“Comissão da Verdade” do período neoliberal
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- Paulo Metri
- 01/08/2012
Na edição no 707 da revista Carta Capital, pode-se ler uma entrevista com o psicanalista Michel Plon, intitulada “Em nome da subversão”. Em determinado trecho, lê-se: “A psicanálise não está diretamente ameaçada pelas psicoterapias. O problema é que, numa época dominada pela ideologia neoliberal, o que guia as pessoas que têm um mal-estar é a busca de eficácia, de rapidez e de desaparecimento dos sintomas. Ora, tudo isso é contrário à psicanálise. (...) Não são as psicoterapias que ameaçam a psicanálise. A moda das psicoterapias é a expressão no campo psíquico do neoliberalismo.”
O neoliberalismo é quase uma linha filosófica. Existem crenças neoliberais já tão arraigadas na nossa sociedade que quem não as segue é julgado como tendo algum desajuste. Ninguém imagina que as crenças possam estar erradas. Por exemplo, os desempregados atuais, cujo número aumentou enormemente com a introdução da agressividade neoliberal, são os culpados por estarem sem emprego, segundo o discurso desta ideologia, por não terem se adaptado ao novo mercado de trabalho. Existem desempregados deprimidos, dizendo: “Estou desempregado, há tantos anos, e a culpa é minha própria, pois nunca consegui passar em um concurso, ou ter um diploma, enfim, não me adaptei aos novos tempos”. A insensibilidade do neoliberalismo é tanta que, além de retirar o trabalho das pessoas, joga nelas enorme dose de culpa.
Para estes desempregados, devemos ler a Constituição, especificamente o Artigo 6o do Capítulo II, intitulado “Dos Direitos Sociais”, que diz: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho etc”. Então, o culpado é o Estado por não prover trabalho, não o desempregado. E o Estado não proveu trabalhos para a população, durante anos, porque foi dominado por grupo que aplicava os princípios neoliberais. Segundo a Constituição, um ser humano pouco dotado para a competitividade neoliberal tem também direito a um trabalho que lhe proporcione uma vida minimamente digna.
Um exemplo do que gestores neoliberais, ocupantes do Estado brasileiro, fizeram para diminuir nosso mercado de trabalho, durante longo período passado, foi permitirem que as compras do Estado fossem feitas no exterior. Portanto, entre trazer uma plataforma de petróleo de Singapura, por um preço um pouco mais barato, e comprar uma no Brasil, a primeira opção era a escolhida. Em anos recentes, a postura do governo mudou, havendo ações visando manutenção e criação de postos de trabalho.
A disputa entre um modelo econômico neoliberal com prevalência das subsidiárias estrangeiras aqui instaladas e outro modelo também capitalista, porém, com forte proteção da sociedade e baseado em empresas genuinamente nacionais ainda está por ser decidido. Contudo, da década de 1990 até hoje, está ganhando o neoliberalismo.
A luta tem sido extremamente difícil, pois os neoliberais têm recursos ilimitados para inviabilizar o outro modelo, obviamente com a perspectiva de recuperação destes gastos acrescidos de lucros no futuro, depois de o outro estar abatido. Na verdade, os neoliberais travam um jogo sujo, pois vale tudo, desde a omissão do que ocorre até a mentira, com controle total das informações que chegam à população. Para tanto, formou-se a “mídia do capital”, composta de jornais, revistas, tvs e rádios, que, com raras exceções, só publicam o que for de seu interesse.
Suas grandes lideranças na linha de frente são tão bem remuneradas quanto mais tiverem capacidade de convencimento, é claro que através do ludibrio. Extremamente dissimulados, repetem à exaustão os dogmas da religião criada por eles. Por exemplo, um destes dogmas diz que “havendo uma competição perfeita, a população será beneficiada porque os produtos e serviços irão chegar a ela pelos seus mínimos preços”. Esta afirmação é verdadeira, faltando somente dizer que, no Brasil, pelo menos 70% dos setores econômicos são cartelizados, onde competição perfeita inexiste.
Os ideólogos neoliberais são criativos, pois até base acadêmica inventam. Áreas de estudo, como a “regulação de mercados”, e ferramentas metodológicas, como o “dilema do prisioneiro”, são criadas ou adaptadas. O respaldo de professores universitários também é conseguido. A este vitorioso assédio dão o gracioso nome de “cooptação”. Como descobriram que a internet pode se transformar em uma grande ameaça para seus negócios, estão subsidiando os “blogueiros do capital”.
Alguns professores com alto grau de discernimento conseguem “esquecer”, na avaliação da atuação social e política das empresas nos mercados, de impactos marcantes. Por exemplo, alguns afirmam que os monopólios estatais são prejudiciais para a sociedade, enquanto a verdade é que monopólios privados são enormemente prejudiciais. Contudo, os monopólios estatais socialmente controlados são a melhor opção para a sociedade.
A arte da dissimulação aplicada pelos neoliberais chega a ser eufêmica, pois, por exemplo, terminaram com o monopólio estatal do petróleo, em 1997, e dizem que ele só foi flexibilizado. Hoje, existe um “monopólio flexibilizado” contemplando 74 empresas petrolíferas no país, sendo a maioria estrangeira, que exploram, produzem, possuem o petróleo produzido e o comercializam. “Monopólio flexibilizado” é análogo a uma virgem mãe de dez filhos.
Continuando com a dissimulação, o presidente do Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP), que congrega basicamente as empresas petrolíferas estrangeiras, em um artigo colocado em um jornal da mídia do capital, diz que o fato de o Brasil ter estas 74 empresas no setor é positivo. Buscando não me alongar e podendo voltar a este ponto em outro artigo, só pergunto: “Positivo para quem, cara pálida?”
Preocupa-me que órgãos de governo com a incumbência de regular mercados fazem, há algum tempo, concursos públicos para admissão de profissionais nos seus quadros, através de provas em que as respostas certas são as dos conceitos neoliberais.
Desta forma, o entulho neoliberal permanece quase intacto na nossa sociedade. Uma das melhores propostas que ouvi recentemente foi a de uma amiga, que propôs a criação de uma Comissão da Verdade do período neoliberal. Só assim, poderemos conhecer: (1) qual era o preço mínimo justo da Vale e das empresas de telefonia, supondo que elas deveriam ser colocadas para privatização; (2) quantos prováveis barris de petróleo foram entregues para empresas petrolíferas estrangeiras, através das rodadas de leilões da ANP; e assim, por diante. Estes são os cadáveres insepultos que a nova Comissão irá descobrir, permitindo que a sociedade brasileira possa enterrá-los e, depois, conseguir um real desenvolvimento.
Paulo Metri é conselheiro da Federação Brasileira de Associações de Engenheiros e do Clube de Engenharia.