Juiz acusado por escravidão interfere em caso de escravagista
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- Bianca Pyl, Repórter Brasil
- 14/01/2009
O juiz Marcelo Testa Baldochi, da Comarca de Bons Pastos (MA), e o pecuarista Miguel de Souza Rezende são acusados pelo crime de reduzir trabalhadores à condição análoga à de escravo. Em substituição à juíza titular da Comarca de Senador La Rocque (MA), o magistrado envolvido com trabalho escravo tomou uma decisão que, segundo a promotora Raquel Chaves Duarte Sales, acabou atendendo aos interesses do fazendeiro Miguel, réu em processo de exploração de mão-de-obra escrava.
Incluído em 29 de dezembro de 2008 na "lista suja" do trabalho escravo - cadastro federal que reúne os empregadores envolvidos com esse tipo de crime -, Marcelo remeteu novamente o processo de Miguel à Justiça Federal, mesmo depois de uma longa novela de idas e vindas entre tribunais e do posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF), órgão máximo do Poder Judiciário, pelo julgamento do referido caso na esfera estadual.
O despacho do juiz Marcelo, datado de 25 de janeiro de 2008 - quando ele substituía a titular da Comarca de Senador La Rocque (MA), Ana Beatriz Jorge de Carvalho Maia -, foi um grave erro, na opinião da promotora Raquel Chaves Duarte Sales, do mesmo município.
A mais nova mudança para a esfera federal causará prejuízo processual, de acordo com Raquel. Principalmente porque Miguel de Souza Rezende está com 76 anos e o caso pode prescrever, como já ocorreu em outro processo decorrente de fiscalizações do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) ocorridas nas propriedades do acusado em 1996 e 1997. O juiz da Comarca de João Lisboa (MA), Flávio Roberto Ribeiro Soares, extinguiu, em abril de 2005, a punibilidade contra o fazendeiro com relação às infrações da década de 90.
A pena máxima por trabalho escravo, previsto no Art. 149 do Código Penal, é de oito anos de prisão. A legislação estabelece que crimes com pena máxima de até oito anos prescrevem em 12 anos; para os maiores de 70 anos, esse prazo cai pela metade (seis anos). O tempo transcorrido entre a fiscalização que deu início ao processo anterior até a denúncia na Justiça Estadual foi de sete anos e cinco meses. O atual processo contra Miguel de Souza Rezende diz respeito à fiscalização de 2001. "É interessante para a defesa manter o processo de um lado para outro. Não cabia nesse momento mandar os autos novamente para a instância federal", completa a promotora Raquel.
Em 8 de setembro de 2008, Raquel entrou com um pedido de reconsideração para que a decisão fosse revogada. A juíza titular de Senador La Rocque (MA), Ana Beatriz, acatou o pedido da promotora e convocou audiência para ouvir testemunhas em novembro do ano passado.
Contratado por Miguel de Souza Rezende, o advogado Fábio de Oliveira Rodrigues entrou, porém, com um pedido de habeas corpus para que o caso fosse julgado pela Justiça Federal. Vale lembrar que no início do processo, a defesa encaminhara uma solicitação exatamente no sentido inverso, pedindo para que o caso saísse da esfera federal para ser analisada pela Justiça Estadual. Mesmo assim, o desembargador Raimundo Nonato Magalhães Melo concedeu a liminar que suspendeu a audiência do processo. Contudo, a 1ª. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Maranhão decidiu por unanimidade, na sessão desta terça-feira (13), negar o pedido de habeas corpus e o processo deve ser mantido na Justiça Estadual.
Idas e vindas
O processo em que o pecuarista é réu foi protocolado pelo Ministério Público Federal (MPF) em janeiro de 2002, em decorrência de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Antes de qualquer interrogatório, os advogados de Miguel entraram com um pedido de habeas corpus pedindo para que o caso fosse julgado pela Justiça Estadual. Naquela ocasião, o juiz federal Mauro Rezende de Azevedo aceitou a liminar e o processo foi remetido para a Justiça Estadual do Maranhão, que promoveu os primeiros interrogatórios. O MPF recorreu da decisão ao STF via o Recurso Extraordinário 466508/MA.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ser competência da Justiça Federal julgar crimes de redução à condição análoga à de escravo em novembro de 2006. Por conta disso, o caso foi novamente enviado para a esfera federal, em 1º de janeiro de 2007. Novas contestações, porém, culminaram no pronunciamento específico do STF sobre a questão.
Em 2 de outubro de 2007, o ministro Marco Aurélio Mello determinou que o processo contra Miguel de Souza Rezende era um "simples descumprimento de normas de proteção ao trabalho", portanto, não era de trabalho escravo, crime que "pressupõe o cerceio à liberdade de ir e vir". Com isso, o STF decidiu pela incompetência da Justiça Federal para julgar o caso e, outra vez, o processo retornou para o Maranhão.
O juiz Marcelo decidiu pela devolução do processo à instância federal, contrariando a recomendação do ministro Marco Aurélio, do STF. "A decisão de Dr. Baldochi conturbou a marcha do processo. A competência já havia sido definida pelo Tribunal Regional Federal 1º Região e pelo STF. O fato do MPF ter recorrido não criou obstáculos para o andamento do processo porque o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo", explica a promotora.
A promotora de Senador La Rocque (MA) lembra também das dificuldades para reunir todas as testemunhas e os próprios fiscais do MTE que autuaram o pecuarista Miguel compareçam às audiências. "Quando conseguimos a presença de todos, essa decisão que atrasará o caso foi tomada".
Consultado pela Repórter Brasil, Marcelo afirma que a sentença apenas e tão-somente preservou o processo. "A decisão cuidava do deslocamento da competência para julgamento do processo da Justiça Estadual para a Justiça Federal, nos termos do art. 109 da Constituição Federal e reiterada orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal". O juiz disse ainda que a continuidade do caso na instância estadual poderia gerar sua nulidade absoluta. "Não houve nenhum juízo de valor quanto ao mérito da questão".
Coincidência
Acusados pelo crime de trabalho escravo, o juiz Marcelo Testa Baldochi e o pecuarista Miguel de Souza Rezende têm outra coisa em comum. Ambos contrataram os serviços do escritório Advogados Associados Fabiano, Fábio & Fabiano - de Fabiano de Cristo Cabral Rodrigues, Fábio de Oliveira Rodrigues e Fabiano de Cristo Cabral Rodrigues Júnior - para defendê-los na Justiça.
Marcelo sustenta que Fábio de Oliveira Rodrigues, que defende diretamente Miguel de Souza Rezende, "não é o que milita" na defesa dos processos que o magistrado responde no Tribunal de Justiça do Maranhão. Ocorre que todos os sócios do escritório de advocacia constam no processo do pecuarista Miguel, inclusive os nomes daqueles que defendem Marcelo. A Repórter Brasil entrou em contato com o advogado Fábio, que não quis conceder entrevista.
A promotora Raquel Chaves Duarte Sales ficou surpresa quando tomou conhecimento do fato durante uma audiência. "Estava conversando com o advogado Fábio de Oliveira Rodrigues sobre a postura de Baldochi durante o processo, no qual me pareceu parcial com o réu. E ele (Fábio) defendia a postura do juiz. Então o questionei, sem saber, se ele era advogado de Baldochi também. E sem nenhuma ressalva ele me disse que sim".
Históricos
Miguel de Souza Rezende responde na Justiça pelo crime de exploração de pessoas em condições análogas à escravidão na Fazenda Rezende, em Senador La Rocque (MA). Os crimes cometidos na propriedade em 1996 e 1997 já prescreveram e o processo atual foi instaurado por causa do flagrante de trabalho escravo em 2001. Em 2003, os fiscais encontraram novamente 65 pessoas escravizadas na mesma área. O nome de Miguel já foi incluído três vezes na "lista suja" do trabalho escravo.
O fazendeiro também é proprietário da Fazenda Zonga, localizada dentro da Reserva Biológica (Rebio) de Gurupi. Durante a operação de 1996, foram libertadas ao todo 52 pessoas das Fazendas Rezende e Zonga. Um ano depois, em outubro de 1997, as mesmas fazendas passaram por vistoria do grupo móvel, tendo sido libertados mais 32 trabalhadores. Também houve reincidência do crime na Fazenda Zonga em 2001 e 2003.
Já a Fazenda Pôr do Sol, do juiz Marcelo Testa Baldochi, foi fiscalizada em setembro de 2007. No local, o grupo móvel do MTE) encontrou 25 pessoas - entre elas um adolescente de 15 anos - em condições análogas à escravidão. O juiz foi denunciado pelo Ministério Público do Maranhão por crime de trabalho escravo. A denúncia foi protocolada pelo procurador-geral da Justiça, Francisco das Chagas Barros de Sousa.
Os alojamentos da Fazenda Pôr do Sol, localizada no município de Bom Jardim (MA), eram precários e a alimentação era inadequada. Não havia água potável e nem equipamentos de proteção individual (EPIs). Na ocasião, foram constatadas ainda outras irregularidades como sonegação previdenciária, porte ilegal de armas, motosserras sem registros e crimes de ordem ambiental. De acordo com os trabalhadores, o juiz orientara o grupo para dizer à fiscalização que estavam ali como posseiros no plantio de roça, numa tentativa de descaracterizar o crime e burlar a ação fiscal.
O juiz, que na ocasião atuava como titular da 2ª Vara Criminal de Imperatriz (MA), pagou R$ 32 mil aos trabalhadores vindos dos municípios de Alto Alegre do Maranhão (MA), Codó (MA) e Buriticupu (MA). Ele assinou também um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT) para a melhoria das condições na Fazenda Pôr do Sol.
Por conta da denúncia de trabalho escravo, o Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do Maranhão (Sindjus-MA) apresentou um pedido de providências ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que foi negado pelo conselheiro Técio Lins e Silva. Diante da recusa, o Sindjus protocolou um mandado de segurança junto ao STF para que o CNJ, órgão máximo de controle externo do Judiciário, avalie o caso de Marcelo Testa Baldochi.
O processo de vitaliciamento do juiz do Maranhão foi suspenso por decisão do Tribunal de Justiça estadual. Marcelo aguarda o julgamento final do mandado de segurança que suspendeu seu benefício. Ele - que chegou a ser afastado por ter descumprido determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em outra decisão no município de Benedito Leite (MA) - questiona o direito a voto, no seu processo, de desembargadores que possuem filhos na magistratura.