“Não dá pra se iludir com nenhum governo e resta a resistência aos trabalhadores”
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- 05/10/2018
Entorpecido, o Brasil mergulha nas urnas no ápice do desespero coletivo, a ponto de corrermos o risco de eleger uma chapa que não se furta de anunciar seu apreço a um regime de força que, em último caso, prescinda de votos e demais ritos democráticos. E qualquer seja o resultados, há um período incerto e sombrio pela frente. Sobre todo esse fiasco da Nova República, publicamos entrevista com o economista Paulo Passarinho, que fez uma análise das principais propostas – ou ausência delas – da corrida eleitoral.
“A ilusão de que estávamos em uma rota adequada de crescimento e desenvolvimento para as maiorias ganhou força. Contudo, estruturalmente, a regressão industrial em relação ao conjunto da economia, a desnacionalização do parque produtivo, a fragilização do papel do Estado como provedor de serviços públicos de qualidade à população, e a manutenção do mecanismo da dívida pública como instrumento de valorização dos capitais privados mantinham o país, na verdade, em uma perigosa rota de fragilidades e vulnerabilidades. Mais importante, ainda: o aparente “sucesso” da gestão econômica lulista reforçou a metamorfose política e ideológica do PT e a sua fidelidade às pressões e exigências dos setores empresariais”, contextualizou.
Sobre a disputa em si, dominada pelo discurso do medo e da negação do lado oposto, Passarinho, também colunista deste Correio e ex-presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, lamenta o tremendo rebaixamento a que “a era das imposturas” nos levou. Uma era que abrange todo o período de consenso neoliberal na política e na condução do país, portanto, um período de quase 30 anos. E contra a ameaça fascista legitimada nas urnas, a alternativa dita progressista não traz bons augúrios.
“(sobre uma vitória de Haddad) temo que possa não ser favorável aos setores progressistas da sociedade, pelo fato de o PT, convenhamos, ser hoje um partido extremamente vulnerável a um conjunto de críticas que nada dignificam um partido que possa ser considerado de esquerda, ou mesmo progressista. Suas alianças, nessas eleições, com setores ‘golpistas’ vai de vento em popa. Suas práticas fisiológicas e de promiscuidade com políticos da direita - e suspeitíssimos de corrupção – jamais mereceram algum tipo de autocrítica; sua inflexão política e ideológica, igualmente, jamais foi assumida com clareza e coragem, o que poderia ser salutar para a democracia brasileira, inclusive para dialogar e fortalecer a sua posição centrista, em meio à balbúrdia partidária brasileira”, analisou.
Sobre o outrora obscuro deputado, cujos discursos pré-eleitorais se blindaram ao máximo de uma exposição clara ao público, Passarinho aponta uma radicalização do mesmo modelo econômico, que poderia vir a ser garantida como um forte aumento da violência estatal contra aqueles que se opuserem.
“(a vitória de Bolsonaro) abrirá uma enorme possibilidade de avanço da agenda de contrarreformas liberais radicais, com a ameaça de uma nova rodada selvagem de privatizações, que poderá colocar em risco a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o que nos resta do setor elétrico, além de maiores perdas e ataques ao direito dos trabalhadores, como, por exemplo, o fim do 13º salário e do abono de férias”, identificou.
Na longa entrevista, Passarinho, além de pontuar que os setores progressistas terão um longo caminho de reconstrução de um projeto político amplo, concede o benefício da dúvida a respeito da possibilidade de Ciro Gomes ser um alivio momentâneo, ainda que sem quaisquer ilusões.
“Considero-o um político mais preparado, mais definido e mais coerente do que Fernando Haddad, por exemplo. Chego a pensar que, para esse campo lulista, ele poderia ter sido um candidato muito mais competitivo e consequente do que Haddad. Contudo, isso é um tremendo exercício especulativo, até mesmo porque o próprio PT jamais esteve aberto, me parece, a ceder a liderança do seu campo a um político que não fosse de total confiança de Lula e de sua burocracia”, afirmou.
A entrevista completa com Paulo Passarinho pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Antes de entrarmos nas eleições, que balanço faz do governo Temer, principalmente no aspecto econômico?
Paulo Passarinho: A herança do governo Temer é a pior possível e gravíssima para o futuro do país. Pelo lado fiscal, ficamos com a Emenda Constitucional 95, a comprometer sobremaneira as funções constitucionais da União por 20 anos, com impactos negativos, ainda mais graves do que os que já estão em curso, em áreas como a Educação, a Saúde ou a própria Segurança Pública; as alterações na Lei de Partilha do Pré-sal, pelos seus impactos na esfera produtiva, em relação ao patrimônio da União e também na área fiscal; a política de clara desestruturação do sistema Petrobrás, com a agressiva e ilegal venda de ativos da empresa; as mudanças na legislação trabalhista e especialmente o incentivo e permissão das terceirizações de atividades-fim, inclusive no setor público; e o andamento de novos ataques à Previdência Social, através da tramitação de proposta de Emenda Constitucional, já aprovada em Comissão Especial da Câmara, são exemplos que comprometem ainda mais qualquer capacidade de o Estado brasileiro comandar um processo de reorientação do desenvolvimento econômico e social do país, de acordo com as necessidades e exigências da maioria da população brasileira.
Tudo isso se torna mais grave ainda quando observamos o quadro de estagnação prolongada da economia, após a recessão produzida em 2015 e 2016.
Correio da Cidadania: Pode-se traçar um perfil deste governo tampão de forma descolada dos governos Dilma, dos quais Temer foi vice-presidente?
Paulo Passarinho: De forma alguma. A chamada “pauta regressiva”, demonizada pelos setores antigolpe – incluindo o PT -, teve início, a rigor, no governo Dilma, com medidas que nos conduziram à forte recessão de 2015/16. Dilma, imediatamente após a sua vitória eleitoral de 2014, e antes mesmo do término do seu primeiro mandato, capitulou de forma vergonhosa às exigências do setor financeiro e deu início à escalada de restrições de direitos trabalhistas, ao aperto fiscal e ao desmonte do sistema Petrobrás, com a política de venda de ativos sob a direção de Aldemir Bendine.
O próprio golpe parlamentar por ela sofrido teve como principal razão a sua incapacidade de aprovar medidas no parlamento de interesse do sistema financeiro, propostas inicialmente por Joaquim Levy e depois por Nelson Barbosa. O boicote das bancadas do PSDB, do DEM, do PP, do PPS e da banda peemedebista, sob o comando de Eduardo Cunha, deixou claro que - apesar do seu “esforço” - Dilma não tinha condições de “entregar” o que pretendia.
Essa capitulação de Dilma, que uns preferem esquecer e outros negam, está relacionada, em minha opinião, a duas razões. A primeira delas, de ordem conjuntural: apesar de na sua campanha eleitoral ela ter combatido e denunciado os planos de Aécio Neves e Marina Silva, como sintonizados à recessão e ao ajuste econômico nas costas dos trabalhadores, a vulnerabilidade do seu governo e do seu partido às revelações da Operação Lava Jato a fizeram procurar o apoio desses segmentos dominantes, do setor financeiro, os principais defensores e beneficiários desse tipo de “terapia”, para enfrentar a crise.
A segunda razão é mais grave e importante: desde o final dos anos 1990, o PT foi paulatinamente abrindo mão de uma postura crítica e alternativamente propositiva ao conjunto de mudanças – constitucionais, normativas, patrimoniais, macroeconômicas e administrativas – realizadas no Estado brasileiro, a partir do primeiro governo de FHC. De uma clara alternativa ao neoliberalismo tupiniquim – através do seu programa intitulado como “democrático e popular” – o PT passou a ser uma alternativa para “gerir” esse modelo, fundado a partir da hegemonia do capital financeiro. Gerir de forma diferente aos tucanos, de forma mais sensível às demandas populares, mas respeitando a “moldura” construída nos anos 1990.
As privatizações, a liberalização financeira, o câmbio flutuante, as metas de superávit primário e de inflação, a reforma administrativa bresseriana e todo arcabouço neoliberal construído pelos governos de FHC passaram a fazer parte da agenda do neoPT. Isso explica a razão do governo Dilma, pressionado pelas repercussões da Operação Lava Jato e pelas consequências do desarranjo econômico do final do seu primeiro mandato, ter se entregado tão docilmente às recomendações dos banqueiros e financistas.
Correio da Cidadania: O que avalia das principais campanhas eleitorais até aqui? Tivemos debates à altura dos desafios que o país tem pela frente?
Paulo Passarinho: Não. Considero o nível dos debates muito aquém do que poderíamos imaginar como necessário para o Brasil superar a crise atual que vivemos. Essa crise, em minha opinião, reflete todos os equívocos do que denomino a “era das imposturas”. Uma era que teve início com o “fim da inflação”, na época do FHC, e o lançamento do Plano Real; passa pelo “neodesenvolvimentismo” do lulismo; e desemboca nessa dita “pauta regressiva”, atribuída a Michel Temer, mas tendo sido iniciada ao final do primeiro mandato de Dilma.
A era das imposturas é a tradução da intensa propaganda positiva em torno das mudanças dos anos 1990, a que me referi anteriormente, e que ganham grande impulso popular a partir dos governos de Lula. A expressiva valorização dos preços das commodities permitiu, já em 2003, saldos comerciais superiores aos crônicos déficits da nossa conta de serviços, conforme pudemos observar até 2007.
Essa vantagem, pelo lado externo da nossa economia, viabilizou a elevação dos níveis de consumo interno, a expansão do crédito e políticas de valorização real do salário mínimo e de aumento dos programas de transferência de renda aos setores de baixíssima renda.
A ilusão de que estávamos em uma rota adequada de crescimento e desenvolvimento para as maiorias ganhou força. Contudo, estruturalmente, a regressão industrial em relação ao conjunto da economia, a desnacionalização do parque produtivo, a fragilização do papel do Estado como provedor de serviços públicos de qualidade à população, e a manutenção do mecanismo da dívida pública como instrumento de valorização dos capitais privados mantinham o país, na verdade, em uma perigosa rota de fragilidades e vulnerabilidades. Mais importante, ainda: o aparente “sucesso” da gestão econômica lulista reforçou a metamorfose política e ideológica do PT e a sua fidelidade às pressões e exigências dos setores empresariais.
No fundo, a gestão petista conferiu legitimidade e apoio popular ao modelo antinacional e antipopular dos bancos e das multinacionais, os verdadeiros beneficiários desse modelo econômico iniciado nos anos 1990. Meu descontentamento com o nível dos debates entre os presidenciáveis está diretamente relacionado com a incapacidade de ouvir diagnósticos e proposições que coloquem na berlinda esse modelo dos financistas, e não somente a chamada pauta regressiva de Dilma e Temer.
Esta pauta é apenas a expressão radicalizada, em um momento de crise, da “solução” proposta por esses setores hegemônicos que dão as cartas na economia desde os anos 1990, e que no período dos governos pós-2002 apenas fortaleceram as suas posições e interesses.
Correio da Cidadania: Como avalia as propostas dos candidatos na economia?
Paulo Passarinho: Pelo lado dos candidatos da direita, o reforço inconsequente e irresponsável da política de arrocho em curso, ao mesmo tempo em que tentam se diferenciar entre si com a cantilena enfadonha das virtudes de cada um como “gestores”. Uma pobreza sem limites, para a defesa do indefensável: o maior controle do orçamento público (para a garantia do pagamento de despesas financeiras), através do congelamento por 20 anos nos gastos correntes e de investimento do Estado, combinado com uma agressiva estratégia de retirada de direitos dos trabalhadores, com o objetivo de reduzir o custo do trabalho no país.
Alguns desses candidatos ainda admitem que possa haver alguma flexibilização – o que me parece inevitável – nos termos do congelamento de despesas prevista na EC 95, mas em linhas gerais o que temos é o mais do mesmo do que já se encontra em curso.
Pelo lado das forças que denunciam o golpe parlamentar contra a Dilma, o horizonte programático parece ser a revogação da agenda de contrarreformas de Michel Temer e a equação do problema fiscal pelo lado da receita, através de mudanças na estrutura tributária, tornando os impostos sobre os ricos mais rigorosos. A exceção é o PSTU que, abstraindo qualquer restrição de ordem conjuntural ou subjetiva, defende uma rebelião popular, como caminho para transformações estruturais, de caráter socialista.
As propostas das forças políticas antigolpe - representadas pelas diferentes candidaturas de Haddad, Ciro e Boulos - possuem uma riqueza de detalhes que evidentemente superam a minha genérica caracterização inicial sobre os seus respectivos programas. Entre esses três candidatos, Ciro Gomes é o que melhor encarna e defende um programa de natureza desenvolvimentista, denunciando o rentismo, defendendo o papel do Estado como indutor da reativação econômica, destacando o papel dos complexos industriais da saúde e da defesa, denunciando o imperialismo e claramente se comprometendo em reverter os leilões do pré-sal e as negociações em curso entre a Boeing e a Embraer.
Contudo, junto a esse discurso, defende também zerar o déficit primário em um período de dois anos, a adoção do regime de capitalização para a Previdência Social Pública e, de acordo com um dos seus principais assessores econômicos, a privatização de estatais. Essa ambiguidade da campanha do ex-ministro e ex-governador do Ceará revela uma das características da sua proposta: ainda que ele defenda com vigor um projeto desenvolvimentista, este deveria se dar a partir justamente daquela “moldura” a que me referi no início dessa entrevista, representada pelas “reformas” liberais dos anos 1990.
Meu ceticismo com essa estratégia está relacionado à ausência de um claro compromisso com a desmontagem do processo de liberalização financeira e com o restabelecimento de controles sobre a conta de capital do país. Compreendo que não necessariamente esses sejam temas para serem explorados e enfatizados no curso de uma campanha eleitoral. Entretanto, vejo a divulgação de tais propostas de agrado ao sistema financeiro, elencadas acima, como uma espécie de sinal positivo ao chamado “mercado”, especialmente a ambiciosa e equivocada “meta” fiscal e o regime de capitalização para salários acima de um determinado valor, mas abaixo do atual teto do Regime Geral da Previdência, de R$ 5,6 mil. Além disso, temos a reafirmação e apologia do agronegócio, como uma das “locomotivas” do modelo cirista.
O programa de Haddad, por sua vez, procura recuperar as linhas gerais do que foi denominado, no segundo governo de Lula, como “neodesenvolvimentismo”. É na verdade, também, uma espécie de “namoro” – assim como Ciro – entre o neoliberalismo dos anos 1990 e a adoção, dentro de estreitas possibilidades, de mecanismos indutores ao desenvolvimento a partir do Estado e de seus bancos públicos. Em relação a Ciro, suas propostas não são tão enfáticas na defesa de uma estratégia “desenvolvimentista”, mas também não cai na tentação de apresentar “novidades” para a Previdência Pública ou para a área fiscal.
Porém, o grande problema das propostas formais de Haddad é a patente vulnerabilidade do PT, o seu partido, frente às sempre presentes pressões do mercado financeiro. A história recente não nos permite ser ingênuos em relação ao que o PT entende como “governabilidade” e a forma como, em nome desta, os seus compromissos programáticos são abandonados.
Por fim, Guilherme Boulos, candidato da aliança PSOL/PCB/MTST, tem um claro compromisso em inverter as atuais prioridades do Estado, promovendo e incentivando o protagonismo das classes populares e, ainda que de forma tímida, denunciando as “reformas” liberais dos anos 1990. Defendendo uma ampla reforma do sistema tributário, visando “aumentar a equidade e a eficiência na arrecadação e seu caráter regulatório”, apresenta uma série de propostas importantes para sepultar a regressividade da atual estrutura tributária.
Na área fiscal, além do compromisso de encaminhar para consulta popular a revogação da Emenda Constitucional 95, defende a revisão da Lei de Responsabilidade Fiscal, o abandono das metas de superávit primário e a mudança no perfil da Dívida Pública Federal, com a redução do pagamento de juros, e a “realização de uma auditoria para evitar novos contratos lesivos ao povo brasileiro junto a instituições financeiras”. São contribuições importantes que, dada a pequena força eleitoral de sua coligação, poderão ser relevantes para procurar influenciar as negociações em torno da candidatura do campo antigolpe – possivelmente a de Haddad – em um possível segundo turno das eleições presidenciais.
Correio da Cidadania: Como analisa a estratégia do PT de segurar a candidatura Lula até o limite dos prazos e depois a escolha da dupla Haddad-Manuela D’Ávila?
Paulo Passarinho: Sob o ponto de vista de Lula e da burocracia petista, foi uma estratégia coerente com o objetivo de manter Lula no centro do debate presidencial até onde era possível, e explorar ao máximo, e no menor espaço de tempo, a possibilidade de transferência de votos do ex-presidente para Haddad.
Porém, é uma estratégia que incentiva a oposição de direita ao lulismo, favorecendo a acusação ao ex-prefeito de São Paulo de ser um mero fantoche a serviço do próprio Lula, hoje “um presidiário”. Considerando o clima “anti-PT”, criado contra essa legenda e contra o próprio Lula – especialmente pelos meios de comunicação, por setores do Ministério Público e da própria Justiça –, isso favorece a essa polarização, PT x Anti-PT, de interesse eleitoral da direita.
Correio da Cidadania: O que seria do Brasil numa eventual polarização Haddad-Bolsonaro para o segundo turno e também após as eleições?
Paulo Passarinho: Temo que possa não ser favorável aos setores progressistas da sociedade. Em primeiro lugar, pela razão exposta na resposta anterior. Em segundo lugar, pelo fato de o PT, convenhamos, ser hoje um partido extremamente vulnerável a um conjunto de críticas que nada dignificam um partido que possa ser considerado de esquerda, ou mesmo progressista. Suas alianças, nessas eleições, com setores “golpistas” vai de vento em popa. Suas práticas fisiológicas e de promiscuidade com políticos da direita - e suspeitíssimos de corrupção – jamais mereceram algum tipo de autocrítica; sua inflexão política e ideológica, igualmente, jamais foi assumida com clareza e coragem, o que poderia ser salutar para a democracia brasileira, inclusive para dialogar e fortalecer a sua posição centrista, em meio à balbúrdia partidária brasileira.
Penso, assim, que essa polarização – que já está em curso – tenderá a jogar ainda mais para a direita as posições de Haddad, buscando não se isolar de partidos desse campo, refratários à liderança de Bolsonaro. Esse possível movimento de Haddad buscará também criar melhores condições de “governabilidade” após as eleições, caso naturalmente ele venha a se tornar o próximo presidente do país.
Contudo, o que mais temo é que haja uma espécie de disputa, em torno dessas candidaturas, entre o legado da ditadura e o legado da Nova República. Levando-se em conta que os “mal feitos” e frustrações desta última estão mais próximos – e presentes! – e que a tragédia da ditadura, além de mais distante no tempo, jamais foi suficientemente passada a limpo e punida com rigor – uma das mais graves heranças da tal “transição democrática” que tivemos – temo por um tipo de disputa dessa natureza. A forma desinibida, impune e descarada com que o próprio Bolsonaro e seus partidários agem, inclusive através de oficiais das Forças Armadas, mostra muito bem o que temos pela frente.
Correio da Cidadania: Em caso de vitória da chapa petista, como imagina o antipetismo novamente na oposição do governo federal? Não teríamos chance enorme de uma repetição da ruptura que houve com Dilma ou de um golpe de forma até mais inequívoca?
Paulo Passarinho: Tudo dependerá da forma com que Haddad vier a se comprometer nas eleições do segundo turno. Como acredito que Haddad, o PT e os seus aliados tenderão a aprofundar os seus compromissos com setores da direita, inclusive por força da lógica eleitoral, tudo dependerá da forma como Haddad irá resistir – ou não – às pressões da plutocracia e de seus partidos, para aceitar dar continuidade ao programa de contrareformas iniciado com Dilma/Levy e em curso com Michel Temer.
Novamente, o PT estará colocado frente ao dilema de respeitar o seu programa eleitoral, enfrentar a plutocracia, saber lutar e derrotar uma maioria parlamentar hostil a esse seu programa, ou, em nome da famosa “governabilidade”, “correlação de forças”, ou o que quer que seja para a sua sobrevivência, deixar de lado as suas propostas e, mais uma vez, capitular. A reedição da operação realizada por Lula em 2002/2003, promovendo um governo de “conciliação”, de garantia de ganhos e vantagens “para todos”, respeitando as contrareformas de FHC e ao mesmo tempo atendendo com políticas compensatórias e de inclusão os setores mais pobres da sociedade, desta feita não mais será possível.
Não mais temos a extraordinária expansão da demanda asiática e chinesa, que nos favoreceu na primeira década do século 21, e ao mesmo tempo temos um grave problema de estagnação econômica, após a forte recessão de 2015/16 e suas consequências no nível do emprego, da renda e do endividamento das famílias, das empresas e dos estados e municípios. Penso que a instabilidade – com desdobramentos, hoje, imprevisíveis - será a principal característica que nos aguarda para 2019, seja qual for o próximo governo
Correio da Cidadania: E um governo Bolsonaro? Tiro fatal em nossa já limitada democracia e suas instituições?
Paulo Passarinho: Muito provavelmente. Um governo Bolsonaro terá consequências imprevisíveis nas esferas econômica, social e política. Não ouso fazer qualquer prognóstico mais definitivo, mas certamente teremos fortes turbulências que poderão – considerando o tipo de gente que cerca e apoia o candidato – oferecer enormes riscos a nossa limitada e precária democracia.
Além disso, sua vitória abrirá uma enorme possibilidade de avanço da agenda de contrarreformas liberais radicais, com a ameaça de uma nova rodada selvagem de privatizações, que poderá colocar em risco a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o que nos resta do setor elétrico, além de maiores perdas e ataques ao direito dos trabalhadores, como, por exemplo, o fim do 13º salário e do abono de férias.
Para se levar um programa dessa natureza à frente, pela forte resistência que certamente um projeto desse tipo irá provocar, somente um regime baseado na força, na violência e repressão aberta aos movimentos sociais organizados poderá alcançar os seus objetivos.
Correio da Cidadania: Ciro Gomes presidente poderia ser um alívio em meio a tal contexto?
Paulo Passarinho: Talvez. Embora considere hoje o Ciro uma expressão do campo lulista – justamente por essa sua tendência, em minha opinião, de sustentar uma visão dita “desenvolvimentista”, mas de respeito às reformas dos anos 1990 -, sua origem e trajetória não vêm da esquerda. Isso talvez pudesse lhe dar um pouco mais de margem de manobra para negociar com adversários e com uma maioria parlamentar de oposição.
Pessoalmente, o considero um político mais preparado, mais definido e mais coerente do que Fernando Haddad, por exemplo. Chego a pensar que, para esse campo lulista, ele poderia ter sido um candidato muito mais competitivo e consequente do que Haddad. Contudo, isso é um tremendo exercício especulativo, até mesmo porque o próprio PT jamais esteve aberto, me parece, a ceder a liderança do seu campo a um político que não fosse de total confiança de Lula e de sua burocracia.
Correio da Cidadania: Como analisa a campanha de Guilherme Boulos? O PSOL está fracassando na tentativa de se apresentar como alternativa ao PT pela esquerda?
Paulo Passarinho: Acredito que sim. O início da caminhada de Boulos, como candidato à presidência, se confundiu com a campanha pela libertação de Lula e por ela – por essa campanha – o próprio Boulos se deixou confundir. Acredito que uma coisa seja a posição crítica que qualquer democrata e socialista deva ter em relação a uma condenação absolutamente questionável – como a que Lula recebeu, por duas vezes! - e obedecendo a uma lógica instrumental da Justiça, com propósitos de natureza política e eleitoral. Uma verdadeira vergonha para um país que se pretenda civilizado.
O episódio onde o juiz Sergio Moro, nas vésperas de uma manifestação de oposição à Dilma sendo convocada por uma emissora concessionária pública de TV, a TV Globo, libera uma fita de gravação telefônica, realizada sem amparo legal, para essa própria emissora, envolvendo a conversa da presidente da República, é um crime que não poderia ocorrer, sem uma gravíssima punição a Moro. O fato de praticamente nada ter acontecido contra o irresponsável magistrado, mostra os absurdos de uma Justiça que se encontra aparelhada.
Contudo, a posição de Boulos foi muito além de uma mera posição de repúdio a essa pseudoJustiça. Em vários momentos, a impressão que se tinha é que Boulos alimentava a ingênua ilusão de ser sagrado por Lula como o seu indicado para substituí-lo, caso ele mesmo Lula não pudesse vir a ser candidato. Um duplo equívoco. Primeiro, pela ilusão de o candidato a ser apoiado pelo PT poder não ser de suas próprias fileiras. E segundo e mais grave: para vir a ser uma alternativa “pela esquerda” ao PT, não é possível conciliar, apoiar ou se confundir com o que é hoje o PT. A crítica substantiva à herança lulista, à herança de uma equivocada política de conciliação, deve ser implacável, sem ser sectária. Além das ilusões da conciliação, a estratégia lulista mostrou a sua inconsequência e insustentabilidade.
Há de se desnudar toda a impostura de um suposto “neodesenvolvimentismo” que conviveu e aprofundou a regressão industrial do país, a desnacionalização do parque produtivo, a fragilização do Estado e a financeirização da economia, quatro aspectos que contrariam qualquer pretensão genuinamente desenvolvimentista. Afora isso, tivemos os gritantes problemas de ética desse neoPT, sem que haja até hoje nenhum tipo de autocrítica.
Como ser admissível ou tolerante com esse tipo de desvio? E aqui não se trata de ser moralista, udenista ou qualquer bobagem do gênero. Quem sempre defendeu uma “nova ética na política” e o compromisso com mudanças estruturais na economia e na sociedade brasileira, durante duas décadas, foi o antigo PT. Como ser leniente ou mesmo cúmplice dessas imposturas?
O PSOL, além de suas notórias diferenças internas, terá agora, me parece, de ter de se desvincular desse tipo de contaminação política que acaba lhe confundindo como um partido do campo lulista. Para uma esquerda brasileira que precisa de clareza estratégica, visão nacional dos nossos problemas e uma tática que a faça uma autêntica representação de luta do povo brasileiro, a crítica radical ao lulismo é fundamental.
Correio da Cidadania: O que o próximo governo, a seu ver, teria de fazer para tirar o país da crise e oferecer perspectivas de melhorias aos trabalhadores e à economia?
Paulo Passarinho: Não tenho ilusões com qualquer que seja o próximo governo. Para os trabalhadores, o que nos resta será a resistência. Entretanto, acredito que essa resistência deverá acumular forças para, a um só tempo, derrotar a herança nefasta das “contrareformas” de Temer e todo aquele arcabouço que nos governa, desde os anos 1990.
Correio da Cidadania: O que vislumbra para o Brasil e seu projeto de democracia nos próximos momentos?
Paulo Passarinho: Muita tensão, muita instabilidade e, tomara, muitas lutas de resistência popular. Contudo, acredito que precisemos pensar uma estratégia de longo prazo para as lutas populares.
O Estado brasileiro precisaria estar à frente de um processo de reconstrução nacional, voltado para a superação da dependência econômica e do nosso consequente subdesenvolvimento. A ideia do desenvolvimentismo genuíno – industrialização acelerada, sob o controle de empresas nacionais, induzida pela ação do Estado e guarnecido por um sistema financeiro imune às vulnerabilidades externas – seria um objetivo adequado, sob o ponto de vista econômico, para o início de um processo de independência real do país e a afirmação de nossa soberania.
Entretanto, em nossa história, jamais tivemos a oportunidade de experimentar um processo dessa natureza. Nossas classes dominantes nunca tiveram interesse em um projeto desse tipo. Com a brutal internacionalização de nossa economia, com a inserção subalterna que temos hoje no jogo global, e com o atual controle dos bancos e multinacionais sobre as decisões do Estado brasileiro, é uma possibilidade hoje totalmente inviável.
Somente um novo bloco histórico de forças, constituído especialmente a partir das lutas e da organização das classes trabalhadoras, poderá viabilizar tais transformações. Essa, eu espero, será uma tarefa a ser cultivada, construída, a partir da própria esquerda que sobreviveu e sobrevive à capitulação do PT como um instrumento de libertação do nosso povo.
Chego a pensar que o futuro da democracia no Brasil dependerá da capacidade dessa esquerda superar a suas ilusões, o seu apegado recurso ao doutrinarismo ideológico ou ao mero oportunismo eleitoral, e reencontrar um caminho próprio de construção de uma estratégia que seja, ao mesmo tempo, nacionalista, revolucionária e popular.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
Gabriel Brito, da Redação
Comentários
O PSOL mostrou-se um puxadinho do PT. O PT privilegiou a defesa de Lula e, com isso, ampliou e intensificou, além de ter facilitado e estimulado, a expansão e irradiação da ofensiva à direita sobre os indecisos.
O fato é que não resta dúvida de que amanhã a vida do mundo do trabalho será pior.
A pauta regressiva será maior e o dia seguinte não deixa margem para esperanças.
O surpreendente não foi a ascensão da direita que já estava presente no radar, mas a aceleração na reta de chegada que fez do ex-capitão um fenômeno eleitoral.
Pode ser um Jânio de farda? Seria um Collor de farda? Ou o que seria muito pior: um Lula de farda? Faz tempo que não lia uma entrevista lúcida.
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