Fundações estatais institucionalizam a mercantilização da Saúde Pública
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- Mateus Alves
- 04/09/2007
Para analisar as mazelas do sistema público de saúde do Brasil - nas últimas semanas em evidência em função da greve de médicos no nordeste, resultando no agravamento da saúde e até mesmo na morte de pacientes -, o Correio da Cidadania entrevista Francisco Batista Júnior, presidente do Conselho Nacional de Saúde.
Batista Júnior considera que a proposta recém divulgada pelo governo, de criação de fundações estatais que gerenciariam a saúde no país, é de "extrema insensibilidade" e incapaz de combater os problemas estruturais que, cada vez mais, se aprofundam no setor.
Confira abaixo.
Correio da Cidadania: Como o Conselho
Nacional de Saúde enxerga a eficiência do Sistema Único de Saúde (SUS) no
Brasil?
Francisco Batista Júnior: O SUS,
hoje, está consolidado. Talvez não plenamente consolidado, mas é uma realidade
e presta um serviço incomensurável à população brasileira. Quando comparamos o
que temos hoje, em matéria de saúde efetivamente pública, e o que existia
antes, não tenho a menor dúvida de que o SUS é vitorioso. Para provar isso, aí
estão os programas de vacinação que atingem todas as camadas sociais da
população brasileira, o programa de transplantes, o programa de atendimento aos
portadores de HIV - ambos os maiores programas do mundo -, o atendimento a
pacientes renais crônicos, das pessoas com hepatite, e os programas de saúde da
família disseminados por todo o país.
Digo isso porque, em nosso entendimento, há uma campanha da grande mídia contra
o SUS no país, que busca desqualificar o sistema, dizer que não funciona e que
precisa mudar. Há uma perspectiva de privatização, de combater o muito que o
sistema permite hoje em termos de universalidade e integralidade.
CC: No entanto, trata-se de um sistema
com algumas falhas, não?
FBJ: Claro. Um dos principais
problemas, em meu entendimento, são conseqüências, primeiro, da cultura
histórica de nosso país. No Brasil, a saúde sempre foi um instrumento muito privatizado,
no sentido econômico, político e corporativo. Analisando a saúde através da
história vemos que os serviços de saúde prestados pelo ente estatal sempre tiveram
muito mais um aspecto "curativo" - o que é muito grave - e sempre foram,
dentro desse aspecto curativo, calcados na realização de procedimentos através
de contratações junto ao setor privado. Nunca tivemos realmente um programa de
prevenções. Essa perspectiva do projeto de Saúde como tratamento de doenças,
feito de uma maneira privatizada, sempre foi parte de nossa cultura, em
detrimento de uma atenção básica.
Com o SUS, isso não foi revertido. Ao contrário, esse modelo hospitalocêntrico
e curativista foi incrementado, com os medicamentos de alto custo - que
interessam às grandes indústrias farmacêuticas - e com o plano de transplantes,
que é feito quase integralmente pelo setor privado.
Essa cultura de privatização e da alta complexidade do curativismo foi
incrementada duramente a década de 1990, à revelia dos movimentos sociais e dos
defensores da reforma sanitária.
Além disso, a administração do sistema de saúde no Brasil, tanto no plano da
gestão quanto no plano da gerência dos serviços, sempre foi utilizada de forma
muito particular, sendo realizada para atender aos interesses de pequenos
grupos econômicos, políticos e corporativos. Quando se nomeia o diretor de um
hospital, não há um pensamento no sentido de avaliar se a pessoa é qualificada
ou não. O que se pensa é se essa pessoa será indicada por algum político, por
alguém "do esquema", e se na direção desse serviço irá atender aos
interesses do grupo que a apóia.
Essa facetas que não são pouca coisa, geraram distorções profundas no sistema.
CC: É comum, também, a crítica aos
serviços proporcionados pelo serviço público de saúde, considerados lentos,
pouco prestativos e ineficazes - vide as imensas filas nos hospitais país
afora. Qual a sua opinião sobre isso?
FBJ: Há também serviços que pecam
por uma falta de eficiência maior, mas essa falta de eficiência é muito mais
conseqüência de uma falta de profissionalização da gerência dos serviços e de
um mínimo de autonomia administrativa, política e financeira do que
propriamente da incapacidade do setor público de administrar a sua própria
casa.
Esse argumento de que aquilo que é público não funciona e que precisa ser
privatizado é falso. Na verdade, as experiências que existem no Brasil e que
obedecem ao que defendemos na reforma sanitária funcionam muito bem. Há
serviços de saúde pública que, com um mínimo de independência e profissionalismo,
são extremamente eficazes.
Há também uma dependência muito forte de profissionais especialistas - que,
inclusive, estão se organizando através de cooperativas, de reivindicações
diferenciadas. Esses profissionais ficam à vontade para utilizar na discussão e
na disputa com o poder constituído a relação de mercado como instrumento de
negociação, algo que, em se tratando de saúde, é muito complicado.
Por fim, há também uma grande dependência do setor privado contratado em
procedimentos de alta complexidade. Por exemplo, mais de 95% das hemodiálises
são feitas pelo setor privado, gerando uma dependência muito forte e, por
conseguinte, a insuficiência do financiamento. Para se pagarem os procedimentos
ao setor privado nunca haverá dinheiro suficiente, pois sua lógica capitalista
exige cada vez mais recursos.
Claro que exigem casos e preços de procedimentos que precisam ser revistos, mas
temos absoluta consciência de que, mesmo com essa revisão, se esses
procedimentos não forem disponibilizados na rede pública, novamente teremos
problemas, pois logo irão querer um novo aumento. As crises que o sistema vem
enfrentando têm a ver com essa realidade.
CC: Os recursos alocados para a saúde
pelo governo federal seriam suficientes para a manutenção adequada dos serviços
caso estes fossem integralmente estatais?
FBJ: Se o sistema de saúde fosse
totalmente estatal, e se tivéssemos um sistema forte de prevenção de doenças, além
de um quadro de profissionais exercendo a sua função como carreira de Estado,
não tenho a menor dúvida de que a realidade seria outra. Esses são os três
eixos que precisam ser confrontados para solucionar os problemas da Saúde
nacional.
CC: O salário dos profissionais da saúde
pública seria um ponto crítico para uma solução eficaz?
FBJ: Os salários dos profissionais
são muito baixos, mas aumentá-los nesse momento, principalmente o das
categorias mais elitistas e mercantilistas, implica em se apagar apenas um
pequeno incêndio.
Profissionais especialistas, hoje, se negam a oferecer seus serviços ao setor
público. Isso pois sabem que têm garantida a realização dos mesmos
procedimentos no setor privado contratado, onde recebem de modo muito mais
cômodo. Vão ao hospital privado, fazem o que têm que fazer, colocam o dinheiro
no bolso e vão embora para a casa.
Alguns profissionais, hoje, fazem leilão de suas forças de trabalho. Por
exemplo, um obstetra ofereceu seus serviços à prefeitura de uma cidade por 17
mil reais. O prefeito daquela cidade disse que não poderia pagar mais, pois ele
próprio ganha 6 mil reais e, de acordo com a lei, nenhum funcionário municipal
poderia ganhar mais do que isso. Aí, por precisar dos serviços do profissional,
sendo que não há nenhum outro disponível na região, o prefeito se submete à
ilegalidade e dá um jeito de pagar ao obstetra a quantia que este deseja.
Isso não pode acontecer. Precisamos de profissionais que tenham comprometimento
pessoal, ético, profissional e ideológico com o atendimento da população - e
que tenham uma carreira de Estado com valorização profissional, com estímulos à
qualificação e à dedicação exclusiva.
CC: O projeto de lei complementar (PL
92/2007) que propõe a criação de fundações estatais de direito privado para a
gestão de serviços público, enviado pelo Executivo ao Congresso em 11 de julho,
causou divergência de opiniões. O CNS é contra ou a favor? Por quê?
FBJ: Somos contra. Essa proposta é
de uma extrema insensibilidade, além de ferir a Constituição ao criar um ente
privado ao qual será transferida a responsabilidade pela gestão da saúde no
Brasil.
As fundações estatais - um nome criado apenas para tornar mais palatável a
proposta, pois juridicamente essa figura inexiste - aprofundam todos os
vínculos e dependências que mencionei anteriormente. Além de não bater nas
questões estruturais, a fundação privada institucionaliza e alimenta uma
situação de mercantilização das relações profissionais que temos que extirpar
dos serviços de saúde. Hoje, em qualquer estado da federação, encontramos
profissionais que só prestam serviço às redes públicas através de cooperativas.
Abrir mão das relações formais de trabalho em função de uma visão meramente
mercantilista é uma derrota ideológica incomensurável da classe trabalhadora.
Isso é algo que nunca imaginei que iria presenciar. E a fundação estatal
institucionaliza essa mercantilização, estabelecendo que os salários serão
pagos de acordo com a realidade do mercado. Por trás de tal proposta, existem
pessoas que pretendem legalizar o quadro hoje existente; mesmo alguns
secretários de saúde me disseram que essa era a intenção.
As fundações poderão, inclusive, inviabilizar os serviços de saúde pública em
alguns municípios. Analisando ainda o caso do obstetra que mencionei
anteriormente, o fato de sua contratação se tornar legal não garantirá nenhuma
solução; ele cobra, hoje, 17 mil reais, pois sabe que legalmente é impossível
uma prefeitura pagar isso. Agora, se ele sabe que é possível pagar, de maneira
legal, 25 mil reais, é esse o valor que irá cobrar.
Tal leilão, com as fundações, irá se estender a outros profissionais que não
somente os especialistas, que irão perceber que há em vigor um dispositivo
legal que permita sua existência. Além disso, uma fundação irá pagar, por
exemplo, para um assistente social os quatro mil reais que estes ganham hoje na
rede pública - o que ainda é pouco - ou os 1,5 mil que a rede privada paga? Não
vão se preocupar com a qualidade dos serviços, só com os preços. É isso que
queremos para a população?
CC: De acordo com o PL, as contratações
de trabalhadores feitas pelas fundações estatais seriam realizadas por meio da
CLT. Qual a sua opinião sobre isso?
FBJ: Não é correto dizer que
"somos contra as fundações" porque "somos contra a CLT". O
que ocorre, primeiro, é o fato de ser um absurdo a comparação da CLT que será
aplicada nas fundações com o regime em vigor na Petrobras e no Banco do Brasil.
Comparar pessoas que vão trabalhar com a saúde, com a vida das pessoas, com
trabalhadores do sistema financeiro? Isso é uma desconsideração intelectual que
nunca pensei que pessoas que se dizem defensores da reforma sanitária pudessem
utilizar como argumento.
Temos provas concretas que existem, sim, profissionais que trabalham no setor
público cujo compromisso com a população é nulo. Espanta-me o fato de não serem
demitidos, já que existem leis que permitem isso caso determinadas regras não
sejam cumpridas. Não se demite, pois há ingerência política, ninguém quer
perder votos demitindo trabalhadores da saúde. Isso passa a impressão de que
ninguém é punido no setor público por pouca eficiência.
É também importante para os trabalhadores do setor público terem uma
estabilidade e não ficarem à mercê do gestor de plantão. Hoje, os
terceirizados do setor da saúde trabalham com essa insegurança; isso depõe
contra a possibilidade do serviço público ser bem executado.
CC: Quais ações foram tomadas durante a
gestão petista no Planalto em relação aos serviços de Saúde no Brasil? Houve
avanços ou retrocessos?
FBJ: Primeiro, nós não reconhecemos
esse governo como sendo um governo do PT. O partido não manda em quase nada
ali, desde quando se iniciou a crise do mensalão. Antes, era um governo de
coalizão; hoje, é difícil até identificar a sua cara.
Até que, em alguns aspectos, houve avanços. A transformação pela qual o
Conselho Nacional de Saúde passou nos últimos anos foi algo que jamais
imaginávamos ser possível acontecer em tão curto espaço de tempo. Hoje, há um
colegiado amplamente democratizado, ampliado em sua constituição, com
presidente eleito. O Conselho está cumprindo o seu papel na discussão sobre o
sistema de saúde pública, trazendo debates, realizando conferências - só neste
ano, já foram feitas mais de 3.200, em todo o país.
Esse avanço da participação social é, sim, uma conquista deste governo. O novo
debate que acontece no país sobre o modelo de atenção básica, em detrimento ao
curativismo, é algo que está em pauta.
Embora haja críticas em relação ao orçamento, este também foi aumentado. Isso
permite o atendimento de portadores de HIV, além de manter de pé alguns
procedimentos de alto custo.
Agora, de maneira geral, permanece ainda uma cultura conservadora, cujos pontos
são aqueles que mencionei anteriormente.
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