Correio da Cidadania

Aos que não toleram ruas ocupadas por pessoas

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País começa, enfim, a restringir uso de automóveis. Em São Paulo, Ministério Público encarna resistência dos que desejam manter cidades aprisionadas a modelo falido.

 

 

No último domingo, mesmo com tempo nublado, muita gente foi aproveitar, em São Paulo, a Avenida Paulista aberta: caminhadas, passeios de bicicleta, piqueniques, brincadeiras e apresentações de música são apenas algumas das atividades que mais uma vez tomaram conta daquele imenso espaço. Essa foi a terceira vez que a via foi fechada para carros e, na semana passada, a prefeitura anunciou que esta será uma política permanente, inclusive em outras regiões da cidade.

 

Diante do anúncio, a Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público Estadual divulgou nota na qual se posiciona veementemente contra a implementação dessa política. A reclamação não surgiu semana passada. Desde a primeira vez que a avenida foi fechada para carros, o MP posicionou-se dessa forma, argumentando que a medida impacta no comércio e na vida das pessoas que residem na região, que faltam estudos e que a população não foi ouvida, e acusando a gestão municipal de adotar medidas radicais. A prefeitura respondeu à nota em seu site.

 

A pérola da nota do MP é a afirmação de que a Avenida Paulista foi “concebida e construída para a circulação de veículos”, como se algum espaço da cidade pudesse ter uma predestinação, uma espécie de “vocação” inexorável para um determinado uso ou forma de circulação, independente e acima das dinâmicas sociais, econômicas e culturais que transformam permanentemente as cidades, gerando novos usos e sentidos. Não fosse assim, enormes áreas antes destinadas para usos industriais que, em momentos anteriores da nossa história econômica requeriam espaços gigantescos de armazenamento de estoques e matéria-prima, não estariam hoje vazias ou subutilizadas.

 

Algumas mudanças, embora repercutindo também alterações no modo de produção das cidades, são induzidas por opções tomadas no âmbito das políticas públicas. Este é tipicamente o caso das políticas de mobilidade urbana. Isso ocorreu na cidade de São Paulo, e em várias cidades do Brasil, por exemplo, nos anos 1930, quando o sistema de circulação por bondes e trens, que tinha hegemonia sobre os demais na cidade, foi sendo radicalmente substituído por sistemas sobre pneus: automóveis, caminhões e ônibus.

 

Essa opção, absolutamente sintonizada com a entrada nos anos 1950 da indústria automobilística no país, ganhou total precedência sobre as demais, transformando não apenas os modos de circular, mas também a própria organização do espaço da cidade. Mas podemos dizer que esse modelo hoje está em crise: primeiro, porque o congestionamento condena a cidade à imobilidade, mas também porque é um modelo que implica em perdas ambientais e de saúde humana que têm custado muito aos cofres públicos e mais ainda às pessoas...

 

O que está em jogo nessa crise não é simplesmente o embate entre modelos de mobilidade e de cidade. Se hoje o carro é o modelo hegemônico – não pela quantidade de usuários, mas pelo espaço que ocupa e pela forma como interfere na produção da cidade –, em outras épocas foi o bonde, a carruagem, o cavalo... Neste caso, porém, o que está em jogo nas opções de políticas é a manutenção, ou não, de um modelo que tem uma particularidade em relação aos demais: ele mata.

 

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, anualmente, 1,25 milhão de mortes são causadas por acidentes de trânsito no mundo. No Brasil, são 47 mil. Estamos num grupo de 68 países que nos últimos três anos viram suas taxas de morte no trânsito aumentar: passamos de 18,7 mortes por 100 mil habitantes para 23,4. Sem contar os graves problemas de saúde decorrentes da poluição, hoje diretamente relacionada à queima de combustíveis fósseis por carros, ônibus e caminhões, que já têm levado muitos países a adotar medidas de restrição ao uso do carro para promover melhorias na qualidade do ar.

 

Quando a Avenida Paulista foi aberta, em 1898, seu desenho havia sido pensado para a circulação de bondes e carruagens. Nos anos 1970, ela foi redesenhada para os automóveis, mas, naquela época, os impactos negativos decorrentes dessa opção não eram conhecidos. Hoje, diante das evidências, estamos vivendo um momento que exige de nós fazer uma escolha: continuar tudo como está ou, mais uma vez, como já ocorreu em outras ocasiões na história da cidade, repensar os modelos e modos de circulação e os desenhos da cidade.

 

Como todo momento de inflexão, há perdas e ganhos, e os beneficiados pelo modelo anterior perderão. É compreensível que uma reação conservadora se apresente diante das propostas de mudança. Mas é uma obrigação – e não somente uma opção – do poder público municipal se posicionar diante da questão. E é exatamente isso o que a prefeitura, legitimamente, está fazendo neste momento, ao experimentar novos modos de circular e de usar a cidade, voltados para a proteção da vida e a saúde física e mental dos seus moradores.

 

 

Por Raquel Rolnik, em seu blog.

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