MPL-SP sobre licitação dos ônibus de São Paulo: “o casamento de Haddad com os empresários”
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- Correio da Cidadania
- 28/08/2015
Após as grandes mobilizações de junho de 2013 em torno do aumento da tarifa do transporte público, que se estenderam por todo o Brasil, a prefeitura de São Paulo foi obrigada a atender mais às demandas de transporte da população. Ficou clara a revolta popular com a situação do transporte: seu preço abusivo, as longas viagens em ônibus superlotados e as inúmeras trocas de ônibus em terminais precários que eram impostas aos moradores das regiões mais distantes da cidade.
Estava prevista para 2013 a realização do processo de licitação do sistema de transporte de ônibus de São Paulo. Neste processo são contratadas as empresas que fornecem este serviço para a população, e nele ficam estabelecidas as regras de funcionamento do transporte por um longo período de 20 anos (e que ainda pode ser prorrogado por mais 20!). Dentre as regras estabelecidas, estão sua organização, a forma de remuneração das empresas que serão contratadas, as suas margens de lucros etc.
No entanto, com as revoltas de junho de 2013, o processo de licitação foi adiado. Como de costume, o poder público trata o problema estrutural dos transportes como um problema pontual, como um dado técnico e não como uma série de escolhas políticas. Transparência da gestão, maior controle da operação das empresas, e uma maior "eficiência" são apresentadas como as únicas saídas para a melhoria do sistema. Porém, sem mudar a lógica que trata o transporte como uma mera mercadoria, sabemos bem que aumento da eficiência se refere somente ao lucro dos empresários: que adianta esta suposta eficiência, se tantos não podem pagar por ela?
Corrigir as “falhas” do sistema transporte público não é uma solução, uma vez que ele continuaria funcionando como hoje: as empresas lucrando às custas do sufoco que passamos todos os dias para nos locomover. Apesar da incessante tentativa do poder público de despolitizar a questão, junho de 2013 nos mostrou que não se trata de uma questão “técnica”, muito menos imutável: a pressão que as manifestações por toda a cidade exerceram foi capaz de reverter o aumento, que a prefeitura insistia em dizer que era irreversível.
Após o cancelamento em 2013 do processo licitatório, foi contratada uma empresa de consultoria, que fez uma auditoria pública do sistema. O objetivo era diagnosticar os problemas técnicos do sistema atual, antes da criação de um novo edital. Vale ressaltar que a auditoria realizada não é confiável, já que tomou como base dados fornecidos pelas próprias empresas concessionárias e que, portanto, não têm interesse em expor as próprias irregularidades e desvios.
A auditoria também não contou com nenhum dado das empresas de vans. Mesmo assim, os resultados foram assustadores! Foi constatado que o lucro médio das empresas para o período anterior foi de 18%, o que em alguns casos chega a ser mais de três vezes o lucro médio das concessões no Brasil: muito maior do que o permitido no contrato.
E o prefeito ainda defende publicamente que esta margem de lucro é justa, insistindo que qualquer redução na tarifa deva ser retirada da saúde e da educação, mas nunca dessa "pequena" margem de lucro dos empresários.
Além disso, foi observada uma grande fraude: as empresas não cumpriam todas as partidas previstas no contrato, deixando menos ônibus circulando na cidade do que a quantidade que se havia planejado. A lógica disso é clara: as empresas recebem sua remuneração pelo número de passageiros transportados e, portanto, lucram com nosso sufoco em ônibus superlotados. E, para piorar, é mais lucrativo para as empresas pagarem as multas estabelecidas (quando pagam) do que colocar carros em circulação.
Apesar dessas constatações, a resposta da prefeitura foi utilizar argumentos "técnicos" para aumentar o valor da tarifa, e arrancar ainda mais dinheiro dos usuários para garantir o lucro dos empresários. Novamente essa decisão escancara o caráter político e não técnico das decisões acerca do sistema de transporte.
Finalmente, no início de julho de 2015, a prefeitura indica que irá publicar o edital da nova licitação de ônibus. Em nome da suposta "eficiência" do sistema, o edital vem para consolidar uma reestruturação dos transportes que já vem sendo feita desde outras gestões. Esta reestruturação se baseia no corte de inúmeras linhas, principalmente na periferia, e tem beneficiado as empresas que lucram mais com o sofrimento da população. Esses cortes se intensificam a cada dia, pois o modelo de transporte que está sendo proposto baseia-se na ideia do sistema tronco-alimentador* (que você pode entender melhor aqui: http://zip.net/bmrTf1).
Sabemos que nossa cidade se organiza a partir de uma lógica segregadora, na qual as trabalhadoras e trabalhadores que constroem a cidade todos os dias são obrigados a morar nas áreas periféricas e deslocarem-se todos os dias até áreas centrais para trabalhar. Essa mesma lógica não permite que essas pessoas aproveitem a cidade que elas mesmas colocam em funcionamento todos os dias, pois não sobra dinheiro nem tempo para viajar até as regiões centrais quando não estão trabalhando.
O corte de linhas só está aprofundando essa situação. O sistema tronco-alimentador que vem sendo implementado se baseia no seccionamento de linhas que fazem o trajeto centro-periferia, ou seja: usuárias e usuários que moram longe do centro e que pegavam um ônibus para ir ao trabalho, hoje são obrigados a fazer uma ou mais baldeações. O trajeto é dividido e, passando por filas imensas entre as linhas “alimentadoras”, que ligam o bairro a um “tronco” (vias onde circulam linhas principais, com maior capacidade e frequência).
A prefeitura defende que o sistema tronco-alimentador aumentaria a velocidade e a eficiência dos deslocamentos ao concentrá-los em grandes vias de trânsito rápido. E, se os usuários seriam obrigados a fazer mais baldeações, eles supostamente seriam compensados por uma diminuição no tempo de deslocamento, devido aos grandes e rápidos ônibus no tronco e a diminuição do trafego nas pequenas vias.
Contudo, até agora a prefeitura tem apenas realizado o corte das linhas que iam direto dos bairros até o centro. Sem aumentar o número de ônibus e de trajetos do sistema “alimentador” e sem criar estruturas que de fato priorizem o transporte público e otimizem seu tempo, as medidas da prefeitura até agora têm apenas obrigado os usuários do transporte público a aumentar seus deslocamentos a pé até as grandes vias (já que muitos tiveram as linhas de seus bairros cortadas) e a esperar mais tempos nas filas dos pontos de ônibus e terminais.
Quem se beneficia com isso? Os empresários do transporte que, diminuindo seus gastos com o corte de linhas, aumentam seus lucros lotando os ônibus e obrigando os usuários a fazer diversas baldeações (rodando diversas vezes suas catracas) até chegarem ao seu destino final.
O tempo que os usuários perdem nas baldeações é maior do que costumavam passar no ônibus que transitava das periferias ao centro. Como sempre, o prejuízo cai na nossa conta. Além disso, esse sistema acaba por aprofundar a lógica da desigualdade social e espacial, pois, não por acaso, ainda fortalece a especulação imobiliária.
Nos últimos anos, os moradores de várias quebradas têm lutado contra esse corte de linhas, que faz com que eles tenham que acordar cada vez mais cedo e chegar em casa cada vez mais tarde.
A forma como isto está presente na licitação é através da criação de 3 "bacias" (ao invés das 9 bacias que existem hoje).
Ao invés dos ônibus serem controlados de acordo com sua área, serão controlados de acordo com o "tamanho" e "importância" de onde passam: a prefeitura planeja que uma empresa criada só para esse fim (chamadas Sociedade de Propósito Específico, que pode ser compostas das mesmas empresas que conhecemos hoje, só que com nomes diferentes) controle todas as linhas que passam por corredores, outra controle só as que ligam os bairros aos corredores e finalmente há mais uma, que controla só as linhas que passam dentro dos bairros. Serão três grandes empresas que controlarão os ônibus da cidade inteira.
E o que acontece com isso é que vamos ter que sofrer ainda mais para chegar nos nossos destinos: como nosso trajeto diário vai ser dividido em três empresas, a única novidade é que vamos ter que pegar ainda mais um ônibus. Um do bairro até o centro do bairro, outro até os corredores e finalmente um nos corredores.
A prefeitura justifica isso como uma forma de centralização e controle do sistema, mas que pelo que vemos não será nada pensado para quem usa o transporte e sim para quem lucra com ele: com a remuneração por passageiro, ou seja, com um repasse de dinheiro feito aos empresários cada vez que a catraca é girada, eles vão ganhar ainda mais, porque teremos que pegar ainda mais um ônibus.
Sem contar que como as partes do trajeto serão administradas de forma separada, a integração será ainda mais difícil. E sabemos quem sofrerá ainda mais com isso: a gente, pagando com nosso dinheiro, tempo e pernas, de tanto andarmos para pegar mais um ônibus.
Outra mudança importante na nova licitação é a forma de remuneração das empresas. O prefeito diz que ouviu os movimentos sociais e propôs uma fórmula complicada que leva em conta o número de passageiros, o custo da linha e a satisfação de usuárias e usuários. De fato, podemos considerar um avanço em relação à remuneração exclusivamente por passageiros que é feita hoje, mas em nada é alterada a lógica do transporte como mercadoria.
A mudança poderia melhorar a situação daquelas linhas com menos passageiros (das que não forem cortadas...), pois passam a ser mais atraentes para os empresários. No entanto, a nova fórmula mantém a lógica de que ônibus com mais passageiros são mais lucrativos, ou seja, lucram mais com o nosso sufoco.
Continua, então, sendo extremamente lucrativo superlotar os ônibus. Isso ocorre porque na conta da remuneração a prefeitura incluiu ganhos com o aumento da "redução de custo por passageiro" (chamada de "ganhos de produtividade" no edital). Mas qual a melhor forma de se reduzir o custo por passageiros em cada viagem? Da mesma forma que hoje, nos espremendo como sardinhas enlatadas!
Assim, os empresários continuam com um estímulo para ganhar seus lucros com nosso sufoco (para além da porcentagem do custo que agora será paga pela prefeitura). O que Haddad parece não ter entendido é que a remuneração por passageiro não faz sentido algum! A não ser que se trate de uma mercadoria e não de um direito fundamental da população. A remuneração deve ser 100% baseada no custo.
As milhares de páginas intraduzíveis produzidas pelos empresários e pela burocracia do poder público para explicar o inexplicável não traduzem os anseios mais profundos da população, não traduzem a humilhação de ir a pé ou pedir carona ou simplesmente não ir pra lugar algum na cidade, pois não se tem dinheiro para pagar por esse direito. Nem sequer explicam porque se deve, afinal de contas, pagar por um direito!
Não explicam por que o empresário do transporte prefere instalar câmeras e mais câmeras em todos os ônibus, do que reduzir o valor da tarifa.
Por isso, seguimos defendendo um sistema de transporte no qual a prioridade seja a liberdade e a possibilidade de todos circularem como bem entenderem pela cidade, e não um malabarismo incessante para mascarar que hoje o nosso direito de ir e vir é só mais um produto no mercado, como um pacote de biscoitos.
Não somos um conjunto de corpos sem nome, gado pra ser levado de casa pro trabalho, do trabalho pra casa.
Defendemos uma mudança radical e ousada no sistema de transportes: defendemos a perigosa ideia de uma cidade onde a vida esteja acima do lucro, e que o direito de ir e vir não seja subjugado em nome do lucro de meia dúzia de burgueses.
Uma cidade só existe pra quem pode se movimentar por ela.
Movimento Passe Livre São Paulo.