Correio da Cidadania

Comissão da Verdade sem ódio II

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As torturas e os assassinatos ocorridos no período ditatorial são verdades objetivas e claras. Entretanto, a completa lista das causas primeiras que ajudam a compreender o momento ditatorial é passível de diferentes interpretações.

 

Há algum tempo, apareceram documentos elucidando o período imediatamente anterior ao golpe de 1964 e atos posteriores realizados pelos vencedores. A minha percepção é que os militares de então, ou pelo menos os de escalão médio, acreditavam piamente estar combatendo o comunismo, dentro do contexto da guerra fria, mas, na verdade, ajudavam o capital internacional, incluindo as multinacionais, países desenvolvidos, principalmente os Estados Unidos, e parte da elite econômica brasileira, que preferiu se aliar a grupos estrangeiros a se aliar ao povo. Estes foram os maiores beneficiários do golpe. Assim, a maioria dos militares nossos foi usada para servir a interesses econômicos e de poder de países e grupos internacionais, tendo a obsessão comunista servido como excelente mote.

 

Além do militar torturador que virou bicheiro, não ouço falar de nenhum outro que tenha acumulado grande fortuna no país. Eles impunham suas visões autoritariamente e deixavam claro querer manter o poder, mas quem mais lucrou foram os três grupos já citados. As atuações de Vernon Walters e Lincoln Gordon no Brasil, além do papel do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e da operação Brother Sam, só há algum tempo trazidas à tona, comprovam o apoio externo ao golpe. Não vou repisar sobre o período militar, pois os textos são inúmeros. Quero só lembrar que, além do povo, quem derrubou os militares foram Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Mario Covas, Franco Montoro e tantos outros, que não pegaram em armas, mas fizeram discursos e articularam ações políticas.

 

Trazendo os holofotes para o período neoliberal do governo FHC, o desemprego, a exclusão social, a diminuição de verbas para programas sociais, a piora do atendimento do SUS, a diminuição do poder de compra dos salários e o cancelamento de direitos trabalhistas deste período diminuíram a qualidade de vida, quando não significaram a morte, sem que a relação entre medidas neoliberais e mortes causadas pela fome e doenças da pobreza seja facilmente identificada, porque as conseqüências são dispersas e não imediatas. Não estou tentando minimizar o grau de barbaridade dos atos dos militares. Tenciono, sim, mostrar que existem outros agentes do martírio do povo. Não estaria faltando uma Comissão da Verdade do período liberal profundo? Os islandeses estão, neste instante, julgando as lideranças que empurraram o país para o neoliberalismo.

 

Além da entrega de outras riquezas no período liberal, chama a atenção a entrega do petróleo brasileiro, por ser um item extremamente valioso e insubstituível, pelo menos no curto e médio prazos, na economia mundial. Vários foram os presidentes que sofreram pressão para que ocorresse a quebra do monopólio estatal do petróleo e resistiram. Todos nós conhecemos a resistência oferecida por Getúlio Vargas. Juscelino Kubitschek chegou a receber do governo estadunidense proposta de financiamento da construção de Brasília, em troca do monopólio ser revogado.

 

Com a globalização de mercados, o livre fluxo de capitais e o liberalismo econômico exacerbado, a usurpação das riquezas de um povo, que não se protege, ficou mais fácil. Sem entrar em relações econômicas e políticas, para o presente artigo não fugir do tema principal, o antídoto ao neoliberalismo é um projeto soberano para a nação brasileira, que passa a ser uma necessidade social, pois acarreta significativa melhoria da qualidade de vida do nosso povo. Um país não soberano leva à diminuição das atividades econômicas mais lucrativas, a perdas no comércio internacional e à diminuição da oferta dos bons empregos locais. Em resumo, significa o empobrecimento do povo.

 

Sem Forças Armadas capazes de dissuadir potenciais agressores não há nação soberana. Está se falando de Forças Armadas de defesa, e não de ataque. Sendo soberano, o Brasil passa a ser respeitado e ouvido e, como conseqüência, melhores condições no comércio e nas relações internacionais serão obtidas. Então, os militares, subordinados ao comando do povo, seriam os guardiões da nossa integridade, condição sine qua non para a garantia de uma vida melhor para a sociedade.

 

Assim, além dos direitos humanos, que são um valor básico da sociedade, a soberania nacional, devido a este impacto na qualidade de vida do povo, deve ser considerada também como um valor básico. Sugiro que nenhum dos dois valores tenha prevalência sobre o outro, até porque eles podem e devem ser atendidos simultaneamente.

 

Como já escrevi no artigo anterior, os militares de hoje não têm posições políticas muito diferentes dos de 1964. Os militares da ativa de hoje não se manifestam por estarem impedidos por lei. Mostro, a seguir, a igualdade de pensamento com um exemplo. O trabalho “Tecnologia militar e indústria bélica no Brasil” de autoria de Eduardo Lucas de Vasconcelos Cruz, que pode ser encontrado na internet, foi publicado no exemplar do “Winter 2006” da “Security and Defense Studies Review”. Na página 378 da “Review”, que é uma das páginas do citado trabalho, são mostradas as hipóteses de guerra para as quais as Forças Armadas brasileiras devem estar preparadas. Toda a expansão futura das nossas Forças deve visar à dissuasão dos inimigos constantes destas hipóteses.

 

Segundo este trabalho, a quinta hipótese de guerra é, textualmente: “movimentos sociais ligados à ‘luta pela terra’ assumem feição política radical, convertendo-se em guerrilhas rurais e ameaçando a ordem constitucional democrática (Probabilidade de ocorrência: ALTA)”. Primeiramente, pode-se questionar se as hipóteses de guerra não deveriam ser definidas por um escalão acima do nível militar. Continuando, fico espantado com esta escolha de hipótese de guerra, porque os militares que chegam ao mais alto nível da hierarquia militar são estudiosos e preparados. Assim, a única explicação que me ocorre, já dita no artigo anterior, é que a formação militar os deixa conservadores.

 

De forma simplificada, as invasões do MST podem, eventualmente, ser casos de polícia, mas nunca eventos que mereçam a interferência das Forças Armadas. A luta pela terra no Brasil é, claramente, uma luta pela melhoria da distribuição de renda e riqueza e, em alguns casos, uma luta pela sobrevivência. Não se trata de uma luta pela conquista do poder político da nação. A compreensão da luta do MST é um teste de caracterização dos conservadores e dos progressistas. Ou se opta pelo direito à propriedade ou se opta pelo direito à vida, ambos direitos constitucionais.

 

A data do estudo oficial que contém estas hipóteses de guerra não é mencionada. Mas, estando o trabalho que as cita datado do final de 2006, pode ser imaginado que estas hipóteses foram geradas uns 20 anos depois do término do período autoritário, em 1985. Então, pode-se concluir que o modo de pensar dos militares não mudou após o término deste período. Como curiosidade, segundo o mesmo trabalho, a segunda hipótese de guerra é, de forma textual: “potências extra-regionais, ante o agravamento das turbulências no Oriente Médio, buscam apossar-se da produção brasileira de petróleo off-shore mediante operações de bloqueio naval, como forma de compensar a interrupção dos fluxos provenientes da referida região (Probabilidade de ocorrência: BAIXA)”. Causa-me espanto também a terem considerado como sendo de baixa probabilidade de ocorrência. Então, na construção de Forças Armadas de dissuasão, pouco valor é dado a esta hipótese, quando, no meu entender, os esforços deveriam estar concentrados nela.

 

É difícil construir uma nação com lideranças políticas incentivando ódio genérico às Forças Armadas. Que sejam exigidas verdades e retratações dos militares do passado, entretanto, é preciso que seja apresentada uma proposta para os militares de hoje serem assumidos como membros desejados da nossa sociedade. Sinto como se ainda houvesse uma cisão de ódio na sociedade, hoje. Os únicos beneficiários desta cisão serão, de novo, o capital internacional, países desenvolvidos e alguns capitais brasileiros, que são aliados do internacional.

 

Gostaria de comentar uma única crítica ao trabalho anterior, a do Bernardo Kucinski, a quem considero. Ele disse: "O autor parece não entender o essencial que é a impossibilidade de qualquer sociedade humana progredir mantendo crimes hediondos em segredo e impunes." Eu escrevi no primeiro artigo: "Sou favorável a que a Comissão da Verdade seja instituída, principalmente porque a verdade deve ser sempre mostrada".

 

Há tantas idéias cristalizadas sobre o tema que as pessoas não conseguem ouvir umas às outras. Escrevi estes dois artigos para satisfazer um dever de consciência meu, pois pretendia contribuir, em escala mínima, para a reflexão coletiva. Achava que poderia resultar, se o diálogo fosse proveitoso, em um crescimento para nossa sociedade.


Leia também:

Comissão da Verdade sem ódio (1)

 

Paulo Metri é conselheiro da Federação Brasileira de Associações de Engenheiros e do Clube de Engenharia.

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