''O projeto de Belo Monte deve ser abandonado'', entrevista com Francisco Hernandez
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- Andrea
- 23/10/2009
Um painel formado por 40 especialistas – entre engenheiros, sociólogos, antropólogos, biólogos, ecólogos, cientistas políticos – acaba de lançar um documento analisando o projeto hidrelétrico de Belo Monte, cujo leilão, segundo o governo federal, sai em novembro deste ano. Um dos coordenadores desse painel é o engenheiro elétrico Francisco Hernandez. Ele concedeu a entrevista à IHU On-line, por telefone, onde afirma que "os problemas identificados são de várias ordens. Alguns foram identificados na própria metodologia em que estudos foram feitos no EIA/Rima, ou seja, problemas de subestimação da população atingida e das consequências sobre a biodiversidade da região", afirma.
Francisco Del Moral Hernandez é pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo. É graduado em Engenharia Elétrica pela Universidade Estadual de Campinas e mestre em Energia pela USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor é um dos coordenadores do grupo de 40 especialistas que acaba de lançar um estudo analítico sobre projeto hidrelétrico de Belo Monte. Como esse grupo se organizou e qual é a sua composição técnica?
Francisco Hernandez – A origem desse trabalho veio de uma demanda do movimento Xingu Vivo para Sempre que foi o mesmo grupo que fez aquele evento em maio de 2008, na cidade de Altamira. Então, foi uma demanda dos movimentos sociais de Altamira no sentido de realizar uma pesquisa aprofundada do estudo de impacto ambiental de Belo Monte.
Temos 42 pesquisadores de várias universidades brasileiras, fizemos um conjunto de 22 pareceres que compõem o documento. Nesse grupo, existem engenheiros, sociólogos, antropólogos, biólogos, ecólogos, cientistas políticos. Ou seja, uma grande variedade de disciplinas.
Quais são as principais conclusões do Estudo sobre o projeto hidrelétrico de Belo Monte?
Os problemas identificados são de várias ordens. Alguns foram identificados na própria metodologia em que estudos foram feitos no Estudo de Impacto Ambiental, ou seja, problemas de subestimação da população atingida e das consequências sobre a biodiversidade da região. Um aspecto que nos chama muito a atenção é que existe uma região da Volta Grande do Xingu, jusante da barragem principal, que é desconsiderada do EIA/Rima. Essa é a região chamada de trecho de vazão reduzida. Cerca de 3/4 desta região ficaria submetida a uma escassez hídrica muito drástica. Associado a isso, existem todos os problemas da perda da biodiversidade dessa região que é considerada uma das maiores biodiversidades do mundo. E existem as consequências sociais sobre as populações que residem naquela região e teriam seus modos de vida drasticamente modificados pela diminuição do lençol freático, dos níveis de água e vazão desse trecho de rio.
Essa região foi negligenciada pelo Estudo de Impacto Ambiental que considerou como populações atingidas apenas aquelas que teriam suas terras alagadas ou afetadas pela construção física dos canteiros de obras, diques e barragens. Essa lacuna no Estudo de Impacto Ambiental precisa ser retificada, são problemas que deveriam ser reparados.
Dentre as várias conclusões, qual delas o senhor considera a mais impactante?
As apontadas acima são gravíssimas porque é um desrespeito a uma região de biodiversidade tremenda na Volta Grande. Existem outros aspectos que chamam a atenção e nos preocupam. Por exemplo, em termos técnicos, a potência instalada na Usina de Belo Monte está muito aquém da energia que poderia ser efetivamente gerada em função da dinâmica do próprio rio Xingu. Como todos nós sabemos, o rio Xingu tem uma dinâmica hidrológica que flutua muito durante o ano. Existem períodos em que a vazão é de 25 mil metros cúbicos por segundo, mas pode ir para 400 metros cúbicos por segundo. Existe a possibilidade real de que em algumas épocas do ano essa diferença aumente ainda mais. Com isso, teríamos uma situação em que a casa de força principal não teria vazão suficiente para turbinar toda sua potência instalada. Existe um problema de uma ociosidade operativa que nos preocupa.
O movimento social considera o projeto economicamente, socialmente e ambientalmente devastador. Qual dos três fatores [social, econômico e ambiental] o senhor considera o mais grave?
Nós fizemos uma leitura sobre o Estudo de Impacto Ambiental. Nos primeiros volumes dele, aparecem considerações mais técnicas. Nós nos debruçamos sobre isso e identificamos vários problemas. Nós também nos debruçamos sobre aspectos de levantamento de problemas socioambientais. Um exemplo: essa obra estaria localizada numa região de biodiversidade muito grande. No interior da Volta Grande do Xingu está prevista a construção de três canais e a formação de cinco represas. Tudo isso numa região onde existe agricultura, pecuária e um grande número de igarapés que são o sustentáculo dos modos de vida dessas populações. O conjunto do volume de escavação dessa obra é semelhante dos volumes retirados e movimentados para a construção do Canal do Panamá. Isso é real. Esse conjunto de obras civis nessa região proporcionaria consequências muito graves sobre as populações ali residentes. Existe, portanto, uma subestimação da população atingida. Normalmente, pelos critérios da Eletrobrás, a população atingida seria aquela que teria suas terras alagadas. Esse é um conceito tradicional da história da energia brasileira. É como se houvesse, do início ao fim do Estudo de Impacto Ambiental, uma justificativa de que Belo Monte é uma das obras hidrelétricas com menor impacto socioambiental na história de construção de barragens do Brasil. E isso não é verdade.
A hidrelétrica é considerada indispensável pelo governo para garantir a oferta de energia para a expansão da economia brasileira. Como o senhor responde a essa afirmação?
Essa ociosidade operativa da usina é um problema. Como podemos pensar numa usina que tem 11 mil megawatts de potência instalada e que oferece, em termos de potência média, o equivalente a 1400 megawatts, de acordo com simulações feitas em 2003 pela Unicamp? Se o problema é a oferta de energia, a usina de Belo Monte não será capaz de atender essa potência instalada. Por isso, alertamos que a usina de Belo Monte é um convite a barramentos futuros, mesmo que o Conselho Nacional de Política Energética tenha dito que não serão feitos mais barramentos no rio Xingu. Nós temos uma folga, em termos de planejamento energético, que nos permite pensar o planejamento energético sob uma ótica de uma avaliação da demanda por energia. Temos a possibilidade de pensar o planejamento energético não unicamente como o atendimento ou aumento ou expansão da oferta.
Há unanimidade entre os especialistas de que a hidrelétrica é desnecessária? Quais são as alternativas propostas?
O painel de especialistas analisou os vários volumes do EIA/Rima. Todos os pareceres são no sentido de caracterizar a obra como grande equívoco. É claro que cada um se debruçou sobre a sua especialidade. Então, eles, em geral, alertaram que Belo Monte alterará a dinâmica do rio Xingu e, com isso, a dinâmica da vida das espécies, as relações humanas que se servem dessas espécies. A conclusão em cada uma das especialidades dá um recado: Devemos abandonar essa ideia do projeto de Belo Monte.
Nos primeiros volumes do estudo de impacto ambiental existe, teoricamente, o espaço para os empreendedores mencionarem e descreverem alternativas à obra. Mas os empreendedores também falam que, diante do estrangulamento que o Brasil vive, o projeto de Belo Monte é necessário.
O Estudo será objeto de debate com o governo?
Nós produzimos o formato final dentro daquele período de 15 dias úteis após a audiência pública, protocolamos junto ao IBAMA e recebemos com estranheza a notícia de que Roberto Messias, presidente do Ibama, afirmou que nenhum questionamento tinha sido feito após as audiências públicas, e solicitamos uma retificação dessa informação. O IBAMA, como um instituto que está se debruçando sobre o processo de licenciamento, tem em mãos este questionamento. Nós colocamos em várias redes, oferecemos publicamente o release, o resumo executivo e o relatório completo, e estamos fazendo nossos debates de público. Também protocolamos o documento junto ao Ministério Público Federal de Altamira para que acompanhe esse processo no sentido de que o IBAMA dê respostas aos questionamentos que colocamos. Também fizemos uma reunião com o presidente Lula em que alguns desses alertas foram identificados. Nós temos a expectativa de fazer mais divulgações especificamente na região afetada diretamente e de divulgar esses resultados junto ao movimento social e entidades ambientalistas. Esperamos que, com a divulgação pública dos nossos estudos, consigamos deixar essa discussão um pouco mais ampla e colocá-la no debate público.