MPF abandona júri do assassinato de cacique após Justiça negar oitivas na língua Guarani-Kaiowá
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- Andrea
- 05/05/2010
O Ministério Público Federal abandonou o júri do assassinato do cacique Marcos Veron após declarar-se categoricamente contra a decisão da juíza Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Federal Criminal de São Paulo, que impugnou, a pedido da defesa dos réus, o tradutor que havia sido designado para atuar na sessão. Na terça-feira (04) seriam ouvidas outras vítimas do ataque de funcionários da Fazenda Brasília do Sul, em Juti, Mato Grosso do Sul, a um grupo de indígenas que ocupavam o local. O ataque, ocorrido em 2003, resultou na morte do cacique, espancado até a morte.
A maioria das vítimas e testemunhas de acusação designadas são indígenas da etnia Guarani-Kaiowá e, segundo o MPF, desejavam expressar-se na língua guarani. Após o indeferimento do tradutor, iniciou-se longo debate entre defesa e acusação e a presidente do júri. O MPF vai recorrer ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região para que os índios envolvidos no processo possam se expressar em sua própria língua.
O MPF e a assistência da acusação requereram que a primeira pergunta dirigida a cada vítima e testemunha fosse feita em guarani-kaiowá e que, nessa língua, perguntassem como a vítima ou a testemunha desejariam se expressar, mas a juíza indeferiu o requerimento e decidiu perguntar, em português, em que língua vítimas e testemunhas gostariam de ser ouvidos. A tradução foi deferida apenas parcialmente e só seria usada se o indígena respondesse, em português, que preferiria se expressar em guarani.
Diante da negativa da juíza, o MPF se manifestou categoricamente contrário a esta decisão e abandonou o plenário. Sem Ministério Público, responsável pela busca da verdade real, não há júri e a juíza suspendeu a sessão. O procurador da República Vladimir Aras, um dos dois membros do MPF especialmente designados pelo Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, para atuar no caso, lamentou a decisão que foi obrigado a tomar.
"Em 17 anos de júri esta é apenas a segunda vez que abandono o plenário, mas não poderia aceitar que, justamente num júri, o direito fundamental de se expressar em sua própria língua fosse negado. Tribunal do Júri não é lugar para restrição de Direitos", afirmou Aras logo após o cancelamento da sessão.
"É direito deste índio e de todos que estão aqui de falar o idioma Guarani", disse o procurador. "Obviamente, falar Guarani, para eles, é mais fácil que o português, ainda mais que vários deles não tiveram educação formal bilíngue", acrescentou.
O direito a que uma minoria étnica se expresse em sua própria língua, ainda que esta não seja a majoritária em um país, é assegurado pelo Pacto Iinternacional dos Direitos Civis e Políticos, assinado em Nova York, em 1966, e ratificado pelo Brasil. A Constituição de 1988 também garante esse direito aos indígenas. Nestes casos deve ser providenciado tradutor para o entendimento do júri e das demais partes.
O artigo 27 do Pacto de NY prevê: "Nos estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua".
O filho do cacique Marcos Veron, Ládio Veron Cavalheiro, 44 anos, que foi sequestrado, agredido e quase queimado vivo no ataque dos funcionários da Fazenda Brasília do Sul ao acampamento indígena lamentou que mais uma vez tenha sido adiado o julgamento, após sete anos à espera de uma decisão.
"Pela segunda vez, a gente se deslocou de lá para cá, esperando que esse julgamento acontecesse, mas violaram nosso direito de falarmos nossa própria língua, sendo que a Constituição nos garante esse direito. A Constituição foi violada, pois a juíza não nos deixou falar nossa própria língua", disse a vítima, uma das que seria ouvida na tarde de hoje.
Cancelado pela segunda vez
Esta é a segunda vez que o júri do caso Veron não começa de fato. Em 12 de abril, o júri não foi instalado a pedido da defesa, que juntou um atestado médico informando que o advogado dos réus, Josephino Ujakow, necessitava se afastar do trabalho. Na segunda-feira (03), o júri foi, enfim, instalado, sete anos após o crime, mas agora é interrompido.
Na segunda-feira, a juíza Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Federal de São Paulo, que preside o júri, rejeitou requisição da defesa, que queria o afastamento dos dois procuradores da República nomeados pelo Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, para atuarem no caso em auxílio ao MPF em São Paulo: Marco Antônio Delfino de Almeida (PR-MS) e Vladimir Aras (PR-BA).
Segundo a defesa, estaria sendo violado o princípio do "promotor natural", argumento rechaçado pela juíza. Hoje, entretanto, a Justiça aceitou um documento que estava fora dos autos e que foi apresentado pela defesa em plenário, fora do prazo legal, na interpretação do MPF. A defesa alega que o tradutor seria suspeito e a juíza o impugnou.
Caso transferido
O caso foi desaforado do Mato Grosso do Sul para São Paulo, a pedido do Ministério Público Federal, por dúvida quanto à isenção dos jurados locais, argumento aceito pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, devido ao notável preconceito da população e autoridades locais com os índios. Este foi o terceiro caso de desaforamento interestadual do Brasil. Os dois primeiros ocorreram no julgamento do ex-deputado federal Hildebrando Pascoal. Dois de seus júris federais foram transferidos de Rio Branco (AC) para Brasília.
Deverão ser submetidos a júri popular, em data a definir, os réus Estevão Romero, Carlos Roberto dos Santos e Jorge Cristaldo Insabralde. Um quarto acusado pela morte de Veron, Nivaldo Alves Oliveira, está foragido, e o processo em relação a ele foi desmembrado e suspenso.
Os denunciados ficaram presos preventivamente por quase 4 anos e 6 meses, tendo sido soltos por meio de um habeas corpus concedido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Foi relator o ministro Gilmar Mendes, que reconheceu excesso de prazo na prisão preventiva. O MPF ofereceu ainda uma segunda denúncia no caso, em outubro de 2008, contra outras 24 pessoas envolvidas no crime.
Além de Almeida e Aras, atua na acusação o procurador da República Roberto Antonio Dassié Diana (PR-SP). A Funai foi admitida como assistente de acusação e será representada no júri pelo procurador federal Derly Fiuza.
"Há um grande preconceito contra os índios, com se houvesse um conflito entre o modo de vida indígena e o agronegócio, que é muito forte naquela região", afirma Aras. Esse conflito se acentua, na avaliação do procurador, à medida que o agronegócio se expande e os índios intensificam a luta pelas terras que consideram como tradicionais.
O forte preconceito contra os índios no Mato Grosso do Sul pode ser medido por críticas aos indígenas, proferidas pela Assembléia Legislativa do Estado, apenas dois meses após a morte de Veron. Os deputados criticaram o fato de os índios terem enterrado o líder na própria área ocupada, o que ocorreu sob o amparo de uma decisão da Justiça Federal proferida em resposta a uma Ação Civil Pública do MPF e, por esse motivo, a instituição também foi criticada por "apoiar indistintamente as invasões de terras privadas".
Acusações
Além do homicídio duplamente qualificado pelo motivo torpe e meio cruel (o cacique foi morto a golpes na cabeça), o MPF e a Funai sustentarão a ocorrência de um crime de tortura, seis tentativas qualificadas de homicídio, seis crimes de sequestro, fraude processual e formação de quadrilha.
O processo começou na Justiça Federal de Dourados (MS) e foi conduzido desde o início pelos procuradores da República Charles Stevan da Mota Pessoa e Ramiro Rockenbach da Silva.
A Justiça Federal foi firmada competente com base nos artigos 109 e 231, da Constituição, pois o crime ocorreu em virtude de disputa sobre direitos indígenas, uma vez que o grupo de Veron reivindicava a anexação da área da fazenda à terra indígena, processo que estava sob a competência da Funai, órgão ao qual compete demarcar a terra indígena, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
A acusação do MPF foi recebida pelo juiz federal Odilon de Oliveira, que determinou que os réus fossem submetidos à júri popular. Com a transferência do júri para São Paulo, passa a presidí-lo a juíza Paula Mantovani Avelino. A investigação policial foi realizada pelo DPF João Carlos Girotto, que foi arrolado como testemunha do MPF para o plenário. Outras onze pessoas seriam ouvidas nos próximos dias como testemunhas da acusação, entre as quais sete vítimas do ataque.
Fonte: Procuradoria da República no Estado de S. Paulo.