Argentina avança para acabar com monopólio sobre o papel-jornal
- Detalhes
- 22/12/2011
Proposta, que ainda será votada no senado, opõe governo e os jornais Clarín e La Nación
A Câmara de Deputados da Argentina aprovou na noite desta quinta-feira (15/12) o projeto de lei que declara a fabricação, distribuição e venda de papel-jornal como “interesse público”. Desde a ditadura militar do país (1976-1983), a única fábrica de produção do insumo para jornais, a “Papel Prensa”, é majoritariamente controlada pelos grupos Clarín e La Nación.
Com maioria no Congresso, o partido governista FPV (Frente para a Vitória) e seus aliados somaram 134 votos a favor da medida, contra 92 negativos e 13 abstenções. O projeto de lei, que pretende facilitar o acesso de outros veículos de comunicação à matéria-prima, foi encaminhado ao Senado, onde deve ser votado na semana que vem.
O projeto de lei prevê a criação de uma comissão dupla, com participação do governo e das empresas, que acompanhe o processo de produção, comercialização e distribuição do papel. Uma delas, a “Autoridade de Aplicação”, administrada pelo ministério de Economia argentino, deverá garantir o adequamento à nova regulamentação, permitindo igualdade de oportunidades aos veículos impressos e o acesso, “sem discriminações”, ao papel.
Pelo outro, uma “Comissão Federal Assesora”, integrada por um representante dos jornais de cada província, incluindo os da capital - com exceção dos jornais Clarín e La Nación, que possuem a maioria das ações da empresa - apoiará e fiscalizará este desempenho. Esta comissão também será integrada por representantes de “consumidores”. O projeto também estabelece que quando investimentos na empresa forem feitos em sua maioria pelo Estado, o aumento dos direitos patrimoniais da Papel Prensa implicará em uma maior participação acionária do governo na empresa.
Debate acirrado
Durante a sessão, o líder da bancada governista, Agustín Rossi, afirmou que a medida tem como objetivo estabelecer “um marco regulatório para esta atividade comercial”, para que “deixe de ser administrado somente pelos princípios do mercado”. Segundo Rossi, a única finalidade da lei é “garantir a liberdade de expressão, para que existam mais jornais e tenham o mesmo peso”.
Para o senador kirchnerista Aníbal Fernández, chefe de gabinete do governo durante o primeiro mandato de Cristina Kirchner, o encaminhamento do projeto à votação se deve ao desejo de garantir “o mesmo nível de produtos para todos, e que todos se expressem do mesmo modo”.
Para Rossi, o principal questionamento é o controle acionário da empresa de papel-jornal pelo Grupo Clarín. Segundo ele, é uma “situação completamente desvirtuada que, para alguém ter um jornal na Argentina, ter que comprar o papel de seu principal concorrente, e que este venda mais caro ou diretamente não venda porque não tem disponibilidade”.
Desde 2009, o governo de Cristina Kirchner tenta a aprovação do projeto de lei que visaria estabelecer preços “igualitários” para “democratizar” a comercialização do principal insumo de produção de jornal. Desde então, o Clarín, principal veículo impresso do país, vem denunciando um “plano do governo nacional para se apoderar da companhia e controlar o papel para jornais, insumo essencial da imprensa livre”.
O deputado Claudio Lozano foi um dos 13 que se abstiveram na votação. Durante a sessão, o legislador, eleito pela coalizão FAP (Frente Ampla Progressista), afirmou que “nem o governo nem o Clarín garantem a liberdade de expressão”. Diversos setores de oposição classificaram o projeto de lei como “inconstitucional” e “confiscatório” da propriedade privada.
“Não podemos apoiar uma ilegalidade”, afirmou a deputada Margarita Stolbizer, também da FAP, ao que complementou: “Este projeto encobre um interesse confiscatório, o que está proibido pela Constituição. O Estado deve garantir o livre acesso ao papel, mas isso deve ser feito dentro da lei”, disse. Dois dos mais exaltados durante a sessão eram os deputados da UCR (União Cívica Radical), Juan Tunessi e Oscar Aguad, que chamou, aos gritos, o chefe da bancada governista de “mentiroso”.
Tunessi, também irritado, pediu: “Assumam que o que vocês querem é estatizar o papel-jornal!”. Rossi, por sua vez, negou na manhã desta sexta-feira (16/12) que a intenção do governo seja estatizar a fabricação, comercialização e distribuição do produto. “Nós nunca falamos em expropriação ou estatização da empresa, porque não queremos falar especificamente da empresa, sempre falamos da atividade comercial”, respondeu à imprensa local.
O caso
Em um artigo intitulado “Uma história inventada para ficar com o papel-jornal”, publicado em 2010, os acionistas do Clarín escrevem: “Controlar o papel é controlar a informação, e isso é o que o governo vem buscando através de várias ferramentas: a propaganda oficial, a ‘ley de medios’, o controle do acesso à informação, a administração militante dos meios públicos e a multiplicação dos veículos paragovernistas”.
Os textos críticos são uma resposta à intensa campanha do governo de Cristina Kirchner para denunciar os métodos irregulares, atualmente investigados pela Justiça, através dos quais os principais grupos de comunicação do país obtiveram a maioria das ações da empresa Papel Prensa, na época da ditadura.
Osvaldo Papaleo, ex-secretário de comunicação da ex-presidente argentina Estela Martínez de Perón, seqüestrado e torturado no período da repressão militar, afirma que o “monopólio” do Grupo Clarín teve início com a apropriação da empresa Papel Prensa, articulada em aliança com o ex-ditador Jorge Rafael Videla, hoje preso sob pena de prisão perpétua por inúmeros crimes contra a humanidade.
Em entrevista ao jornal Miradas al Sur, em 2009, Papaleo explica que a fábrica de papel-jornal, até o início da ditadura era uma sociedade entre a família Gravier, que possuía 75% das ações, e do governo argentino. Em março de 1977, quase todos os membros da família foram presos, após terem recebido “algum tipo de oferta do Clarín, La Nación e La Razón”. Julgada, a família teria perdido os direitos civis e econômicos, e seus bens passaram para as mãos do Estado.
“No fim de 1978 se convoca uma assembléia para tratar do assunto acionário da empresa”, conta. “Assim o Clarín comprou a Papel Prensa, com a família Gravier presa e julgada por um tribunal de guerra da ditadura. A partir daí, o Clarín exerceu o monopólio da venda do papel-jornal”, afirmou ele, cuja irmã, Lidia Papaleo, era casada com um dos membros da família proprietária da empresa.
Para o jornal Clarín, no entanto, esta versão, divulgada pelo atual governo, “vem distorcendo com aleivosia fatos históricos, manipulando dolosamente pessoas e situações, recrutando aluados de sugestiva plasticidade e reescrevendo a história, bastardeando assim a bandeira dos Direitos Humanos, com o que constitui uma das práticas mais desprezíveis do kirchnerismo. Nunca, em 27 anos de democracia, a Papel Prensa recebeu nenhum tipo de questionamento administrativo ou judicial por sua origem”.