Contribuições para uma agenda econômica alternativa
- Detalhes
- Paulo Passarinho
- 28/08/2015
A crise em que mais uma vez o país mergulha não é um raio em céu azul. Não é, contudo, um problema decorrente da má condução da política econômica – como defendem os liberais de carteirinha e intensamente difunde a mídia dominante. Nem, como deseja o lulismo, um misto de crise externa com a suposta e hipotética campanha de desestabilização da direita contra o governo Dilma, envolvendo interesses imperialistas, Ministério Público e Poder Judiciário.
O que atravessamos – mais uma vez – é o esgotamento de um ciclo de expansão do nosso modelo econômico, dependente estruturalmente dos processos de expansão da economia mundial. Como modelo econômico entenda-se o conjunto de medidas que, adotadas desde o início dos anos 1990, conformaram um novo padrão de funcionamento da economia brasileira, a partir especialmente da liberalização e integração financeira do país com os mercados globais.
Esse novo padrão exigiu a remoção dos mecanismos de controle de capitais, até então exercidos pelo Banco Central, e a adoção de novas regras que permitissem a livre movimentação de capitais por multinacionais, bancos e demais agentes com interesses no mercado externo.
O clímax desse processo foi o lançamento do Plano Real, a ofensiva privatizante e o conjunto de reformas constitucionais aprovadas em meados da década de 90. Uma nova moldura jurídica, institucional e macroeconômica foi construída por um forte pacto de classes que unificava interesses de capitais externos com setores da burguesia nativa.
Por que recorro a esse passado, para muitos tão longínquo?
Porque nos encontramos, infelizmente, presos a essa moldura, até hoje. Sob o ponto de vista macroeconômico continuamos a padecer de uma propalada – e espúria – estabilidade monetária, dependente de taxas reais de juros elevadas e de uma taxa de câmbio valorizada, excetuando-se, naturalmente, os momentos de turbulência externa ou de instabilidade política.
A oportunidade histórica que tivemos, em 2002, com a eleição de Lula, de mudar substantivamente esse modelo, foi transformada – por uma opção de governabilidade que negava o que o PT sempre defendeu – em uma nova oportunidade de procurar fôlego para a proposta de país que já estava em curso. E esse fôlego foi conseguido com a excepcional fase do mercado global, puxado pela dinâmica da economia chinesa e seus parceiros asiáticos.
Internamente, consolidamos as privatizações e uma ordem fiscal baseada na obtenção de superávits primários elevados, como forma de administrar uma dívida pública que tem como sua principal função a sustentação do binômio câmbio barato/taxa real de juros salgada. A melhor prova disso foi a metamorfose dos novos governistas e a sua conversão ao apoio à dita Lei de Responsabilidade Fiscal, um eufemismo para legalizar a prevalência dos interesses financeiros na gestão do Estado.
Por tudo isso, pouco importam as acusações dos liberais aos “neodesenvolvimentistas” e à chamada “nova matriz macroeconômica”. Elas são funcionais para o teatro – ou farsa? – da política dominante. Ajudam os liberais e suas críticas e são extremamente convenientes para àqueles, os atuais governistas, que querem negar que a vergonhosa adaptação às regras do jogo não deu certo.
O que evidenciamos, nesse momento, é apenas a espetacular rendição do governo, mais uma vez, aos senhores das finanças, sem a oportunidade, agora, de se negar a realidade com as mitificações criadas nos últimos anos – fim da pobreza, nova classe média, pagamento da dívida externa, política externa independente e distribuição de renda a favor dos trabalhadores.
A realidade com que nos deparamos é extremamente perversa com o povo. A chamada “política de ajuste” em curso é apenas o arbítrio dos que querem se preservar – bancos, multinacionais e rentistas em geral – em detrimento dos interesses da maioria. Prova cabal disso é o fato de o país campeão do mundo em regressividade tributária não ser capaz de avançar, um milímetro sequer, no rumo de uma tributação mais incisiva em relação aos possuidores de altas rendas, aos detentores de propriedade e aos capitalistas em geral, em meio ao falso diagnóstico que simplifica a atual crise como se fora uma decorrência de um suposto descontrole dos gastos públicos.
Dentro desse quadro, é necessário estabelecer uma estratégia defensiva para os trabalhadores e o povo em geral. Os principais instrumentos de luta construídos desde a crise da ditadura até o coroamento vitorioso do projeto liberal no país – o PT e a CUT acabaram por se render à opção e lógica do lulismo e hoje se confundem com o transformismo político que desmoraliza a esquerda, entregue ao oportunismo e à falta de coerência em relação às suas históricas posições.
As consequências do ajuste de Dilma e Levy já se mostram com clareza: aumento do desemprego; redução do rendimento médio dos trabalhadores; recessão econômica; forte queda na arrecadação do governo, combinada com a elevação das despesas com juros; cortes orçamentários que atingem os gastos de custeio e de investimentos da União; e o próprio estrangulamento financeiro de estados e municípios.
Ao mesmo tempo, a inacreditável política do governo em relação à Petrobrás e à crise que atinge os grupos econômicos que controlam as grandes empreiteiras investigadas pela Operação Lava Jato apenas agravam, ainda mais, o quadro de desgoverno que vivemos.
Por tudo isso, torna-se urgente a formação de uma frente política que envolva movimentos sociais, entidades de representação dos trabalhadores e partidos políticos de vocação popular, em torno de uma pauta mínima de defesa dos trabalhadores e do povo, incluindo:
1 – A defesa do emprego e da renda dos trabalhadores;
2 – A defesa da segurança social dos trabalhadores e do povo.
Esses são dois objetivos básicos que deveriam orientar as prioridades do modelo econômico. Entretanto, na prática, acabam se reduzindo, no máximo, a metas meramente formais de um modelo que, para atender aos setores dominantes, difunde postulados que apenas ocultam a ditadura de classe que defende a prevalência dos interesses financeiros sobre todo e qualquer outro tipo de prioridade. A estabilidade monetária, a disciplina fiscal ou a livre movimentação de capitais aparecem, assim, como se fossem pré-condições para o funcionamento adequado da economia, independentemente do real significado e consequências desses termos, à luz do que temos observado, na prática, nos últimos 21 anos.
A estabilidade monetária é espúria, pois, dependente do binômio câmbio valorizado/taxa real de juros elevada, arruína a produção interna pelo lado da oferta – estimulando a troca de produção doméstica por importados – e pelo lado dos custos, ao manter elevadíssimos custos financeiros internos. Não sem razão, nessas últimas duas décadas observamos o duplo fenômeno da desnacionalização do nosso parque produtivo, em combinação com um acelerado quadro de regressão industrial, traduzido em parques de montagem de peças e componentes majoritariamente produzidos no exterior.
A propalada disciplina fiscal – que seria garantida pelas metas de superávit primário, com o objetivo de se conter em níveis adequados a relação endividamento/PIB – é uma verdadeira falácia: desde 1999 submetemos o setor público a um esforço fiscal sempre superior a 3% do PIB, ao menos até a eclosão da crise financeira de 2008, sem que o montante da dívida mobiliária fosse reduzido, nem tampouco a relação dívida/PIB viesse a melhorar.
Hoje, a dívida mobiliária da União ultrapassa 3 trilhões de reais e, na ótica do governo e dos liberais, deveria exigir não a redução da conta de juros, mas maiores sacrifícios orçamentários, com cortes ainda mais acentuados de despesas de custeio e de investimento.
Por tudo isso, um programa emergencial de defesa do emprego, da renda e da segurança social dos trabalhadores e do povo exigiria uma radical mudança do atual modelo econômico e a consequente alteração da política macroeconômica, em torno dos seguintes pontos:
1 – adoção de mecanismos de controle de capitais e de defesa do país em relação a movimentações especulativas na esfera cambial;
2 – adoção de regime cambial que permita a administração da taxa de câmbio de acordo com uma política de defesa do emprego e da produção internas, visando a busca de maior competitividade da produção doméstica;
3 – redução substantiva da taxa real de juros, através da redução paulatina da taxa Selic e do custo médio de administração da dívida mobiliária interna, de modo a diminuir o peso dos encargos financeiros no âmbito do Orçamento Geral da União;
4 – realização de uma ampla auditoria das dívidas interna e externa da União, com o objetivo de favorecer a reestruturação das condições de pagamento das mesmas, em relação aos seus prazos e custos financeiros;
5 – reestruturação do Orçamento Geral da União, com a redução significativa das despesas com juros e encargos e o incremento de recursos nas áreas estratégicas para a segurança social dos trabalhadores e do povo: educação, saúde, previdência social, habitação popular, saneamento, transportes públicos e meio ambiente;
6 – efetivação de um reforma tributária que se paute no princípio geral da progressividade, com especial atenção à revisão das atuais alíquotas do IRPF – ampliando-se a atual faixa de isenção e adotando-se alíquotas crescentes de contribuição, de modo a ampliar a atual estrutura de alíquotas, de acordo com as faixas mais elevadas de rendimentos; aos mecanismos de isenção e facilitação tributárias do IRPJ; à taxação de propriedades rurais, heranças e grandes fortunas; à redução dos impostos indiretos e a sua seletividade, de acordo com a essencialidade do bem ou serviço a ser tributado;
7 – promoção de uma nova redistribuição de recursos entre a União, estados e municípios, de acordo com as diferentes competências constitucionais dos entes federados.
Na perspectiva ainda da defesa do emprego e da renda dos trabalhadores torna-se urgente uma total revisão da atual posição do governo em relação à crise por que passa a Petrobrás e o conjunto de empresas envolvidas nas investigações da Operação Lava Jato.
O anunciado programa de desinvestimentos e a venda de ativos importantes e estratégicos da Petrobrás, bem como a forma com que o governo vem tratando as empresas de engenharia e serviços envolvidas nos esquemas de corrupção, precisam ser totalmente revistos. A possível e necessária punição aos dirigentes dessas empresas não pode comprometer a importância de se encontrar formas – em nome do interesse público, e não de privilégios corporativos – de preservação e continuidade das obras e projetos em andamento, atingindo as mais diferentes regiões do país.
Levando-se em conta, portanto, o interesse social e nacional, há de se estudar caminhos que assegurem – dentro de um contexto que exige um novo padrão de governança de todas as empresas envolvidas – a continuidade dos empreendimentos que estão paralisados ou sob risco. O próprio BNDES, como credor de todas essas empresas, poderia ser usado para o encontro de uma solução jurídica e administrativa, na busca do reestabelecimento, em novas bases, dos contratos ora paralisados.
Por fim, a resposta vigorosa de um novo modelo econômico do país, para a realidade do emprego e do bem-estar dos trabalhadores, deve enfrentar o atual projeto de modelo agrário e agrícola predominante. Nesse sentido, devemos dar especial atenção para as propostas que vêm sendo formuladas pelo MST, em torno da necessidade de uma ampla reforma agrária e agrícola, como base para um projeto que consagre a agroecologia como referência para a produção agrícola brasileira.
Intensiva em mão de obra, privilegiando o estabelecimento de unidades de beneficiamento da produção junto às áreas produtoras, baseando-se em adubos e defensivos agrícolas de natureza orgânica, essa proposta tem o mérito, também, de se contrapor à ofensiva de agrotóxicos, transgênicos e utilização da terra de forma extensiva, em torno de determinadas monoculturas, com efeitos deletérios sobre os solos, águas e a saúde humana, gerados pelo atual modelo do agronegócio.
E, no campo dos negócios, há de se abolir definitivamente o chamado financiamento empresarial de partidos, políticos e campanhas eleitorais. Negócio altamente rentável e totalmente pernicioso aos interesses do povo, este expediente é hoje o principal mecanismo de sequestro do processo político pelos interesses das corporações empresariais. Um atentado contra a democracia substantiva, contra os legítimos interesses da cidadania.
Leia também:
Não há como recuperar a legitimidade da política sem ruptura radical com Lula e Dilma – entrevista com o economista Reinaldo Gonçalves.
A fórmula mágica da paz social se esgotou – Paulo Arantes, especial para o Correio
‘A depender de governo e oposição, caos social vai se aprofundar’ – entrevista com o historiador Marcelo Badaró
Agenda Brasil: o verdadeiro golpe – análise de Juliano Medeiros
A Esperança Resiste – coluna anterior de Paulo Passarinho
Apropriação financeira na crise – análise do economista Guilherme Delgado
‘Ajuste fiscal vai liquidar com os mais frágeis e concentrar a renda’ – entrevista com Guilherme Delgado
Paulo Passarinho é economista e colunista do Correio da Cidadania.
Comentários
Parabéns ao autor, que nos brinda com uma Agenda Alternativa
Assine o RSS dos comentários