OEA recebe denúncia contra megaoperação no Complexo do Alemão
- Detalhes
- Bia Barbosa
- 25/07/2007
Nos últimos anos, centros de defesa de direitos humanos, movimentos populares, organizações da sociedade civil e institutos de pesquisa que atuam na área da segurança pública constataram um padrão de atuação na polícia militar do Rio de Janeiro caracterizado pelo que se pode chamar de criminalização da pobreza. Ou seja, à extrema desigualdade social e econômica, da qual já é vítima a maior parcela da população, soma-se a visão de que basta ser pobre e viver na periferia fluminense para ser considerado suspeito. Esta política, executada por uma das polícias que mais matam no mundo – entre 1997 e 2006, oficialmente, foram assassinadas 7.244 pessoas no estado do Rio –, vem resultando em ações que, na avaliação das organizações de defesa dos direitos humanos, podem ser chamadas de “extermínio estatal”. Trata-se de um modelo de segurança pública implementado por sucessivos governos estaduais desde o início da década de 90.
Em denúncia a esta situação,
agravada recentemente pela operação realizada no Complexo do Alemão,
diversas entidades enviaram nesta quarta-feira (18) um documento à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos
Estados Americanos). Nele, elas criticam a política de segurança em
curso no Rio de Janeiro, pautada no confronto bélico e criminalizadora
da pobreza. Com dados e diversos relatos que apontam para execuções
sumárias que teriam sido cometidas pela política durante a ação do
último dia 27 de junho, as organizações peticionárias descrevem a
gravidade da situação na região e solicitam uma visita in loco
da Comissão ao Rio para investigar e apurar as denúncias, assim como
para cobrar do Estado brasileiro e do governo do Rio de Janeiro
respostas ao ocorrido.
O Brasil é signatário da Convenção
Americana de Direitos Humanos, que estabelece as bases para o
funcionamento da Comissão de Direitos Humanos. O documento prevê, neste
funcionamento, a visita de membros da entidade quando há casos de
graves violações. Geralmente, a comissão faz visitas de monitoramento
da situação geral de determinados países ou de grupos e populações
específicas. Por exemplo: qual o cenário de violações no Sudão ou a
situação das mulheres afetadas pelos conflitos armados na Colômbia.
“É
mais difícil uma visita da Comissão para analisar um caso específico em
um país, como o que está acontecendo no Complexo do Alemão. Mas como
esta foi uma situação dramática e absurda, achamos importante fazer
esta solicitação porque, desta maneira, formalizamos o conhecimento da
comissão acerca da situação aqui no Rio”, explica Luciana Garcia,
advogada do Centro de Justiça Global, uma das entidades que assinam o
pedido enviado a Washington. “A CIDH tem acesso a informações pela
imprensa internacional, mas era importante que tivesse acesso às
informações que coletamos diretamente com os moradores”, completa.
Além da visita in loco,
as entidades solicitaram que a Comissão Interamericana manifeste-se
publicamente, mediante um comunicado de imprensa, sobre a obrigação do
Brasil em respeitar a Convenção Americana de Direitos Humanos,
investigar e julgar os responsáveis pelos assassinatos ocorridos
durante a megaoperação.
“O Brasil tem uma política e um discurso
internacional de afirmação de que este é um Estado que respeita os
direitos humanos. Por isso, acreditamos que um comunicado internacional
da Comissão, que é publicado no boletim da entidade e enviado para seus
contatos em todo o mundo, pode pressionar o governo em âmbito federal.
E aí esperamos que o governo federal faça pressão sobre o governo
estadual para que esta situação não fique impune. Isso criaria um
constrangimento internacional ao Brasil e o país cairia em descrédito
se ignorasse o que está acontecendo no Rio”, avalia Luciana.
O documento
O ofício enviado ao secretário executivo da CIDH, Santiago Canton, é assinado por dezesseis organizações: do Observatório de Favelas e seccional RJ da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Núcleo Piratininga de Comunicação e Intersindical. Em cerca de 20 páginas, descreve em detalhes como foi a operação realizada no complexo, na zona norte do Rio, por 1.350 agentes policias. Conta que, em oito horas de ação, foram utilizados 1.080 fuzis, 180 mil balas e, ao final, foram apreendidas 13 armas, 50 explosivos e 2 mil balas que estavam em poder dos traficantes. Cerca de 60 pessoas foram feridas por arma de fogo – a maioria vítima de balas perdidas – e, oficialmente, 19 foram assassinadas. Nesses corpos, um total de 78 tiros desferidos, sendo que 32 foram disparados pelas costas das vítimas.
O
documento também informa que, no dia 28 de junho pela manhã,
representantes dos peticionários dirigiram-se ao Complexo do Alemão
para obter depoimentos dos moradores. Eles ouviram relatos de
arbitrariedade e invasão de domicílio por parte dos policiais: sobre
aparelhos de televisão e computadores quebrados; casas arrombadas;
estabelecimentos comerciais que tiveram portas derrubadas e
proprietários agredidos verbalmente por policiais. De acordo com
moradores, os policiais subiam o morro gritando “eu quero sangue”.
“Um
dos mais graves relatos foi feito por uma moradora que viu policiais
invadirem sua residência – estava escondida na casa de uma vizinha na
companhia de seus cinco filhos – e espancarem duas crianças que lá se
encontravam, quase os matando, com um fio. As crianças que apanharam
ficaram escondidas dentro do banheiro, os policiais mataram um outro
rapaz na sala da casa com uma faca e depois teriam colocado os outros
dois para limpar o local, não deixando marcas do que havia acontecido”,
diz um trecho da denúncia.
Diferentemente do que divulgam os
jornais sobre a aprovação dos moradores do complexo à megaoperação, os
representantes das entidades ouviram depoimentos unânimes sobre
desaprovação da operação e medo da comunidade.
“Os relatos dos
moradores e o que se visualizou durante a visita levam os peticionários
a acreditar que o que aconteceu no Complexo do Alemão foi uma ação de
extermínio por parte da polícia. Além disso, os postos de saúde estão
fechados desde o dia 2 de maio, deixando milhares de pessoas sem
atendimento médico e cerca de 4,8 mil crianças e jovens estão impedidos
de freqüentar a escola”, afirmam no documento.
Também integra
a denúncia feita à OEA a relação e circunstâncias dos assassinatos
ocorridos entre os dias 5 de maio de 26 de junho na favela Vila
Cruzeiro, localizada no Complexo do Alemão. Dias antes, policiais
integrantes do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do
Rio de Janeiro (BOPE) ocuparam a região em busca de suspeitos da morte
de dois policiais militares. Cerca de dez pessoas foram vítimas de
balas perdidas, algumas com ferimentos graves. Deste dia até a data de
envio do comunicado à CIDH, segundo as entidades, pelo menos 44 pessoas
foram mortas – por balas perdidas ou execuções sumárias – e mais de 80
pessoas ficaram feridas.
Perspectivas
A preocupação dos peticionários não se encerra com as investigações dos responsáveis pela invasão no Complexo do Alemão. O maior temor vem das declarações dadas tanto pelo governo fluminense, na pessoa do secretário da Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, quando pelo governo federal. Logo após a operação do dia 27 de junho, Beltrame disse que “não se pode fazer um omelete sem quebrar alguns ovos” e que “o remédio para trazer a paz, muitas vezes, passa por alguma ação que traz sangue”.
Já o Secretário de Segurança Nacional, Luiz
Fernando Corrêa, em referência ao modelo de política criminal adotado
no Rio de Janeiro, declarou que “os mortos e os feridos geram um
desconforto, mas não tem outra maneira”. O Ministro da Justiça disse à
imprensa que ações policiais como as ocorridas no Alemão estão
previstas no Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(Pronasci), previsto para ser lançado no dia 9 de agosto pelo
Presidente da República, e que atingirá onze regiões metropolitanas do
Estado brasileiro, entre elas o Rio de Janeiro.
Para as
entidades de defesa dos direitos humanos, tal discurso indica que a
polícia do Rio está assumindo uma ação temerária, que trabalha com a
concepção que mortes são necessárias no enfrentamento a criminalidade,
em detrimento de uma política de segurança de valorização da vida.
“Vemos
que a regra geral tem sido a promoção de operações governamentais com
características militares de guerra nas áreas socialmente excluídas -
recolhimento das populações marginalizadas, revistas íntimas
arbitrárias sobre transeuntes (inclusive crianças de 3 anos de idade),
vigilância ostensiva e confrontos armados sistemáticos em favelas.
Trata-se do projeto de criminalização da pobreza com a utilização de
força bélica policial em comunidades pobres”, afirmam.
Os
próximos alvos das megaoperações são as comunidades da Rocinha, Cidade
de Deus, Jacarezinho, Morro da Mangueira, Morro da Providência e
Complexo da Maré.
Fonte: Agência Carta Maior