O legado de 2007 e o nosso futuro
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- Paulo Passarinho
- 21/12/2007
O ano de 2007 vai se encerrando, em meio às incertezas, entre outras, quanto ao futuro e a vida de D. Luiz Flávio Cappio, Bispo de Barra, na Bahia, em seu prolongado esforço de jejum e orações, pela defesa da vida do Rio São Francisco e de milhares de outras vidas de brasileiros, que deste rio dependem. Neste momento em que escrevo, D. Cappio encontra-se em seu vigésimo terceiro dia sem alimentação e com os primeiros sinais de risco para a sua própria vida.
2007 é o quinto ano do governo que, eleito em 2002 sob o signo da esperança, a partir de 2003 deu continuidade – para a perplexidade de muitos e a frustração de outros – ao modelo de sociedade brasileira que acredita que a partir dos interesses dos grandes capitalistas, nacionais e principalmente estrangeiros, possamos construir um país desenvolvido, menos desigual, e com condições de vida dignas para a imensa maioria da população.
Em nome da defesa desse modelo, as privatizações realizadas no governo anterior – e até hoje questionadas na justiça – não foram objeto de nenhum tipo de ação que pudesse ser apontada como um risco para àqueles que delas se beneficiaram; o galopante processo de endividamento do Estado brasileiro não sofreu nenhum esforço de auditagem, apesar dos dispositivos constitucionais que exigem tal procedimento; e a política econômica não só não sofreu nenhuma alteração em seus fundamentos básicos, como sacrificou ainda mais o orçamento público, para a sagrada garantia do pagamento de juros aos credores e responsáveis pela própria existência e crescimento de uma lucrativa dívida financeira.
É lógico que os atuais governantes - boa parte oriunda da esquerda brasileira e portadores, até chegarem aos seus atuais postos, de um discurso crítico a esse mesmo modelo – não assumem que mudaram as suas convicções político-doutrinárias. Justificam as suas respectivas condutas por uma peculiar visão de “governabilidade” e alegam que a correlação de forças da sociedade brasileira os obrigou a esse inusitado e bizarro comportamento.
Em nome, portanto, disso tudo, mais do mesmo do que tem sido feito no país desde os tempos de Collor foi aprofundado e incrementado por novos elementos.
Prosseguimos com a abertura financeira do país; mantivemos o processo de desnacionalização do nosso parque produtivo; continuamos a facilitar e até mesmo a incentivar a entrada do capital especulativo externo; avançamos na privatização, e internacionalização, de serviços básicos essenciais à população.
Mas, não sejamos injustos, houve inovações. Foi legalizada a entrada no país das sementes transgênicas, bem como a sua utilização na produção agrícola de várias culturas; foi aprovada uma nova lei de concessões de terras públicas na Amazônia para empreendedores privados; “avançou-se” nas mudanças das regras previdenciárias do país, fazendo com que parte dos servidores públicos já aposentados – ou que vierem a se aposentar – paguem pelas suas próprias aposentadorias ou mesmo – no caso de seus dependentes – pelas suas pensões.
Na Amazônia, foi dado início ao processo de construção das polêmicas represas do rio Madeira e, no Nordeste, às obras iniciais da transposição das águas do S. Francisco. E, mais grave: o agro-negócio, esse pomposo nome ao latifúndio produtivo, se impôs como referência prioritária da política agrícola do país, estimulada, “como nunca antes neste país”, pela apologia ao etanol combustível.
Desse modo, 2007 vai se encerrando em meio ao enraizamento, mais consistente ainda do que na era FHC, do projeto liberal, de opção pelo modelo de país de preferência do sistema financeiro e das grandes corporações transnacionais. O que torna mais consistente ainda essa opção foi a mais importante inovação levada à frente pelo atual governo, e aqui ainda não destacada. Refiro-me à ativa política voltada para àqueles que ganham até dois salários-mínimos. Os reajustes reais do próprio salário-mínimo - com impactos diretos para o piso do benefício previdenciário; o aumento substantivo de recursos para os programas de transferência de renda aos mais pobres; a ampliação dos mecanismos de crédito ao consumo e o próprio polêmico - mas funcional - empréstimo consignado são exemplos de medidas que beneficiaram a parcela mais pobre – e também dos endividados assalariados - da imensa população brasileira.
Essas iniciativas deram não só popularidade e dividendos eleitorais ao governo “de esquerda”, gestor do projeto liberal, em um dos países mais injustos do mundo, como especialmente conferiu, desse modo, certa legitimidade ao modelo em curso. A antipatia e arrogância de FHC e de Collor foram substituídas pelo carisma e capacidade de comunicação ao povo do atual presidente da república. A exclusão dos “inempregáveis” – lembrando a expressão utilizada por FHC – foi atenuada pela expansão do Bolsa-Família. E, assim, la nave va...
Ao mesmo tempo, em nuestra América, 2007 representou – paradoxalmente ao que ocorre no Brasil – o aprofundamento e a consolidação, em vários países, de processos alternativos à tragédia liberal dos anos 90. Foi o ano da consolidação da revolução bolivariana na Venezuela e da afirmação nascente das democracias populares, nacionais e revolucionárias na Bolívia e no Equador. Na Argentina, Cristina Kirchner renova o processo que procura reerguer o país depois do vendaval das ilusões do capital internacional, do FMI e da irresponsável elite local.
O que se coloca no nosso futuro, de forma crucial para os destinos de uma América alternativa ao domínio e influência estadunidense, será justamente a capacidade do Brasil, e de seu ambíguo governo, em se sintonizar com os melhores dos projetos em curso, para uma integração produtiva, financeira, comercial, energética, tecnológica, e, sobretudo, cooperativa e fraterna com nossos vizinhos.
No campo estritamente diplomático, o governo brasileiro tem cumprido importante papel para o atenuamento da ofensiva direitista, que se manifesta como reação aos projetos de fato democratizantes em vários dos países da América do Sul.
Contudo, no plano da política concreta, o Brasil tem se reforçado no papel de país-suporte às pretensões das grandes corporações financeiras, produtivas e globais em nosso continente.
A opção do atual governo brasileiro às opções liberais, em que pesem os seus esforços para o apoio diplomático aos governos nacionalistas e revolucionários de nossa região, é hoje, assim, o principal obstáculo ao destino revolucionário, inovador e alternativo à barbárie capitalista em gestação em nosso promissor continente.
Paulo Passarinho é economista.
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