Correio da Cidadania

A voz dos mudos

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Quem lhe fala não tem voz. Na verdade, não consegue falar, pois tem pouca consciência. Também, quem lhe fala não é um, são muitos. São aqui representados por quem supõe ter alguma consciência. Assim, quem lhe fala o faz por um representante imposto. Contudo, se assim não fosse, eles nunca falariam.

 

Somos muitos, tantos mais que os outros, diferentes de nós, quanto o número de casebres, barracos, choupanas, palafitas e cantos de ruas é maior que o número de casas. Sempre fomos famintos, doentes e fracos. Persistimos em sobreviver. Chamam a nós de fracassados, a escória. Mas não sabemos em que momento exato houve o fracasso. Deve ter sido quando aparecemos em um lugar errado para nascer.

 

Estamos debaixo dos viadutos, nas periferias das grandes cidades, presos no sertão, esperando a chuva que quase nunca vem para plantar, ou atrás das grades de uma cadeia. Estamos presos também em fazendas onde trabalhamos para comer. Muitos de nós estão em poucos assentamentos cheios de esperanças. Estamos em invasões nas cidades para não disputarmos mais as ruas com os ratos e não acordarmos pegando fogo.

 

Qual uma corrida de revezamento, uma geração nossa de miseráveis tem entregado o bastão para sua sucessora. Assim, a miséria tem sido duradoura. É interessante que nunca somos notícia, a menos que caiamos da construção, atrapalhando o trânsito. Nossa fome sistemática é escondida do conjunto humano por não ser um tema que mereça ser noticiado.

 

No entanto, de uns tempos para cá, fez-se luz. Nossa vida melhorou. Conseguimos comer mais. Conseguimos, com mais facilidade, arrumar trabalho. Estamos conseguindo até pensar. As marquises das cidades estão menos disputadas e os capatazes dos prédios têm menos gente para expulsar das calçadas privativas.

 

Tudo mudou, também, porque quem vivia sorrindo de barriga cheia ainda tem ela cheia, mas o sorriso sumiu. Estão raivosos. Será que eles ficaram tristes porque nós estamos sofrendo menos? Nós não estamos alegres porque eles deixaram de sorrir. Será que têm ódio de nós?

 

Creio que tudo tem a ver com o barbudo de voz rouca. Foi depois que ele surgiu que os auxílios apareceram. Ele é um gênio, pois conseguiu entender que nós tínhamos fome. Nós não sabíamos que um homem podia fazer tanto. Pensávamos que fomos mesmo escolhidos para a desgraça. Só não sabíamos o porquê.

 

Quantos de nós morreram e não viram este alvorecer! Algo me diz que a vida pode mudar de novo e tudo do passado pode retornar. Tenho medo de voltar a sentir fome. Desconfio que estejam tramando para a aluna dele deixar de mandar. Foi ele quem a colocou lá, pois andou doente e não podia mais ficar. Ela também é boa. Mas, ele já está bom e, no futuro, vai voltar.

 

Estes dois salvaram muita gente. Os mortos de uma terra muito povoada são muitos, mas os de uma terra povoada e sofrida são muito mais. Tantos passaram pelo poder e não sentiram vontade de mudar. O fato de eles compreenderem nosso drama que é o diferente. Muitos de nós não resistiram às provações que quem mandava nos impôs. Mas, a época mudou e são as ações dos dois que nos causam espanto.

 

Estamos com medo que outro perseguidor de carentes tome o lugar dela. Mas, sinto que ela e ele ainda vão ficar por bom tempo nos ajudando. Só queria que ninguém ficasse triste, afinal de contas, para a gente comer, não estamos tirando a comida de ninguém.

 

 

Paulo Metri é conselheiro do Clube de Engenharia e colunista do Correio da Cidadania.

Blog do autor: http://paulometri.blogspot.com.br/

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