Advogados Ativistas analisam decisão judicial que culpa fotógrafo por tiro no olho em protesto
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- 12/09/2014
O fotógrafo Alex Silveira, que perdeu quase toda a visão do olho esquerdo após tiro de bala de borracha
deflagrado pela PM em protesto (Foto: Sérgio Silva/Divulgação – Imagem da Série Piratas Urbanos)
Foram julgadas no Tribunal de Justiça de São Paulo as apelações da Fazenda do Estado de São Paulo e de Alexandro Wagner Oliveira da Silveira, fotógrafo alvejado pela PM paulista em uma manifestação no ano de 2003 que culminou na perda da visão do olho esquerdo.
Segundo o desembargador relator do caso, Vicente de Abreu Amadei, integrante da 2ª Câmara Extraordinária de Direito Público, apesar de comprovada cegueira decorrente da atitude policial, o Estado não poderia ser condenado, pois a vítima se colocou em meio a uma situação agressiva de confronto entre policiais e grevistas.
Abaixo, a análise do Advogados Ativistas sobre a decisão, cuja íntegra está disponível:
Resumidamente, o que o desembargador Vicente de Abreu Amadei fez foi reconhecer que houve um fato que isenta o Estado de indenizar a vítima, o que no mundo jurídico é chamado de excludente de responsabilidade.
No Brasil, a regra geral é de responsabilidade objetiva do Estado, ou seja, o reconhecimento de obrigações do Estado independe da comprovação de culpa ou intenção (dolo). Porém, existem as hipóteses que podem excluir tais obrigações, dentre elas a de culpa exclusiva da pessoa no ato do qual foi vítima. Definiu o desembargador assim a excludente:
“Permanecendo, então, no local do tumulto, dele não se retirando ao tempo em que o conflito tomou proporções agressivas e de risco à integridade física, mantendo-se, então, no meio dele, nada obstante seu único escopo de reportagem fotográfica, o autor colocou-se em quadro no qual se pode afirmar ser dele a culpa exclusiva do lamentável episódio do qual foi vítima”.
Na interpretação do desembargador, o fato de permanecer no meio de uma confusão entre policiais e manifestantes, mesmo que no exercício profissional (fotógrafo), fez com que fosse alvejado. Esta interpretação traz uma carga ideológica imensa, identificada especificamente no seguinte parágrafo:
“Com efeito, destaque-se, de um lado, que o conjunto dos elementos probatórios dos autos não autoriza afirmar que tenha havido abuso ou excesso na referida conduta policial atrelada ao tal disparo, observando não só a circunstância de indevido bloqueio de tráfego de via pública pelos manifestantes, que insistiam nesta conduta ilícita, a justificar a repressão policial, bem como o tumulto consequente, inclusive com lançamentos de pedras, paus e coco nos policiais, que também justificaram reação policial mais enérgica, com lançamento de bombas de efeito moral e disparos de balas de borracha, para dissipar a manifestação já qualificada, para além de ilícita, como agressiva”.
Segundo o Desembargador, diante do contexto, não é possível afirmar que houve excesso por parte da polícia, ainda que o disparo tenha causado a cegueira de um dos presentes. Considera, ainda, ilícito o bloqueio de via pública, justificando o ataque da PM à manifestação e evidenciando, portanto, que foi o ataque da PM que levou os manifestantes a contra-atacarem com pedras, paus e cocos.
Estruturando o pensamento:
- Onde está escrito que fechar a rua para se manifestar é proibido? Não há lei que embase esta afirmativa.
- O fato da PM ter atacado os manifestantes com bombas e tiros de borracha por terem fechado uma via pacificamente não é considerado excesso ou mesmo impedimento do exercício de direito de manifestação?
- Pedras, paus e cocos poderiam mesmo causar danos a policiais muito bem equipados e preparados para o combate ou é a questão de a figura do Estado ter sido atacada que foi levada em conta pelo magistrado?
- Diante de todos estes fatos, a ilicitude e agressividade alegadas partiram de quem? Foram executadas por quem?
- Por fim, cegou-se uma pessoa neste contexto, mas a ilicitude e agressividade justificam esta tragédia.
Decisões deste tipo reafirmam o monopólio da violência, porém, não no sentido de necessidade e sim no de possibilidade de usá-la de forma desproporcional e irracional, ainda que pessoas sejam dilaceradas nas ruas.
Deveria o Tribunal ter se atentado para algumas questões, tais como as recomendações internacionais de uso de armas menos letais, regras que, em tese, são seguidas pelas forças policiais brasileiras diante da inexistência de legislação nacional, como por exemplo a necessidade de uma distância de no mínimo 20 metros para o uso de balas de borracha e de sempre se disparar da cintura para baixo.
Descumpridas estas recomendações, os armamentos menos letais podem matar e gerar graves lesões, como neste caso. Como pode então um cidadão ser responsabilizado pela quebra de procedimento por parte da polícia que culminou em sua mutilação?
Portanto, errou ao se apegar a uma argumentação jurídica falha, pois as recomendações para o uso de tal armamento teriam que ser necessariamente analisadas, o que não ocorreu, preferindo justificar a brutalidade da ação policial pelo simples fechamento de uma rua. Na balança, a integridade física de um cidadão parece valer menos, muito menos, do que a necessidade de se desbloquear uma via.
Além disso, a liberdade de imprensa foi mais uma vez colocada em xeque com esta interpretação, assim como a liberdade de informação. Alegando que a culpa é da vítima, atesta o Desembargador que ali não era o local para estar um jornalista, talvez acostumado com as coberturas midiáticas que são transmitidas atrás dos escudos da polícia, que demonstram sempre o que ele mesmo afirmou: justificativas esdrúxulas para o uso de força desproporcional por parte da PM.
Dizer como pode ou não pode agir um jornalista em situações do gênero, como eles devem desenvolver suas atividades, é absurdo. À polícia apenas louvor e nenhum limite de atuação, à sociedade civil as duras penas da lei e suas interpretações tendenciosas.
Este acórdão afrontou diversos princípios básicos norteadores da democracia, desde o livre exercício profissional até o direito de livre manifestação, o qual insistem os burocratas em dizer que é limitado. Direitos não são limitados, eles existem ou não. Os que não existem são passíveis de punição, como eventuais depredações, mas o direito de manifestação em si é pleno e garantido pela Constituição Federal.
Um fator social não é criado da noite para o dia. Os números não mentem, a PM faz o que quer nas ruas e isto vem sendo construído ao longo do tempo sempre com a tentativa de justificar atitudes dizendo que excessos são casos isolados, sendo o Judiciário leniente com os desvios. Que o senhor Desembargador tenha consciência que contribuiu um pouco mais para a barbárie que vivemos nas ruas e para a precarização de nossos direitos.
Fonte: Istoé.