Correio da Cidadania

“Eduardo Leite enfraqueceu tanto os aspectos preventivos como reativos das leis ambientais”

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Tragédia histórica expõe o quanto governo Leite ignora alertas e atropela  política ambiental - Instituto Humanitas Unisinos - IHU
Mauricio Tonetto/Palácio Piratini

Após as chuvas que devastaram o Rio Grande do Sul, avançou na sociedade brasileira uma percepção quase consensual, confirmadas por pesquisas de opinião, de que os eventos climáticos extremos são obra da ação humana. Neste caso, a classe política e econômica do estado foram imediatamente acusados de amplificar a tragédia a partir de sua ação de desmonte da legislação ambiental nos últimos anos. Eduardo Leite correu à mídia para afirmar que as mais de 400 alterações de regras ambientais fizeram a proteção avançar, e não retroceder.

Mas o estudo Planilha de comparação anotada entre os códigos estaduais do meio ambiente do Rio Grande do Sul de 2000 e de 2020 (link ao final), trabalho feito pelos professores da UFRGS Gonçalo Ferraz e Fernando Becker, evidencia a má fé das afirmações do governador e demonstra, item a item, como cada mexida serviu de facilitador do avanço da destruição ambiental. Ao Correio, os professores detalham seu levantamento e afirmam a necessidade de se colocar mecanismos de proteção e fiscalização ambiental no topo das prioridades de qualquer governo.

“A nossa análise foi realizada antes das cheias de maio, em 2019, portanto, não a realizamos como uma reação a esse evento. Foi uma análise dos artigos da legislação e não uma análise de dados ambientais antes e depois da legislação. O que nos moveu a escrever a nota técnica e divulgar o quadro comparativo é o fato de que, em função das mudanças climáticas globais, há previsão de maior frequência de eventos drásticos como esse das cheias”, sintetizam.

Na visão de ambos, que responderam em dupla a esta entrevista, os nexos entre as ações políticas, tanto estadual quanto municipais, e a abrangência da devastação são evidentes. Apesar de a mudança climática ser um problema global, é possível promover medidas de mitigação e adaptação a estes novos tempos a partir da ação local/regional.

“A generalização é sempre injusta, mas feita essa ressalva, a classe política parece ter uma dimensão ainda limitada aos aspectos econômicos e sociais do que aconteceu. Em geral, ainda não se compreende que a gestão socioambiental deve compor a gestão do estado (em todas as esferas) tão organicamente quanto a economia. Ao comparar opções de reconstrução, devemos equacionar, desde o início da discussão, os riscos, os impactos e a efetividade, tanto socioambientais como econômicos”.

Para os professores do Instituto de Biociências da principal universidade do estado, tal debate tampouco pode ignorar as condições objetivas do modo de produção e circulação que estrutura nossas relações sociais e econômicas. Isto é, não será possível evitar novas catástrofes sem algum freio aos interesses do capital, protagonista indiscutível deste momento histórico.

“É fundamental que as políticas de estado e a iniciativa privada fomentem uma transição que é complexa, para modos produtivos com menos emissão de carbono, com menos geração de poluentes e resíduos, com uma ocupação do espaço cujos benefícios sejam convergentes com a prestação de serviços ecossistêmicos e conservação da biodiversidade, que sejam mais econômicos energeticamente e mais justos socialmente”.

Leia a entrevista completa com Gonçalo Ferraz e Fernando Becker a seguir.

Correio da Cidadania: O que levou vocês a realizarem um estudo comparativo dos códigos ambientais entre os anos 2000 e 2020?

Fernando Becker e Gonçalo Ferraz: Foi a vontade de qualificar o debate sobre aquilo que nós percebemos como um desmonte extremamente agressivo da legislação ambiental do RS. Esse desmonte facilita a utilização no curto prazo dos recursos naturais do Rio Grande do Sul por quem tem mais poder e meios financeiros para influenciar a tomada de decisões na gestão pública, mas não atende suficientemente aos interesses de curto, médio e longo prazo da maioria da população.

Como essa caracterização do desmonte é muito passível de provocar ânimos ideológicos e fomentar polarização, nos pareceu que a melhor contribuição a dar para qualificar o debate seria uma facilitação do acesso à informação concreta do que foi feito com a legislação. Daí o empenho em mostrar as alterações na lei de forma esquemática e em uma linguagem mais acessível que a linguagem usada nos documentos legais.

Correio da Cidadania: Como vocês resumem as evidências do estudo e as confrontam com as alegações do governador do estado, Eduardo Leite, que afirmou um caráter de avanço na proteção ambiental a partir das centenas de alterações realizadas em seu governo?

Fernando Becker e Gonçalo Ferraz: Não houve avanço na proteção ambiental, essa constatação fica inequívoca após a análise das alterações que foram realizadas. O significado básico das mudanças é enfraquecimento tanto dos aspectos preventivos (a exemplo do licenciamento ambiental) como dos aspectos reativos (fiscalização) da gestão ambiental. Para uma análise resumida um pouco mais detalhada, ver o texto introdutório da nota técnica em https://zenodo.org/records/12520448.

Correio da Cidadania: Acreditam que as mudanças nas leis ambientais estão diretamente relacionadas com o alcance da catástrofe causada pelas chuvas de maio no estado?

Fernando Becker e Gonçalo Ferraz: A nossa análise foi realizada antes das cheias de maio, em 2019, portanto, não a realizamos como uma reação a esse evento. Foi uma análise dos artigos da legislação e não uma análise de dados ambientais antes e depois da legislação. O que nos moveu a escrever a nota técnica e divulgar o quadro comparativo é o fato de que, em função das mudanças climáticas globais, há previsão de maior frequência de eventos drásticos como esse das cheias. As mudanças no Código Estadual de Meio Ambiente representam um enfraquecimento das normas, procedimentos e capacidades institucionais que ajudariam a garantir que o ambiente forneça serviços de atenuação, regulação e controle dos impactos ambientais.

É importante salientar que os eventos de maio são o resultado de alterações ambientais colocadas em prática ao longo de muitas décadas em nível global, regional e local. No nível global, o acúmulo de gases-estufa na atmosfera ao longo dos últimos dois séculos aumentou a frequência de eventos de precipitação extrema. No nível regional, a remoção de floresta nas cabeceiras dos rios que alimentam o delta do Jacuí, diminuiu a capacidade de as bacias hidrográficas reterem ou retardarem o avanço da água da chuva. No nível local, o desenvolvimento urbano em locais abaixo da quota de inundação e a negligência na manutenção dos sistemas de proteção contra cheias expôs a população a um evento que foi dramático, mas era inteiramente previsível.

Não tinha como os fenômenos destes três níveis (ou escalas) de organização entrarem em ação somente após janeiro de 2020, data em que foi votado o novo Código Estadual do Meio Ambiente do RS, mas é esse código que vai pautar nossos esforços para promover a recuperação deste desastre e gerar condições de enfrentamento aos próximos, que virão.

Correio da Cidadania: Como observam a reação da classe política gaúcha? Há o devido dimensionamento do que aconteceu?

Fernando Becker e Gonçalo Ferraz: A generalização é sempre injusta, mas feita essa ressalva, a classe política parece ter uma dimensão ainda limitada aos aspectos econômicos e sociais do que aconteceu. Em geral, ainda não se compreende que a gestão socioambiental deve compor a gestão do estado (em todas as esferas) tão organicamente quanto a economia. Ao comparar opções de reconstrução, devemos equacionar, desde o início da discussão, os riscos, os impactos e a efetividade, tanto socioambientais como econômicos. No discurso, nas manifestações públicas, as palavras ambiente e sustentabilidade são muito frequentes, contudo, nas decisões efetivas ficam em segundo plano, quase como uma convenção de etiqueta a ser seguida apenas na superfície.

Correio da Cidadania: É possível falar sobre uma reconstrução do estado sem um lugar central para as questões ecológicas? Como isso deveria ser feito, para além dos discursos?

Fernando Becker e Gonçalo Ferraz: Certamente é possível, o que não significa ser simples. A elaboração de uma legislação tecnicamente embasada, discutida e aprovada pela maioria no legislativo é um primeiro aspecto. Outro ponto é o fortalecimento institucional, estrutural e funcional dos órgãos ambientais. Finalmente, mas tão importante quanto os anteriores, seria preciso implementar mecanismos de funcionamento do estado (nas três esferas) em que, como mencionado anteriormente, as questões socioambientais façam parte orgânica e transversal do processo de funcionamento do estado, dos governos e da iniciativa privada.

O desejável não é colocar as questões ecológicas no centro, mas, sim, racionalizar a administração pública com foco no bem estar sustentável da maioria da população. Esse bem estar necessita desenvolvimento econômico, sem qualquer sombra de dúvida, mas ele também necessita saúde e continuidade de acesso aos recursos naturais, dois elementos que só se sustentam em uma administração pública que protege o meio ambiente. Não é necessário por no centro, apenas dar o devido valor.

Correio da Cidadania: Estamos diante de um contexto alarmante de destruição ambiental no Centro do país, neste momento no Cerrado e Pantanal. Além disso, tudo indica que este ano haverá uma nova e severa seca em grandes partes da Amazônia. Acreditam na possibilidade de reconstrução do RS sem um remodelamento econômico e produtivo de todo o país?

Fernando Becker e Gonçalo Ferraz: Do ponto de vista ambiental, os caminhos para esse remodelamento já estão dados. É fundamental que as políticas de estado e a iniciativa privada fomentem uma transição que é complexa, para modos produtivos com menos emissão de carbono, com menos geração de poluentes e resíduos, com uma ocupação do espaço cujos benefícios sejam convergentes com a prestação de serviços ecossistêmicos e conservação da biodiversidade, que sejam mais econômicos energeticamente e mais justos socialmente. Isso requer legislação ambiental e órgãos ambientais, mas, evidentemente, se beneficiaria muito a partir de uma mudança de mentalidade, tanto em nível estadual como federal, que se traduzisse em mudanças consequentes da administração pública.

Os níveis de organização municipal, estadual e federal sempre conversam. Alterações em um nível superior podem sempre inviabilizar o sucesso de medidas tomadas em níveis mais locais. No entanto, isso não é motivo para não fazer o que tem de ser feito localmente. Sempre há possibilidade de reconstruir algo, a mais ou menos curto prazo, independentemente das mudanças que aconteçam em outros níveis de organização.

Nota:

Leia aqui o estudo Planilha de comparação anotada entre os códigos estaduais do meio ambiente do Rio Grande do Sul de 2000 e de 2020

Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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