como foram construídas muito poucas unidades geradoras de qualquer fonte, os reservatórios das hidroelétricas chegaram a ficar em níveis críticos.

Por outro lado, um objetivo que as nucleares não conseguem satisfazer a contento é o acompanhamento da curva de carga.

5 – A estabilidade do Sistema Elétrico

Após anos de construção de unidades geradoras de eletricidade e de linhas de transmissão elétrica, complementadas por redes de abastecimento dentro das cidades, foi criada uma malha de fornecimento e consumo de eletricidade, formalmente chamada de Sistema Interligado Nacional (SIN).

Não iremos explicar tecnicamente, mas desejamos que seja aceito o fato de que, nesse Sistema, se existir consumo nas extremidades da rede e não existir geração nestas extremidades, o Sistema poderá se tornar instável.
Por outro lado, existir nas extremidades da rede um aproveitamento hidráulico ainda a ser instalado ou regiões com possibilidade de geração eólica ou solar será uma enorme casualidade.

Na realidade, só se pode contar para estabilizar o Sistema com a construção nas extremidades da rede, de unidades geradoras térmicas a combustíveis fósseis ou a biomassa e de usinas nucleares. A possibilidade de instalação destas geradoras em qualquer local torna-se uma vantagem comparativa das mesmas.

6 – A decisão correta do passado

A adoção da opção hidráulica pelo país ocorreu paulatinamente, começando com a construção das hidroelétricas pioneiras de Minas Gerais, como Três Marias e Furnas, que possuem lagos com áreas consideráveis. Paulo Afonso no Nordeste é também uma das pioneiras.

Nesta época, dois grupos de pressão política, um ligado aos “barrageiros” (empresas nacionais de engenharia e construções) e outro ligado a empresas estrangeiras do setor de petróleo, queriam que o Brasil construísse usinas hidráulicas e térmicas, utilizando derivados de petróleo, respectivamente. Os defensores das térmicas argumentavam que o insumo era muito barato, o que acarretava energia elétrica mais barata que a de origem hidráulica. O barril de petróleo, à época, custava menos de três dólares.

Saiu vitoriosa a opção hidráulica, que, hoje, resulta na de mínimo custo e também é uma opção com baixa emissão de gases do efeito estufa na atmosfera. Esta decisão acertada compensou outra, da mesma época, que foi a de basear o transporte de carga de longo curso através de rodovias, em detrimento dos transportes ferroviário e fluvial.

7 – O planejamento do setor

A tomada de decisão do setor elétrico se resume no ordenamento das entradas em operação das diversas opções tecnológicas de geração escolhidas, satisfazendo a demanda e a função-objetivo previamente decidida. É claro que, posteriormente, precisa ser realizado o planejamento da transmissão da energia gerada.

As opções tecnológicas para geração, comprovadas comercialmente sem subsídios governamentais, são a hídrica, as térmicas a derivados de petróleo, a gás natural, a carvão mineral, a biomassa, a geração eólica e a nuclear.

A função-objetivo a ser otimizada pode ser composta por diversos objetivos como, por exemplo, minimização do custo da energia gerada, minimização da emissão de gases do efeito estufa, maximização das compras locais, maximização da contratação de engenharia no país, maximização das encomendas de desenvolvimentos tecnológicos no país, contribuição máxima à geração de emprego no país, obtenção máxima de saldo em divisas do empreendimento, impacto mínimo ao meio ambiente, minimização da probabilidade de acidentes e por ai vai.

Um modelo matemático que vise a satisfação simultânea de todos estes objetivos é impraticável. No entanto, buscar unicamente minimizar o custo da energia gerada é primário. Para contornar a dificuldade, pode-se buscar soluções que otimizem alguns destes objetivos e, depois, avaliar como estas soluções se comportam com relação aos demais critérios de avaliação.

Causa extrema estranheza quando empresas estrangeiras ou mesmo organismos internacionais se propõem a modelar simploriamente o sistema elétrico brasileiro, único no mundo. A Noruega e o Canada têm sistemas com alguma semelhança ao brasileiro. O grupo Eletrobrás tinha uma modelagem muito superior a qualquer um dos esboços estrangeiros.

Após esta descrição das questões envolvidas no processo de decisão do setor elétrico, fica claro que este processo é complexo. Portanto, é ingênua ou mal intencionada a frase de abertura deste texto. Se o interlocutor é pouco informado e merece consideração, a melhor resposta será: “você tem meia hora?”

Este texto não foi escrito para o pessoal técnico, principalmente se for do setor elétrico. Foi escrito para atingir o cidadão comum com conhecimentos gerais, mas não específicos do tema.
Paulo Metri conselheiro do Clube de Engenharia.

Paulo Metri

Conselheiro do Clube de Engenharia

Paulo Metri
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