Correio da Cidadania

Complexo de yorkshire

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Recentemente, o ex-ministro Delfim Netto escreveu em um artigo na Carta Capital de 29/2/12: “..., a mídia internacional já incluiu na pauta (da próxima visita da presidente Dilma aos Estados Unidos) o interesse americano de discutir parcerias na área energética, com destaque para as oportunidades de exploração do petróleo e gás das jazidas do pré-sal...”.

 

Segundo notícia recente do jornal Valor, o BNDES irá financiar US$ 1,8 bilhão para a Brittish Petroleum (BP) explorar petróleo no pré-sal. Desta forma, tenho medo de que o interesse estadunidense em parcerias na área do pré-sal, citado por Delfim Neto, consista de petróleo no subsolo da nação brasileira, financiamento do BNDES, renúncia fiscal do governo brasileiro, tecnologia da Petrobras, plataformas de estaleiros do exterior, petróleo produzido, lucro das empresas petrolíferas estrangeiras e migalhas de royalty ao país, estados e municípios.

 

A jornalista responsável pela matéria do Valor acrescentou corajosamente o seguinte trecho: “O BP Group espera que os termos definitivos do acordo relativo ao financiamento de 14 anos com o BNDES sejam firmados no segundo trimestre. Todo esse petróleo será extraído nas regras antigas do governo FHC, que cobram na média menos de 5% por petróleo extraído (naquelas regras, se o poço tira menos de 90 mil barris/dia não paga praticamente nada) e 90 mil barris dia é um mega-poço.

 

A lei 9.478 da era FHC, dentre os inúmeros prejuízos causados a nossa sociedade, além do já citado, permite a renúncia fiscal por parte do governo brasileiro para as petrolíferas desenvolverem tecnologia. É de se estranhar que o Brasil, com o alegado déficit na Previdência e as enormes carências no atendimento da Saúde e da Educação para a sociedade, por exemplo, venha a abrir mão destes recursos para ajudar empresas bilionárias, com enormes centros de pesquisa nos seus países de origem, a ter maiores lucros. O déficit da Previdência só existe na hora dos cortes orçamentários?

 

O REPETRO, um regime especial de tributação para o setor de petróleo, criado na mesma época e partindo dos mesmos princípios da lei 9.478, acrescido de decisões erradas do CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária), compõe o maior absurdo que se pode imaginar em política industrial, qual seja, o produto nacional pagar mais imposto que o produto estrangeiro. Assim, conseguiram que o Brasil fosse o único país do mundo que penaliza sua produção e incentiva a importação. Desta forma, o REPETRO e as específicas decisões do CONFAZ precisam ser extintos.

 

Cabe ainda contar que o destino pregou uma peça nos arquitetos do modelo neoliberal deste setor, introduzido nos anos 1990. Eles esperavam que as petrolíferas estrangeiras arrematassem grande número de blocos desde o primeiro leilão e, por isso, renúncias fiscais foram providenciadas.

 

Acontece que quem arrematou muitos blocos, sozinha ou associada, foi a Petrobras. Assim, esta empresa foi a maior beneficiária do REPETRO, em um momento em que precisava de muitos recursos para poder participar dos leilões com chance de vencer. Mas isso não pode ocorrer às custas das empresas nacionais.

 

É grande o número de empréstimos do BNDES a empresas estrangeiras de diversos setores, o que, só em situações específicas, pode ser recomendável. Por exemplo, se certo produto indispensável para a expansão de outros setores só pode ser fabricado por uma subsidiária estrangeira, que detém a sua tecnologia de produção, e tal subsidiária alega necessitar de financiamento, configurando, assim, uma possível exceção.

 

Não existe técnico ou dirigente dos diversos órgãos deste país que não saiba o que é soberania nacional e a sua importância para um real desenvolvimento do país. Falo do grande salto, não do aproveitamento de fase passageira, quando produtos primários estão valorizados no mercado internacional. O que é realmente relevante é não se ter uma visão errada da nossa economia como sendo acessória das economias centrais. Quando o BNDES empresta recursos para empresas estrangeiras, não operantes em gargalos ou sem trazer o último avanço tecnológico, é porque está sofrendo do complexo de yorkshire. Quem sofre desta doença apóia, sem pestanejar, o que os países desenvolvidos mandam os em desenvolvimento fazer.

 

Estranho ainda existirem adeptos da economia dependente como o correto caminho para o desenvolvimento, apesar dos retumbantes fracassos da tese no laboratório mundial, hoje e em passado recente. Por outro lado, existem também os de mau caráter, que obtêm compensações lucrativas ao recomendarem para a sociedade, representando o papel de especialistas em economia ou de políticos bem intencionados, esta tese tão prejudicial.

 

Após algumas décadas de domínio estrangeiro sobre nossa mídia, a confusão nos cidadãos é compreensível. Um deles perguntou para mim, usando os reflexos a que fora condicionado: “O fato de termos grande participação de empresas estrangeiras na economia brasileira pode não ser um erro. Elas investem aqui, pagam impostos, geram empregos etc.” Em respeito ao seu desejo de entender com uso da racionalidade, fiz algumas observações, mostradas a seguir, sobre esta afirmação.

 

Claro que é melhor uma subsidiária estrangeira produzir determinado produto no Brasil do que o mercado interno ser suprido pela importação do mesmo. Entretanto, melhor seria se existisse uma empresa de capital nacional produzindo tal produto no Brasil, porque iria encomendar engenharia e desenvolvimentos tecnológicos no país, comprar bens e contratar serviços também no país. Ou seja, quem mais compra, contrata e conseqüentemente emprega pessoas no Brasil são as empresas genuinamente nacionais. Além disso, as empresas estrangeiras remetem seus lucros obtidos no Brasil para o exterior, necessariamente.

 

Neste instante, o interlocutor retornou com nova argumentação: “Então, o erro é das agências reguladoras que não cumprem o papel de exigir que os interesses da nossa sociedade sejam atendidos. Elas poderiam exigir compras e contratações locais etc.” Lembrei a ele que a empresa genuinamente nacional tende a fazer tudo isso sem precisar de coerção e as empresas estrangeiras são entidades politicamente mais poderosas que as próprias agências, principalmente em países com baixo índice de politização.

 

Deve-se lembrar que para ocupar cargos de direção das agências são acolhidas em geral indicações feitas pelos próprios agentes econômicos a serem regulados, seguindo acordos políticos de longa data. O poder eleitoral de grupos econômicos não pode ser esquecido e, conseqüentemente, sua influência junto ao governo eleito. Assim, as agências reguladoras, com algumas exceções, são órgãos que visam mais garantir a lucratividade dos agentes econômicos do que os interesses da sociedade.

 

Hoje, não se consegue que as empresas de setores extremamente lucrativos não mais usufruam renúncias fiscais ou benefícios de créditos governamentais, o que diminuiria os seus lucros. Não se consegue paralisar os leilões da ANP, apesar de serem extremamente danosos, por todas as razões exaustivamente expostas neste fórum. O arcabouço legal que permitiu a criação de déficits de soberania, a partir da década neoliberal (anos 1990), não foi ainda desarticulado. Em um passo seguinte, este déficit se transforma na piora da qualidade de vida do brasileiro.

 

Aproveito para resgatar o prestígio do vira-lata, raça imprecisa, mas inteligente e feliz, que tanta alegria traz para seu dono. O comumente citado “complexo de vira-lata”, com todo respeito ao Nelson Rodrigues, não condiz com a realidade, uma vez que esta raça não é inferior, se considerarmos como critério de julgamento a felicidade do seu dono e a sua própria. Contudo, o complexo de yorkshire, sim, nos inferioriza e deprime.

 

Leia mais:

‘Governo brasileiro abriu mão do controle da política econômica do petróleo’

 

Paulo Metri é conselheiro da Federação Brasileira de Associações de Engenheiros e do Clube de Engenharia.

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