Luz nas trevas
- Detalhes
- Paulo Metri
- 20/04/2011
A partir de um olhar humano, nossa espécie caminha a passos imperceptíveis em direção a seu desenvolvimento humanístico, pois nosso tempo de vida é curto demais para testemunhar algum avanço significativo. Isto ocorre em contraste com o desenvolvimento tecnológico, cuja evolução é sensível até para quem vive somente uma idade abaixo da média da espécie. Inclusive, quanto à evolução humanística, há períodos em que claramente regredimos, por exemplo, durante as guerras.
A grande maioria da sociedade humana sempre esteve sendo explorada. A forma mais primitiva da exploração, que persiste até hoje, se dá pela força bruta. Grupos bárbaros e exércitos saqueavam aldeias e cidades, senhores feudais confiscavam parcelas da produção dos aldeões, reis arrebanhavam impostos dos súditos, piratas pilhavam navios e mercadores caçavam negros na África para serem escravos. Países europeus criaram colônias nas Américas, na África e na Ásia para as riquezas destes continentes serem exploradas por eles que tinham o poder das armas. E, se alguém nas colônias se rebelasse contra a exploração da "desenvolvida" Europa, era exemplarmente punido.
A História humana é impregnada de brutalidade, incompreensão com o semelhante, egoísmo e ganância. Existem também exemplos de fraternidade, amizade, compreensão, mas raramente entre países e classes. Nenhuma outra espécie viva matou tantos dos seus quanto à humana. Pode-se até dizer que a humanidade é desumana e causa estranheza se dizer que a falta de humanidade existe nos homens. Hipocritamente, houve "evolução" no ato de explorar, pois ele passou a ser mais dissimulado. Por exemplo, os cruzados foram ao Oriente para combater os infiéis mouros e os jesuítas se espalharam pelo mundo para catequizar os nativos impuros.
A História conseguiria, se bem descrita, expandir nosso horizonte de percepção e, assim, creio que seria possível afirmar que nos últimos 500 anos a nossa espécie teve alguns momentos de avanço humanístico e muitos de estagnação e recuos. Iremos pinçar os últimos 500 anos, porque o período imediatamente anterior corresponde à Idade Média, quando uma treva quase total escureceu o planeta.
Assim, nestes últimos 500 anos, existiram eventos que representaram, comparativamente, clarões de desenvolvimento humanístico, na escuridão em que vivia a espécie. Pode-se listar, por exemplo, o Renascimento, que nos empurrou para fora da Idade Média, com transformações na filosofia, artes, ciência, comportamento social, política e organização econômica. Durante esta fase de mudanças, que se iniciou antes da entrada no século XVI, surgiu o mercantilismo, com o término da economia feudal. Em época posterior, o capitalismo. Pode-se citar também, sem se estar hierarquizando por grau de importância, o término do poder absoluto da monarquia britânica por obra de Cromwell, cujo início da participação política deu-se em 1628.
O Iluminismo e a Revolução Francesa, esta começando em 1789, trazem esperança de liberdade, igualdade e fraternidade. O Manifesto Comunista de Marx, de 1848, e toda sua obra tentam difundir, além de outras esperanças, a socialização dos meios e benefícios da produção. Então, desde o século XVI, tem-se uma manifestação humanística forte, a cada século, menos no XX.
Entretanto, quando se pensou que o máximo do refinamento na arte de ludibriar havia sido atingido recentemente, a dissimulação conseguiu se suplantar, atingindo o ápice quando a exploração entre países e de classes dentro de um país não consegue ser identificada pelos próprios explorados. Criou-se todo um arrazoado teórico para justificar o capitalismo levado ao extremo. Quem ajudou a fundamentar a base teórica para tal, não importando a falta de análises sociais, políticas e estratégicas dos fundamentos, é guindado a ganhador de prêmio Nobel. A máquina internacional do capitalismo foi colocada nesta empreitada. Governos confiáveis a ele foram requisitados para darem e difundirem o exemplo, que é o momento em que surgem Thatcher e Reagan. De países satélites, é exigida a adoção incondicional do novo modelo. Esta tese é propalada como o remédio milagroso que trará sucesso para todos os subdesenvolvidos.
Contudo, os desenvolvidos não precisavam seguir à risca o mesmo receituário. É tolhido em diversos países um debate aberto em que o novo modelo pudesse ser contestado.
Entidades de representação internacional, como FMI, Banco Mundial e OMC, controladas por poucos países desenvolvidos, impõem a aceitação das teses neoliberais e da globalização de interesse do capital internacional. Grandes agências de notícias mundiais, que são controladas pelo capital, assim como muitos grupos de mídia em países do ocidente, difundem somente uma versão dos fatos, inclusive, em muitos casos, não verdadeira. Às agências classificadoras de risco é delegada a fiscalização da aplicação dos conceitos recém impostos, além do FMI e de outros órgãos internacionais. Com o neoliberalismo e a globalização desinteressante, foram retirados dos países, principalmente dos em desenvolvimento, graus de liberdade nas decisões, que foram entregues ao capital internacional.
Então, estabeleceu-se que: 1) não devem ser criados impedimentos nos países ao livre fluxo de capitais; 2) as economias devem ser desregulamentadas; 3) devem ser retiradas as barreiras alfandegárias de cada país, decretando o fim do protecionismo; 4) devem ser produzidos em cada um, somente, os produtos e serviços para os quais é "vocacionado"; 5) devem ser acabados os subsídios às produções nacionais; 6) deve ser adotado o Estado mínimo e, assim, empresas estatais devem ser privatizadas; 7) são criadas agências reguladoras de mercado, que, de maneira escamoteada, servem para garantir a máxima rentabilidade para os investidores; 8) não deve haver constrangimento à desnacionalização da economia.
Resta dizer que, dentre os países em desenvolvimento, os que se saíram melhor, no período neoliberal (aproximadamente, as décadas de 80, 90 e 2000), foram os que não seguiram esta receita. É triste constatar que os capitais nacionais preferiram ficar com as migalhas do projeto neoliberal alienista a fechar acordo com a sociedade brasileira para protegê-la - a si próprios também.
Chegou-se ao incrível ponto da exploração ser instituída na sociedade, através de constituições nacionais aprovadas pelos representantes do povo que mais pareciam ser seus carrascos. Muitas instituem a legalidade da transferência de renda entre classes da sociedade, assim como de riquezas pertencentes a todos para grupos representantes do capital. Freqüentemente, dentro de um país, a legislação permite a concentração de renda e riqueza e a transferência para o exterior de lucros e riquezas. Governantes e políticos sem compromissos com o povo ajudaram muito o sucesso deste processo de engodo, ao atuarem para beneficiar grupos menores, prejudicando o todo. O mais triste de tudo é que conseguiram incutir na sociedade que este processo era inexorável e o exército de desempregados que o novo modelo acarretou era por culpa do próprio trabalhador que não tinha habilidades suficientes. É como se alguém chegasse para um cego de nascença e dissesse que o culpado dele ser cego era ele próprio. Incutiram na sociedade também o absurdo que a miséria era conseqüência da inépcia e da preguiça dos mais pobres.
Depois, devido à ganância extremada de alguns, buscando incessantemente o acúmulo de riquezas, não importando as conseqüências dilacerantes nos menos alertados, a não transmissão de velhas experiências para novas gerações, a fadiga da sociedade na busca por um mundo melhor, sem conseguir avanços significativos, o sucesso da máquina de enganação que consiste a comunicação de massas e a proximidade pecaminosa de alguns intelectuais, políticos e lideranças diversas com os corruptores do capitalismo, que não são poucos, ocorreu uma deterioração tão arrasadora das conquistas anteriores que se pode dizer, hoje, que retornamos às trevas. No entanto, é uma Idade Média dissimulada, pois muitos de nós somos capazes de jurar que se está em um período de plena liberdade. Supomos que vivemos em liberdade, ilusão que só é conseguida graças à catequese da mídia que desinforma, em ato maquiavélico. O cidadão não tem nem consciência que está sendo manipulado e está tudo mal.
O liberalismo econômico não é atrelado ao liberalismo político, pois qualquer um pode existir com ou sem a existência do outro. Para verificação se há coincidência de conceitos, considero o liberalismo político altamente recomendável, enquanto o econômico extremamente reprovável. Pois bem, o liberalismo econômico foi ressuscitado das décadas de 20 e 30 do século passado, por inexpressiva minoria que se beneficia materialmente, acumulando mais riqueza, graças ao fato de deter os instrumentos de controle da opinião das massas. É interessante notar que os porta-vozes do capital nunca querem debater a democracia econômica. O acordo internacional AMI, cuja imposição foi tentada e sepultada somente por causa de desavenças entre os grandes, significaria a completa desregulamentação financeira dos países com garantias extremas para os investimentos do capital no mundo. Isto tudo fez parte da passagem para o novo período de escuridão.
Assim, o país mais poderoso do mundo, tanto militar como economicamente, decide quais ditaduras devem ser consideradas como agressoras dos direitos humanos. Então, a ditadura da Arábia Saudita não causa problema algum para os direitos humanos, enquanto Kadafi é um ditador sanguinário. Mubarak passou 29 anos sendo um ditador irrepreensível para os Estados Unidos e, quando não tinha mais sustentação política, virou um ditador mau. Ditaduras foram apoiadas pelos Estados Unidos na América Latina, nos anos 70, se não foram planejadas por este país, especificamente no Brasil, no Chile, no Uruguai e na Argentina.
A lição que se pode tirar de uma análise mais cuidadosa sobre o Oriente Médio e o Norte da África hoje é que, segundo a lógica do mais forte, países com grandes recursos petrolíferos, que querem maximizar seus ganhos nesta atividade, minimizando o lucro das empresas estrangeiras do setor, e não querem ofertar quantidades consideráveis de petróleo no comércio internacional, têm seus governos caracterizados como ditaduras. Entre as forças de Kadafi e as da OTAN, não opto por nenhuma delas e tenho profunda tristeza pelo sofrimento do povo líbio. Hoje, a OTAN são forças armadas auxiliares das forças norte-americanas e, assim, deseja-se que ela atue em qualquer país considerado rebelde, mesmo que não esteja no Atlântico Norte.
O discurso de pregação da democracia e a favor dos direitos humanos deve ser sempre utilizado em países sem ditaduras colaborativas, pois a vitória do capital na guerra da comunicação e das campanhas eleitorais é acachapante. Com a comunicação de massas dominada pelo capital e o marketing político, é fácil o mandatário, que será sufragado pelo povo, ser escolhido, previamente, pelos detentores de capital com interesses na região. Assim, eleição não pode nunca ser ganha pela escolha consciente do povo, e sim sempre pelo capital, que a vê como um investimento de altíssima rentabilidade.
A novidade, a luz nas trevas, consiste em que existem exceções a este padrão e elas estão se tornando mais numerosas na América do Sul, além existirem também em outros países do mundo em desenvolvimento. Outra novidade é o retorno lento, mas constante, ao mundo bipolarizado, estando em processo de finalização o período de país hegemônico dos Estados Unidos, sem querer negar a superpotência que são. As redes sociais começam a contestar a rede anti-social que é a mídia do capital. Entretanto, é preciso estar alerta porque mesmo as redes sociais sofrem influência do capital. WikiLeaks e outros furos e denúncias mostram o verdadeiro espírito das nações e as verdadeiras forças que dominam a política mundial. Apesar de muitos grupos, em especial no mundo árabe, estarem sendo manipulados pela CIA e outros órgãos espúrios de países amigos do capital, e estando a milhares de quilômetros de distância dos acontecimentos e abastecido com informações filtradas pelos controladores do mundo virtual, os povos do Oriente médio e do norte da África estão, aparentemente, mais conscientes. Haveria indícios de alguma melhoria na conscientização da população mundial. Estaríamos no meio do aparecimento de um novo clarão humanitário? Ou estou somente esperançoso?
Paulo Metri é engenheiro e conselheiro da Federação Brasileira de Associações de Engenheiros.
{moscomment}