Produtores rurais declaram guerra aos índios
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- Egon Heck
- 17/11/2008
Um tanto atônito e perplexo olho atentamente a manchete. Por instantes pensei estar sendo traído pela visão. Os olhos escorregam rapidamente para a imagem logo abaixo. Uma senhora com expressão de ódio, envolta na bandeira nacional, diante de microfones. Inicialmente pensei que se tratava de uma chamada do início do século 19, ditada pelo rei de Portugal refugiado no Brasil, declarando guerra justa aos índios que estavam atravancando o progresso da colônia. Logo percebi o engano. Olhei então a data do jornal – 12 de novembro. Cenário: Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul.
O tom provocativo e virulento não é casual ou gratuito. Quando a autora de tais disparates afirma "Nós derramaremos até o último sangue nosso, mas nós vamos defender o que é nosso... Não podemos entregar nosso Brasil aos guerrilheiros do passado que hoje se postam de heróis" (Correio do Estado, 13/11/08, pág. 11) nada mais está fazendo do que falando em causa própria, pois grande parte das terras da Terra Indígena Nhanderu Marangatu, já homologada pelo presidente Lula, continuam ocupadas por parentes da mesma.
Disparates e acusações são lançados à opinião pública sem a menor preocupação com a verdade. Prova disso é que se classificou de "audiência pública" o "seminário regional" de debate sobre o Estatuto dos Povos Indígenas. "Para o deputado Azambuja o que se busca aprovar são ‘muitos direitos e poucos deveres’ à classe indígena que está sendo manipulada por interesses escusos...".
Lágrimas da impunidade
Ao redor da cruz onde foi assassinado Dorvalino Rocha, liderança Kaiowá Guarani de Nhanderu Marangatu, centenas de indígenas participantes da Aty Guasu da luta pela terra e da memória dos que tombaram na defesa dos direitos de seu povo, fizeram seu ritual. Pressionado contra a cruz o cartaz com a imagem do Nhanderu Hilário Fernandes, que recentemente foi morto por atropelamento, próximo desse local, lágrimas começaram a rolar pela face de vários de amigos e familiares das vítimas da violência. Lágrimas silenciosas de indignação contra a violência e a impunidade reinante.
O retrato de Marcia de Souza foi colocado as pés do xiru (uma espécie de altar em torno do qual se praticam os rituais), e se fizeram uma série de rituais jeroki, lembrando a memória do grande líder e pedindo forças para continuar a luta da terra pela qual ele deu sua vida. A filha de Marçal, Edna de Souza, não conteve a emoção da homenagem ritual da memória de seu pai, estando os assassinos impunes. Uma lágrima de dor e revolta rolou tênue sobre sua face. No local onde o guerreiro tombou, cresce hoje um pé de goiaba. "É sinal de que ele não morreu", comenta uma liderança. Durante o ritual foi lido o belo poema do cineasta Joel Picini "O banguela dos lábios de mel". Nele o poeta diz "Apesar de estar exilado no meu próprio chão, eu ainda sou índio...apesar de ser vagabundo por opção, incapaz de acumular, eu ainda sou índio...Apesar de comer milho e ser humilhado, comer mandioca e ser ensopado, eu ainda sou índio.."
A Aty Guasu foi realmente um dos momentos mais fortes dos últimos tempos, em que se buscou unir todas as forças acumulados em séculos de resistência e afirmação do projeto Guarani, sob a inspiração da busca da "terra sem males".
Avá Apykaverá, que há poucos dias havia chegado da viagem a países da Europa para falar da realidade do povo Kaiowá Guarani, agradecer a solidariedade de tantos povos e solicitar seu apoio para acabar com a violência que se abate sobre suas comunidades e garantir os direitos constitucionais, especialmente à terra, estava muito satisfeito. De Budapest a Nhanderu Marangatu a fala foi a mesma – a luta de seu povo pela terra, vida e futuro.
Na manchete de hoje, mais uma vez uma grande chamada de capa "Ex-guerrilheiros manipulam indígenas", mostra bem a intencionalidade de repetir o feito da campanha do Estadão em 1988, para tentar impedir os direitos indígenas na Constituição.
Enquanto isso a Funai encaminhou uma representação contra os autores de agressões aos povos indígenas estampada no jornal com "Produtores rurais declaram guerra aos índios", e ao mesmo tempo a tentativa do grupo de manifestantes do agronegócio de invadir o espaço da realização do Seminário do Estatuto dos Povos Indígenas.
No caminho do diálogo
Em Campo Grande, enquanto a coordenadora da ONG Recovê tomava a tribuna dizendo falar em nome de " três entidades representantes da classe produtora do Estado – Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul, (Acrisul), Movimento Nacional de Produtores (MNP) e Sociedade de Defesa do Pantanal(Sodepan) -, em Dourados, representantes do Ministério Público, políticos, representantes da Famasul, lideranças indígenas, representantes do Cimi e da Diocese de Dourados, por intermediação de D. Redovino, sentavam numa mesa de conversação num diálogo que ajudasse a superar determinadas barreiras e mal entendidos. Foi considerado um momento histórico. "Pela primeira vez, todas as partes envolvidas na demarcação das terras indígenas foram consultadas sobre o assunto...O encontro foi um marco histórico, pois nunca a Igreja tinha promovido um encontro com todos os setores envolvidos no problema", observou o vereador Eduardo Marcondes." (O Progresso, 12/11/08) . Esse tem sido uma prova cabal da disposição manifesta dos índios e seus aliados de considerar "o diálogo como melhor caminho". Uma atitude oposta às intimidações e terrorismo da mentira, utilizada por setores anti-indígenas.
Teodora Kaiowá Guarani também falou da importância do momento, por ser essa a primeira vez que isso acontece em Dourados "Nós sempre acreditamos e esperamos esse diálogo. Somos pessoas que tem sabedoria e direitos diferenciados. O que nós não queremos mais é sofrer levando pauladas de todos os lados".
No final do encontro ficou definido a constituição de uma Comissão para dar continuidade a esse processo de diálogo, já tendo definido a próxima reunião para início de dezembro.
Egon Heck, Cimi/MS.