Amigos de longa data
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- Paulo Metri
- 07/04/2014
A Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa da Bahia convidou um grupo de antigos militares, que foram expulsos das Forças Armadas em 1964, por terem sido considerados comunistas, para exporem suas visões e serem homenageados.
Sampaio, um capitão do Exército em 1964, chegou bem antes da hora marcada na Assembleia, pois era o seu costume chegar muito cedo aos encontros. Foi encaminhado para uma sala de espera. Entrando nela, Sampaio se depara com Correia, também capitão em 1964, que, desde esta época, não o via. Correia continuara sua carreira militar, pois, sobre ele, não pesava a mesma acusação.
Foram colegas de turma na Academia Militar das Agulhas Negras e tinha ocorrido a coincidência de servirem em Salvador na mesma época. Assim, tinham sido muito próximos. Ficaram surpresos com o reencontro, afinal de contas tinham um passado de convivência. Após alguns segundos de perplexidade, Sampaio acaba com o silêncio se dirigindo ao ex-colega:
- Capitão Correia, quanto tempo! Passaram-se 50 anos desde nosso último contato. Qual a sua patente agora?
- Sou general reformado. Mas, sou só “Correia”. E você, Sampaio, como vai?
Neste momento, eles declaram estar surpresos com o pouco envelhecimento do outro, perguntam sobre suas esposas, que também eram amigas, Sampaio fica sabendo do falecimento da esposa do Correia, há três anos, e lastima por sua perda. Enfim, reaquecem a amizade quase esquecida. Aí, Correia pergunta:
- Mas, o que lhe traz aqui?
- Fui convidado a depor.
- Eu também. E o que você tem a dizer?
- Só que fui expulso do Exército, mais nada. E você?
- Eu continuei no Exército, você sabe. Também não tenho nada a dizer.
- Não tem nada a dizer ou não quer dizer? Não acompanhei sua carreira.
- Servi durante toda minha carreira só em unidades operacionais do Exército.
- Você não foi de nenhum órgão de inteligência ou de repressão?
- Não.
Neste instante, houve uma pausa na conversa, pois eles se avaliavam. Notavam diferenças com relação ao passado, uma vez que ninguém consegue ficar imune à passagem de 50 anos. Correia retoma o diálogo:
- Então, como você sobreviveu nestes 50 anos?
- No início, foi muito duro, pois era difícil conseguir trabalho. Mas fiz de tudo. Por exemplo, andei vendendo imóveis, abri um negócio de conserto de eletrodomésticos, outro de entrega de malotes com motoboys e por aí vai. Só não fiz a revolução no Brasil, que é o que esperavam que eu fizesse.
- Mas, você tinha vontade de fazer?
- Tinha, sim. Na juventude, tinha muita vontade, sim! Seria uma revolução democrática. Uma revolução nas ideias, o que foi impossível.
Um servente com uma bandeja com xícaras de café entra na sala. O café é servido e o servente sai. Depois desta pausa forçada, que serviu para a sedimentação das ideias, Correia volta a falar:
- Que época em que nós vivemos, hein! Não fiquei feliz vendo você ser expulso do Exército. Você sempre foi uma pessoa de bem.
- Eu, certamente, não fui o pior caso. Não quero reviver o passado, até porque lhe conheço e creio que você não aderiu ao radicalismo de então. Contudo, demos muito azar, porque a verdade é que foi um período da nossa história que não merecíamos.
- Sampaio! Eu tenho que lhe falar um ponto para você não me compreender erradamente. Acho que o seu caso foi uma injustiça, no entanto, eu apoiei a contrarrevolução de 31 de março de 1964.
Sampaio olha o velho amigo e pensa consigo mesmo: “Ele consegue me dissociar das minhas ideias”. Sampaio responde:
- Eu não pensei que a gente fosse ter este tipo de conversa, mas, vamos lá. Por que você defende a revolução de 64?
- O país estava à beira de uma revolta comunista.
- Você acredita mesmo nisso?
- Sim. Olhe o comício da Central. Olhe a revolta dos marinheiros.
- O comício da Central deve ter assustado o capital internacional e o latifundiário de terras improdutivas, ou seja, aqueles que perderiam parte do muito que têm para poder existir grande ascensão social. Quanto à revolta dos marinheiros, concordo com você. O presidente João Goulart não tomou a única decisão que poderia tomar. Ele tinha que ter mantido a punição aplicada pelo comandante da Marinha.
Questões relativas à hierarquia militar não são passíveis de interpretação e, consequentemente, de desautorizações. No entanto, ele poderia ter oxigenado os comandos militares, nomeando oficiais de diferentes matizes ideológicos para o generalato. Ele era o chefe supremo das Forças Armadas e, inexplicavelmente, não nomeou.
- Você queria que comunistas fossem escolhidos nas promoções?
- Primeiramente, nem todos integrantes da esquerda são adeptos do comunismo. Depois, há uma prevenção desmedida ao “comunismo”. Marx, apesar dos anos, continua sendo um dos melhores críticos do capitalismo. Agora, você está certo com relação ao fato que nenhum candidato, que julgasse correta a submissão do Brasil aos mandos de uma COMINTERN, poderia ser escolhido. Assim como aqueles que julgavam que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” também não deveriam ser promovidos. Falo que as Forças Armadas poderiam ter oficias com as mesmas tendências existentes na sociedade. Isto deveria ajudar a conter eventuais tramas golpistas.
- Contudo, seriam Forças Armadas desunidas e pouco eficientes.
- Isto não é verdade. Seriam ineficientes para dar golpe, mas nada leva a concluir que seriam ineficientes para defender a pátria.
- Você não via que o país caminhava para a tomada do poder pelos esquerdistas, como você prefere chamar?
- Não! Eu via um presidente com fortes posições de cunho social e nacionalista, querendo muito a conciliação, em contraste com a radicalização das posições de notórias figuras políticas da época. Os jornais, revistas e rádios de então, a serviço dos interesses de grupos econômicos e políticos, insuflavam a opinião pública. Eu via muita luta pelo poder, muito acirramento de ânimos para consecução destes interesses, pouco compromisso democrático, principalmente por parte dos integrantes da direita.
- Então, você nega a trama que existia para um golpe da esquerda.
- A maioria da esquerda era democrática. Mas existiam, sim, uns poucos que sonhavam com uma ditadura de esquerda.
Entretanto, não acredito na afirmação do Roberto Campos que: “em 1964, ia acontecer um golpe, iniciando uma ditadura, de direita ou de esquerda”.
- Você acha que os integrantes do movimento pelo restabelecimento dos valores morais da nossa sociedade deviam fazer o que?
- É assim que você chama os golpistas? Mas, deixe isto para lá. A direita e a esquerda deveriam ter dialogado, se queriam um crescimento político da sociedade. Acho até que uma boa parcela da esquerda se dispôs a dialogar. Contudo, não vamos discutir sobre versões de fatos passados. A verdade é que a solução política foi descartada logo de início, porque havia grupos, prioritariamente de direita, que não conseguiam chegar ao poder através do voto popular e viam no golpe um caminho viável. Não podiam dizer isto claramente, então, usaram alegações diversas, como “os comunistas querem implantar a ditadura do proletariado”, e assim escamoteavam a ânsia pelo poder. Magalhães Pinto, Ademar de Barros e Carlos Lacerda eram alguns dos que sofriam desta ansiedade. Restava a eles, então, instigar os militares, que tinham as armas, para dar o golpe. Os próprios militares também desejavam o poder.
- Então, não existiam os de esquerda com ânsia pelo poder?
- Com a ânsia da forma antidemocrática descrita, existiam, mas eram uma minoria. Note bem que todos que entram na política querem chegar ao poder e, desde que trabalhem em benefício da sociedade, isto não é um erro. No entanto, chegar ao poder dando golpe e usar o poder em benefício de grupos econômicos e políticos são graves erros.
- Os militares não tinham ânsia de poder. Eles queriam interromper a trajetória infeliz na qual o país entrara.
- Não concordo. Suponhamos que eles não tinham a dita ânsia no início do regime militar. Mas por que ficaram 21 anos no poder? Precisavam de tanto tempo para salvar os brasileiros dos comunistas? A verdade é que, se não queriam o poder no início, apaixonaram-se por ele rapidamente.
- Entretanto, os governos militares fizeram o país avançar.
- Avançar em obras de infraestrutura e no PIB, é verdade. Para os negócios do capital foi maravilhoso. Porém, o desenvolvimento social não aconteceu. O que importa para o aumento do bem-estar da população são os índices sociais, que não foram tão bons.
- Se era tão bom para o capital, porque ele não preservou os governos militares por mais tempo?
- Porque o povo mostrava sinais de esgotamento com relação ao regime. Em cada nova eleição, a oposição conquistava mais espaço. Matreiramente, o capital sofreu uma mutação e começou a apoiar a “democracia” em uma sociedade manipulável pela mídia e, assim, ele via a possibilidade de continuar ganhando muito lucro. Os militares nunca entenderam, mas foram “usados” pelo capital.
Sampaio parou de falar, ficou pensativo e, depois, retornou, dizendo:
- Só estou falando com você porque lhe conheço há anos e existiu uma amizade entre nós. Você vê o mundo de uma forma e eu vejo de outra. Estamos próximos da morte. O que adianta um querer convencer o outro, agora? Se existem céu e inferno, estamos próximos deles, quando teremos uma clarividência total. Se não existem, será o vácuo de consciência. Então, proponho de só discutirmos se for para conseguirmos construir um futuro melhor para nossos descendentes. O que você acha?
- Compreendo. Mas, antes, queria lhe dizer que sempre fui contra as torturas, assassinatos e demais agressões que as forças de repressão costumavam fazer. Achava que as Forças Armadas foram chamadas para ajudar a sociedade e estavam certas em ajudá-la. Porém, nada justificava as agressões, nem mesmo o argumento de que elas eram necessárias para informações serem obtidas e ações armadas serem combatidas. Não as condenei publicamente, no passado, por medo também. Aliás, invejo a sua coragem, inclusive porque, hoje, você não tem que carregar nenhum remorso.
- Então, o que pode ser feito para o futuro?
- Pelo visto, você já andou pensando. O que pode ser feito?
- Primeiramente, passar a limpo o passado, simplesmente para servir como exemplo para gerações futuras. Daqui para frente, nenhum militar pode pensar em dar um golpe com as armas, que a sociedade lhe entregou com a incumbência de ser um dos guardiões delas. As armas da sociedade nunca podem ser usadas contra a própria sociedade.
- Mas “passar a limpo o passado” não é tão fácil assim. Muitos estão mortos, outros estão vivos, mas com sérias doenças, e os poucos ainda saudáveis têm mais de 70 anos.
- Não importa. A sociedade precisa ter definições do Estado sobre o que é certo e o que é errado. É importante também que a sociedade compreenda melhor o que se passou em 1964. Por exemplo, ainda hoje, nem todos sabem que o golpe teve total apoio dos Estados Unidos, por interesses geopolíticos, comerciais e militares.
- Então, o futuro bom para os descendentes consiste só de uma vingança?
- De uma aplicação de justiça com relação ao passado, não de uma vingança. Mas, também, de uma proposta de como deve ser a formação dos oficiais das nossas Forças Armadas.
- Como deve ser?
- Primeiramente, não tenho certeza absoluta, mas acho que o pensamento político do militar dos dias atuais não difere muito do pensamento do militar de 1964. Isto sendo verdade, a principal razão é pela tendência de se formarem militares em um único sentido, o conservador.
- O que você chama de “conservador”?
- Eu tenho uma definição de “conservador”, válida para este caso. Assim, todo militar que acha que as Forças Armadas devem servir, prioritariamente, à elite econômica e política do país, e não servir a toda a sociedade brasileira, é um “conservador”.
- Mas a formação militar, você sabe bem, tem que ser rígida e bem hierarquizada.
- Sei e não estou negando isto. Estou querendo somente que esta formação faça os militares compreenderem que o patrão deles, a quem eles devem fidelidade total, é o povo brasileiro. Não é nenhum político, nem nenhum governante, nem nenhum membro da elite econômica. Seus superiores hierárquicos têm que ser respeitados e suas ordens cumpridas, a menos que estas ordens venham a ferir o povo.
- Não existe esta hipótese de uma ordem militar intencionalmente ferir o povo.
- Atualmente, pode não existir. Contudo, no passado, isto aconteceu. Posso lhe dar como exemplo o caso do Capitão Sergio Macaco. Ele descumpriu a ordem recebida de seu superior, o brigadeiro Burnier, porque o cumprimento dela acarretaria a morte de dezenas de milhares de cariocas. Este capitão é um verdadeiro herói brasileiro, merecia um busto em praça pública.
- Mas, hoje, em plena normalidade, é inconcebível uma ordem militar vir a prejudicar o povo. Agora, por que você mexe na formação dos militares? Trata-se de um assunto militar, que deve ser resolvido no âmbito das Forças Armadas.
- Todos os estudos relativos à estratégia militar, obviamente, são de competência exclusiva dos militares. No entanto, a sociedade tem de opinar sobre as Forças Armadas que ela quer ter. Uma única crítica que faço às Comissões da Verdade, que têm aspectos muito positivos, é que, visando a justiça, elas revivem casos do passado e, com isso, têm ajudado a espalhar um ódio generalizado à instituição das Forças Armadas. Outro dia, ouvi de um maluco que era preciso acabar com “estas Forças” e que só precisariam existir polícias no país. Ele não se dá conta do importante papel que as Forças Armadas têm para guardar a população, os recursos naturais, o parque industrial, a infraestrutura, enfim, de guardar o Brasil. A sociedade precisa reconhecer o importante papel das Forças Armadas e, para isto, é necessário existir a discussão sobre as Forças que queremos ter.
Neste instante, entra na sala de espera a secretária da Comissão, pedindo que o Sampaio entre na sala das audiências. Correia pergunta com certa ansiedade:
- Você teria o formato de como seria esta formação?
- Não. Tenho só isto que lhe falei. Ou seja, o militar que desejo que apareça depois da formação. Correia, foi bom lhe encontrar. Se todos fossem racionais como você, poderia haver muito avanço.
- Também quero lhe agradecer a acolhida. Vou pensar nessa sua última proposta.
Sampaio sumiu atrás da porta.
Nota do autor: Este encontro e todo este diálogo são uma ficção.
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Paulo Metri é conselheiro do Clube de Engenharia e colunista do Correio da Cidadania.
Blog do autor: http://paulometri.blogspot.com.br/