Tragédia em Salvador: então a culpa é das vítimas?
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- 11/05/2015
Há duas semanas, 15 pessoas morreram soterradas após as fortes chuvas que atingiram a cidade de Salvador. Somente na comunidade do Barro Branco, na periferia da cidade, onze pessoas perderam suas vidas. As outras quatro eram moradoras da comunidade do Marotinho, no bairro de Bom Juá, localizado também na periferia. 376 famílias estão desabrigadas, sendo que 100 delas foram transferidas para abrigos e as demais foram cadastradas para receber aluguel social no valor de R$ 300.
Ainda no calor da tragédia, já começaram as buscas por culpados. O secretário municipal de infraestrutura, Paulo Fontana, não demorou em responsabilizar a própria população. Em declaração à imprensa, afirmou: “É grande a parcela de culpa da população que joga lixo nas ruas, que além de sujar a cidade, causa estes problemas com a chuva”. Como se a prefeitura pudesse se eximir da responsabilidade pela adequada coleta de lixo e pela drenagem das águas da chuva...
É muito comum, ainda, culpar as próprias vítimas por morarem em áreas impróprias para ocupação. De fato, a região afetada pelas chuvas em Salvador apresenta solo de massapê, terra argilosa que “derrete” com a ação da água. São comuns os deslizamentos nessa região em períodos de chuva forte. Dessa vez, choveu mais de 250 mm em apenas 24 horas. Mas ninguém escolhe arriscar a própria vida e a de seus familiares. As pessoas que moram em áreas de risco fazem isso porque não têm alternativa.
Quem mora em Salvador sabe que o período de chuvas fortes é entre março e maio. Essa não foi a primeira nem, infelizmente, será a última tragédia decorrente de enchentes e deslizamentos de terra. O poder público, portanto, não agiu como deveria para evitar o que aconteceu. Mas o que poderia ter sido feito, afinal, para preparar a cidade para esse tipo de situação?
Em primeiro lugar, é necessário que o município tenha conhecimento sobre o território e suas vulnerabilidades e que utilize tais informações para planejar sua expansão urbana. Mas, em geral, nas nossas cidades, simplesmente não existe planejamento da expansão urbana. Os proprietários, formais ou informais, fazem o que querem com suas glebas, do jeito que querem.
O conhecimento das vulnerabilidades de cada área é imprescindível para definir quais são as exigências para ocupá-las, que cuidados específicos são necessários, como, por exemplo, obras de drenagem e contenção. Obviamente, tudo isso significa custos e requer investimentos.
Além das obras de engenharia necessárias, a ocupação de determinadas áreas requer também um sistema de gestão de riscos e prevenção a desastres, a fim de evitar mortes e perdas. Isso inclui desde ações básicas – como a coleta de lixo – até esquemas de alerta e evacuação rápida.
Tragédias como esta de Salvador, portanto, podem e devem ser evitadas. Mas isso depende de capacidade de gestão e organização, algo que pouquíssimos municípios e estados possuem. Depois que vem a enchente e o deslizamento de terras, o que não dá é pra simplesmente culpar as vítimas e mandar “tirar o povo de lá!”.
Claro que em algumas situações é necessário remover as pessoas. Mas não se pode fazer isso sem resolver um problema básico: onde elas vão morar? Se essa questão não é equacionada, o resultado é a formação de novas ocupações inadequadas, suscetíveis a deslizamentos. E assim o filme se repete...
O que precisamos, urgentemente, não apenas em Salvador, mas também na maioria das cidades brasileiras, é de planejamento e gestão territorial permanentes, a fim de poupar as vidas de tantas e tantas pessoas que se arriscam porque não têm outra alternativa de moradia.
*Texto originalmente publicado no Yahoo!Blogs.
Raquel é urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.