Correio da Cidadania

Trabalhadores rejeitam Ato Médico e defendem autonomia das profissões

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A tramitação do projeto de lei que institui o chamado Ato Médico vem causando polêmica entre os profissionais da saúde. Defendida pelos médicos, a medida regulamenta a profissão e, de acordo com a classe, significará um acréscimo de qualidade nos atendimentos. Por outro lado, 13 categorias, que estão unidas contra a proposta, garantem que o projeto retira a autonomia das demais profissões e será prejudicial para toda a população.

 

No dia 9, estudantes e trabalhadores não-médicos participaram de mobilizações pelo Dia Nacional de Luta contra o Ato Médico. Realizadas em 18 estados, as atividades incluíram atos, caminhadas, apresentações culturais e palestras, a fim de demonstrar o descontentamento dos manifestantes com o projeto de lei.

 

Apresentado no Senado, o PL nº 268/2002 (PLC nº 7703/2006) atende a uma resolução do Conselho Federal de Medicina e propõe a regulamentação da profissão de médico (a última das áreas da saúde a ser regulamentada), estabelecendo quais atividades serão exclusivas da categoria e quais poderão ser realizadas por outros profissionais.

 

Em outubro de 2009, o projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados e retornou ao Senado, onde aguarda para ser votado em plenário.

 

De acordo com o texto aprovado na Câmara, passariam a ser atividades privativas dos médicos a formulação do diagnóstico de doenças, a prescrição de tratamentos e de procedimentos invasivos (quando envolve a introdução de um equipamento ou dispositivo no paciente para medições, avaliações ou recolhimento de amostras), entre outras funções.

 

Seriam também exclusividade a direção e a chefia de serviços médicos, o ensino de disciplinas especificamente médicas e a coordenação dos cursos de graduação em Medicina, de programas de residência médica e de cursos de pós-graduação específicos para médicos.

 

Crítica

 

Os profissionais da área de saúde não-médicos, porém, defendem que a medida prejudica a autonomia e interfere no trabalho das demais categorias. A presidente da Federação Nacional de Psicólogos (Fenapsi), Fernanda Magano, explica que o Ato Médico impede que os profissionais exerçam suas funções em suas respectivas áreas de conhecimento, que já foram inclusive regulamentadas por leis anteriores.

 

"A gente reconhece a importância dos profissionais médicos, de regulamentarem a profissão deles, mas desde que não interfiram nas demais profissões ferindo a autonomia dos profissionais", afirma.

 

A conselheira do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) e coordenadora do Fórum dos Conselhos Profissionais da Área da Saúde, Andrea Porto da Cruz, também critica o projeto de lei que, segundo ela, levará a um controle de todas as atividades pelo médico.

 

No caso da enfermagem, por exemplo, o enfermeiro não poderá mais realizar qualquer procedimento sem a determinação de um médico, mesmo serviços simples como curativos ou verificação de temperaturas. O serviço de triagem nos pronto-socorros, a fim de diagnosticar doenças graves como tuberculose ou hanseníase, também só poderá ser realizado por médicos.

 

"Isso leva a controle e manipulações, centralizando as ações dos profissionais no médico", acusa Andréa. "Esse PL é totalmente arbitrário, centralizador e burocrático; desarticula e desorganiza todo um sistema de saúde", completa a enfermeira.

 

Já a presidente da Fenapsi cita a acupuntura (técnica milenar chinesa que consiste no estímulo de pontos determinados da superfície da pele, com o uso de agulhas finas) para exemplificar a arbitrariedade da medida. Apesar do projeto de lei não se referir especificamente à acupuntura, a expectativa é de que o tratamento possa ser realizado somente por médicos, por utilizar um procedimento invasivo.

 

Fernanda lembra, porém, da existência de resoluções que consideram a acupuntura compatível com a psicologia e também com a fisioterapia. No Brasil, segundo a Associação Brasileira de Acupuntura, somente cerca de seis mil (20%) dos 30 mil profissionais da saúde que lidam com a técnica são médicos.

 

"A medicina, por muito tempo, marcou que essa questão do acupunturismo não era uma ciência e não deveria ser considerada pela medicina, e hoje eles defendem que vire atividade privativa do médico", recorda a psicóloga, que vai além: "E muitas vezes aquele chinês que tem um curso de formação pode estar muito mais habilitado do que um profissional médico ou psicólogo", afirma.

 

Filas

 

Os profissionais não-médicos asseguram que as mudanças afetarão diretamente a população, com o aumento dos custos, sobretudo no sistema privado de saúde. Com uma possível aprovação da lei do Ato Médico, o paciente não poderia mais ir diretamente ao profissional que escolher, como um nutricionista ou psicólogo. Teria, antes, que passar por um médico, encarecendo os tratamentos e os próprios planos de saúde. "O que se fazia antes em uma consulta agora vai precisar de duas ou três", salienta a conselheira do Coren-SP.

 

Em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS), o aumento do tempo de espera pelas consultas é apontado como uma das conseqüências mais graves. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgado em 2008 apontava que, no Brasil, existe um médico para cada 595 habitantes. A média é quase o dobro da mundial (300) e três vezes maior que a de Cuba (169).

 

"Hoje já tem uma série de problemas de encaminhamento, e essa passagem necessária e obrigatória por um consultório médico vai aumentar ainda mais as filas e o déficit na atenção", alerta Fernanda.

 

"Se é complicado falar em Ato Médico em São Paulo, imagina falar isso onde não tem médico, onde os partos ainda são realizados pelas parteiras porque não tem médico", complementa Andréa.

 

Multidisciplinaridade

 

A aprovação do projeto, de acordo com os profissionais não-médicos, prejudicará principalmente a lógica da multidisciplinaridade, que vem sendo implantada no SUS nas últimas décadas. A combinação de todos os saberes e a integralidade na assistência está garantida na própria Lei Orgânica da Saúde, lei 8080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, além de organização e funcionamento dos serviços.

 

"(Com a aprovação da lei) a gente volta para uma lógica de especialidades e para um cenário que há muito tempo se tornou extemporâneo, onde tem a especialidade médica e as demais profissionais de saúde são consideradas como paramédicas, quase como uma questão complementar", afirma Fernanda.

 

A situação dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), dedicados ao atendimento de pacientes com transtornos mentais, é uma situação emblemática. De acordo com a presidente da Fenapsi, essas unidades sofrem hoje com um déficit de psiquiatras que, em geral, optam por atender na rede particular. Com o Ato Médico em vigor, o tempo de espera por uma consulta médica deve se alongar, obstruindo o acesso do paciente a outras áreas como terapia ocupacional e serviço social.

 

"Com essa determinação, vai ter uma dificuldade desse paciente portador de um transtorno mental de acessar a rede de atenção multidisciplinar, porque ele necessariamente vai ter que ficar aguardando a consulta psiquiátrica para depois se envolver nas demais áreas e ter um cuidado com a sua saúde mental", detalha Fernanda.

 

Patrícia Benvenuti, Brasil de Fato.

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