Correio da Cidadania

Relatório: Copa e Olimpíada criam Rio dos excluídos

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Documento questiona aplicação de R$ 17 bilhões em eventos que serão assistidos por poucos e têm significado o deslocamento da população carioca para bairros afastados e sem estrutura.

 

Relatório divulgado no dia 18 reforça a leitura de que a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016 servirão para criar um Rio de Janeiro excludente, com remoção de famílias, criação de bairros exclusivamente turísticos e de classe alta, infra-estrutura concentrada e sem acesso da população aos eventos esportivos.

 

O dossiê “Megaeventos e violações dos direitos humanos no Rio de Janeiro”, elaborado pelo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, considera que há uma conotação cada vez mais clara de benefício do setor privado em detrimento dos reais interesses da população. “Em síntese, pode-se afirmar que a importância da Copa do Mundo e das Olimpíadas está menos ligada à realização desses megaeventos em si mesmos (a Copa, as Olimpíadas), e mais ao processo de reestruturação da dinâmica urbana na cidade do Rio de Janeiro, legitimada e possibilitada pelo discurso em torno das oportunidades de desenvolvimento econômico e do legado que esses eventos podem deixar”, aponta.

 

O documento expõe especial preocupação com a atuação da prefeitura da capital fluminense. Os organizadores do trabalho apontam que a questão das famílias removidas pelas obras é o caso mais sério de violação de direitos. A estimativa é de que 1.860 famílias já tenham deixado as casas por conta das obras voltadas aos megaeventos e outras 5.325 estão ameaçadas de sofrer o mesmo destino. Construções para promoção do turismo, infra-estrutura e instalação de equipamentos esportivos são os principais motivos para a desapropriação. “É muito maior o dado real. Não temos a informação relativa às futuras obras. Há uma falta de transparência nos projetos que estão sendo desenvolvidos na cidade”, afirmou Orlando dos Santos Júnior, integrante do comitê e professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista à Rádio Brasil Atual.

 

O relatório acusa a administração municipal de se valer de um artifício para facilitar as remoções. Aproveitando-se da fragilidade jurídica de loteamentos irregulares, a prefeitura de Eduardo Paes (PMDB) não citaria nos processos os reais ocupantes dos locais afetados. “A ação desapropriatória movida na Justiça faz citação de pseudo-proprietários, ou seja, ou já faleceram ou já reconhecem que não são mais proprietários”, aponta o dossiê, que fala em um “jogo de faz-de-conta”. Os valores das indenizações também estariam bastante abaixo dos praticados pelo mercado, levando em conta simplesmente benfeitorias realizadas pelos moradores nos imóveis, sem considerar a apreciação da área em que estão inseridos.

 

A relatora da ONU para o Direito à Moradia, Raquel Rolnik, vai receber uma cópia do documento e avaliar a necessidade de encaminhá-lo às autoridades envolvidas. Em entrevista à Rádio ONU, ela lembrou que em 2010 enviou uma carta ao governo federal falando sobre o desrespeito ao pagamento do valor de mercado nas ações de desapropriação e, desde então, o teto das compensações aumentou para R$ 80 mil. “Obtive a informação que o governo estaria discutindo um protocolo, uma legislação, para regular os procedimentos a serem adotados durante as remoções. Infelizmente, também, até o momento, esse protocolo não foi publicamente anunciado, nem sequer decretado, ou encaminhado através de projeto de lei para o Congresso.”

 

Outro problema seria o pouco diálogo prévio às remoções, que se soma à falta de transparência sobre os projetos que estão nos planos da prefeitura até 2016. Para o Comitê Popular, é exercido sobre os moradores um processo de pressão para que aceitem rapidamente a remoção mediante o pagamento de uma pequena indenização, sem que exista a possibilidade de apresentação de proposta de regularização de áreas ocupadas. “O procedimento da prefeitura de desenvolver intervenções urbanas sem uma discussão com a sociedade é um fato muito grave. O processo de relacionamento do poder público com as classes pobres é marcado por autoritarismo e desrespeito à vida dessas pessoas”, diz Orlando Júnior.

 

Com mapas, o relatório mostra que existe um deslocamento massivo dos estratos mais carentes para a zona oeste do Rio, desprovida de estrutura para receber novos contingentes. Os organizadores do estudo acreditam se tratar de uma mudança intencional para criar a cidade dos excluídos e a cidade dos incluídos. Os investimentos em transporte público, concentrados na zona sul e na Barra da Tijuca, já servidas de melhor estrutura, e a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) se somariam a esta lógica. Outras frentes seriam a internação compulsória de dependentes químicos e a criação temporária de zonas de exclusão controladas exclusivamente pela FIFA, a entidade mundial do futebol, durante o Mundial de 2014.

 

Ao lembrar o exemplo dos Jogos Pan-Americanos de 2007, o Comitê Popular alerta para a possibilidade de que se repita o uso de pesados investimentos públicos em um evento curto e de legado tido como duvidoso. Lembra-se que os aparelhos esportivos, no geral, pouco foram desfrutados pela população, e alguns foram destruídos ou tiveram a entrada sujeita ao pagamento de ingressos caros. “Além do mais, a localização das instalações olímpicas, em geral, favorece áreas da cidade que já têm bastante infra-estrutura esportiva”, diz o documento, novamente em referência à orla e a parques e praças. “Se isso não bastasse, seus moradores têm poder aquisitivo para frequentar academias de ginástica e clubes esportivos.”

 

No geral, estima-se que os dois eventos irão consumir R$ 16,7 bilhões, a maior parte em investimentos públicos federais. “Efetivamente a valorização fundiária decorrente dos investimentos públicos vai ser apropriada por outros agentes econômicos. Essa transferência da posse das classes populares para agentes imobiliários é evidente”, critica Orlando Júnior, ressaltando a existência de transferência direta de terrenos públicos para empresas privadas.

 

O caso do Pan é novamente abordado ao colocar em foco o Maracanã. Somando as reformas para o evento de 2007 e para o torneio de 2004, o estádio terá consumido R$ 1,43 bilhão – e provavelmente sofrerá novo fechamento para a Olimpíada. Entre 2005 e 2013, terá ficado fechado durante quatro anos, metade do tempo, e estará sujeito a um projeto de privatização planejado pelo governo estadual. A tomar em conta os ingressos cobrados pela FIFA nas últimas edições da Copa, o relatório conclui que é pouco provável que a massa da população brasileira tenha acesso às partidas, coroando um processo de elitização do futebol em que o torcedor das classes mais baixas importa pouco aos clubes e aos dirigentes esportivos. “Assim, pode-se perguntar se a Copa do Mundo e as Olimpíadas terão como legado uma cidade mais justa, com melhores equipamentos de saúde, educação e esportes, especialmente para a população mais carente, ou se esse legado será representado por mais policiamento, mais vigilância, mais repressão e mais lucros para empresas que não pagarão impostos?”, questiona o dossiê, sugerindo que haja uma abertura ao debate público.

 

Por João Peres, Rede Brasil Atual.

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