Na Síria, uma mudança de regime através da guerra civil
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- 17/08/2012
Os que advogam por uma intervenção humanitária da OTAN na Síria afirmam amiúde que ali não acontecerá como no Iraque. E têm razão: o que acontecer será muito pior na Síria e a intervenção mesmo poderia constituir o prelúdio duma guerra contra o Irã.
É EVIDENTE que a administração Obama adotou algumas das mudanças táticas que levou a cabo a administração Bush logo da escalada de baixas americanas no Iraque em 2004. A mudança foi abandonar as invasões diretas e as ocupações e passar a encorajar a desestabilização, as operações clandestinas e os conflitos civis. O objetivo na Síria, no Líbano e no Irã é o mesmo: a mudança do regime de forma a favorecer interesses estratégicos. Para o conseguir, não se exclui o emprego de bombardeios aéreos e ataques com aviões não tripulados.
O general norte-americano Wesley Clerk, antigo comandante supremo das forças da OTAN na Europa, declarou à jornalista Amy Goodman que, poucas semanas depois dos brutais atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, um memorando escrito pelo então Secretário da Defesa Donald Rumsfeld descreveria “como havemos de conquistar sete países em cinco anos, a começar pelo Iraque, e depois a Síria, o Líbano, a Líbia, a Somália e o Sudão, para terminar no Irã”, depois de invadir Afeganistão.
O fracasso dos EUA no Iraque e a derrota israelita no Líbano em 2006 mudaram a ordem, os modos e os resultados desta “conquista” de oito países:
- O Afeganistão ainda suporta a ocupação por parte de forças da OTAN lideradas pelos EUA, da qual recolhe os seus frutos mortais, enquanto senhores da guerra competem para inundar o mercado mundial da heroína;
- O Iraque está fragmentado e sofre uma contínua sangria, os atentados terroristas e sectários são diários e a contagem de mortos num país invadido e destruído é da ordem de milhões;
- A Somália viu-se arruinada por causa da intervenção, mas continuam os combates entre as diferentes milícias;
- O Sudão está dividido em dois Estados em guerra;
- A Líbia foi bombardeada pela OTAN, o que a converteu num país onde existem centos de milícias violentas e bandos armados;
- O Líbano foi bombardeado e invadido por Israel, que tinha o apoio dos EUA, mas a resistência libanesa liderada por Hezbollah, que tinha o apoio da Síria, repeliu a invasão;
- A Síria está hoje envolvida num cruel conflito no que terroristas do tipo dos da Al-Qaeda marcam uma importante presença semelhante à que têm no vizinho Iraque;
- O Irã é o alvo dos planos de ataque tanto de Israel quanto dos EUA.
Olhando para trás, a invasão israelita do Líbano de 2006 pôs de manifesto um desenvolvimento histórico de profundas consequências para a Síria e toda a região. A família reinante na Arábia Saudita, o regime de Mubarak no Egito e o rei Abdullah da Jordânia surpreenderam o mundo árabe ao atacar publicamente Hezbollah enquanto os aviões israelitas bombardeavam uma e outra vez Beirute. Tiraram as máscaras e viu-se estarem de fato aliados com Israel contra o Líbano.
A recente queda de regimes aliados da Arábia Saudita e os EUA como a Tunísia de Ben Ali e o Egito de Mubarak deram o alarme que conduziu aos bombardeios da Líbia pela OTAN. O alvo é hoje a Síria, que está no coração do que o Rei Abdullah da Jordânia qualificou de “crescente xiita”, formado pelo Líbano, a Síria, o Iraque e o Irã. É a oposição do “crescente” à hegemonia dos EUA e Israel antes do que a religião ou os direitos humanos que preocupa Washington e os seus aliados ditatoriais na região. Não há muito tempo que os governantes sauditas financiavam o “xiita- alauíta” Hafez al-Assad, pai de Bashar, na Síria, o qual mantinha boas relações com o Irã xiita sob a ditadura do xá, e apoiavam o antigo primeiro ministro pró-xiita no Iraque, Iyad Allawi. Agora voltam a apoiar Allawi para ocupar o sítio de al-Maliki.
Foi a mudança de rumo nas políticas regionais da Síria que irritou os EUA, os governantes sauditas e Israel, e não o repugnante registro de violações de direitos humanos do regime, porque a mudança de rumo transformou a Síria de um inimigo a um aliado da resistência palestina, libanesa e do Irã .
Estratégia dos EUA
Hoje parece óbvio que a reconsideração estratégica das prioridades regionais dos EUA, Arábia Saudita e Israel produziu-se em 2004 a seguir ao fracasso dos EUA no Iraque. Em março de 2007 o americano Seymour Hersh, ganhador do prêmio Pulitzer, relatou a nova estratégia norte-americana tal como lhe explicaram altos funcionários estadunidenses. Desenhou-se para o Iraque, mas também para o Líbano e a Síria:
“No Líbano, a Administração cooperou com o governo da Arábia Saudita, que é sunita (Wahhabi), em operações clandestinas pensadas para debilitar o Hezbollah, a organização xiita apoiada pelo Irã. Os EUA também participaram em operações clandestinas endereçadas contra o Iraque e o seu aliado, a Síria. Um subproduto destas atividades foi o reforço dos grupos extremistas sunitas que defendem uma visão militante do Islã e são hostis à América e simpatizam com Al-Qaeda”.
Mas os EUA consideravam que a Síria e o Irã eram mais perigosos do que os partidários da Al-Qaeda. Dick Cheney e o assessor de segurança nacional saudita, o príncipe Bandar Ben Sultan, contavam-se entre os “arquitetos” dessa estratégia e, mais, contornar os procedimentos normais do Congresso “cedendo a execução ou o financiamento aos sauditas”. Obama parece ter assumido esta estratégia, de que Hillary Clinton se mostra entusiasta. As rotinas diárias passaram para as mãos do Subsecretário de Estado para Oriente Próximo Jeffrey Feltman, do príncipe Sultan e de Saad Hariri, um multibilionário com dupla nacionalidade saudita e libanesa, antigo primeiro ministro do Líbano e líder do bloco 14 de Março, partidário de Washington.
A esta agressiva aliança deve acrescentar-se a Turquia, que por sua vez realizou uma significativa viragem ao apoiar a intervenção da OTAN na Líbia e intervir ativamente na Síria. Ainda mais, a Turquia converteu-se na principal base para as facções da oposição financiadas pelos sauditas e o Catar. A alargada fronteira entre a Turquia e a Síria é uma das principais vias do contrabando de homens e armas para a Síria. As outras situam-se no Curdistão iraquiano, que conta com a bênção das forças de Barzani; no oeste do Iraque, através das milícias Al-Sahwa, treinadas pelos EUA; e no Líbano, através das forças de extrema direita lideradas pela Falange e Hariri.
Al-Qaeda
Vale a pena mencionar aqui que muitos iraquianos acreditam firmemente que a ocupação dos EUA mostra uma cegueira voluntária face ao terrorismo do tipo da Al-Qaeda no Iraque, porque serve ao útil propósito de debilitar a resistência patriótica à sua presença, encorajando o clima de guerra sectário e divisor defendido pela Al-Qaeda e a sua ideologia Wahhabi.
O Wahhabismo é uma interpretação do Islã sectária, repressiva, socialmente regressiva e amplamente rejeitada que tende para a violência niilista. Inicialmente uma seita pequena e isolada, o Wahhabismo reduzia-se basicamente a ser uma minoria no Estado policial saudita, até que a família governante começou a promovê-la mundo afora, com bilhões de petrodólares. O Afeganistão foi o local onde mais prosperou o Wahhabismo, graças ao apoio estadunidense e saudita aos “Mujahidin”, incluído Ben Laden e mais os Talibã, contra os “infiéis” soviéticos na década de 1980.
A tolerância dos EUA e a OTAN para com os antigos terroristas da Al-Qaeda fica patente também nos combates da Líbia. Tendo a Al Qaeda declarado oficialmente a Jihad contra o regime sírio, a aliança de fato entre os EUA, a Arábia Saudita e Israel contra os países do “Crescente” ainda surpreende mais.
A família governante num Catar rico em petróleo é um aliado muito próximo dos EUA e uniu-se à briga através da influência da cadeia de televisão Al Jazeera, que é deles, mais influente que as armas e o dinheiro que bombearam a Líbia e a Síria. Enquanto a ameaça ao seu poder, provocada pelos levantamentos árabes, se aproximava mais e mais e atingia os vizinhos, Bahrain e Iêmen, e afetava regiões da Arábia Saudita, os governantes sauditas e cataris puseram sua rivalidade de lado e mobilizaram-se rapidamente para esmagar o valente levantamento democrático do povo do Bahrain. O objetivo era ditar o rumo dos protestos na Líbia, Iêmen e Síria, depois de perder os seus colegas ditadores Ben Ali e Mubarak.
Militarização
A comunicação social acusa exclusivamente o repressivo regime da Síria da militarização do conflito, por disparar sobre manifestantes pacíficos durante as primeiras semanas dos protestos, que se iniciaram em março de 2011. O que ignoram é que somente algumas das facções da oposição na Síria é que começaram a apelar para ataques armados contra as forças armadas sírias. As organizações democráticas da esquerda, situadas na alça de mira da repressão estatal durante décadas, opuseram-se e ainda se opõem firmemente aos ataques e à militarização do conflito.
Argumentam que a militarização vai debilitar o movimento de massas em favor duma mudança democrática, deixar a porta aberta à intervenção estrangeira, favorecer as forças israelitas que ocupam os Altos do Golã e ameaçar o tecido social da sociedade síria. A comunicação social silencia o fato de os tanques israelitas do ocupado Golã estarem a só uma hora de Damasco.
Os meios de comunicação social
Os nossos principais meios de comunicação social e mais os do mundo árabe, especialmente a Al Jazeera, não costumam informar das atividades da oposição democrática que renega a intervenção. Por outro lado, a Al Jazeera atua como animadora do Conselho Nacional Sírio (CNS), apoiado por sauditas e cataris, e do Exército Sírio Livre, fundado e apoiado logisticamente pela Turquia, um membro da OTAN. Todas as afirmações feitas pelo CNS e o ASL são admitidas como verdadeiras, mesmo que existam sérias dúvidas sobre elas.
Há muitas ocasiões em que a televisão Al Jazira foi flagrada divulgando mentiras sobre a Síria. O seu correspondente na Síria foi apanhado pelas câmaras enquanto encenava um “combate” antes de entrar em antena. Numa ocasião a BBC publicou uma foto do massacre de Houla, fornecida pela oposição síria partidária da intervenção, que se veio a saber ter sido tirada no Iraque no 2003. A BBC teve de recuar, mas bem discretamente, usando o blogue do editor das notícias internacionais, Jon Williams, que escreveu:
“Mas fora da trágica contagem de mortos, os feitos são escassos: não fica claro quem mandou os assassinatos ou por quê... as estórias nunca são brancas ou negras, amiúde mostram diferentes gradações de cinzento. Os opositores ao presidente Assad têm uma agenda. Um alto oficial ocidental chegou mesmo a descrever a sua estratégia de comunicação no YouTube como ‘brilhante’, mas também a comparou aos chamados de “psy-ops” (operações psicológicas), técnicas de lavagem de cérebro empregadas pelos EUA e outros exércitos para convencer as pessoas de coisas não necessariamente verdadeiras. O são ceticismo é uma das qualidades essenciais de qualquer jornalista, ainda mais ao informar de um conflito. A responsabilidade é alta, nem tudo é o que parece”.
Alex Thomson, experimentado jornalista do Channel 4, foi testemunha direta das brutais práticas de alguns homens do Exército Sírio Livre quando quiseram fazê-los cair numa armadilha, a ele e mais à sua equipe, para serem assassinados por forças do regime e ganhar um golpe de efeito propagandístico.
Tudo isto lembra a maneira como políticos e imprensa regurgitavam as histórias inventadas pelas facções partidárias dos EUA na oposição iraquiana ao governo de Saddam durante os preparativos da invasão do Iraque. Os iraquianos que se opunham à ditadura de Saddam e, ao mesmo tempo, se opunham também firmemente à guerra viram-se marginalizados duma maneira semelhante, em favor daqueles que financiavam os EUA e mais os governantes sauditas e kuaitianos.
Porque a memória de alguns é tão curta? Como podem esquecer as mentiras que convenceram a opinião pública de apoiarem a guerra contra o Iraque? Como puderam esquecer a grande mentira acerca dos soldados iraquianos que arrancavam bebês das incubadoras? Como podem esquecer como a deputada Ann Clwyd, enviada especial de Blair, Melanie Philips do Daily Mail, o primeiro ministro australiano e muitos outros espalharam a mentira das máquinas trituradoras de pessoas empregadas por Saddam com pessoas vivas, a começar pelos pés para “prolongar a agonia”? Foi o editor do Sun em 2003 a afirmar que “a opinião pública enquadrou-se atrás de Tony Blair quando os votantes souberam como Saddam jogava os dissidentes, a começar pelos pés, em trituradoras industriais”.
Mulheres
Um argumento habitual em favor das intervenções não apareceu em relação com a Síria. Os defensores da intervenção humanitária em defesa dos direitos das mulheres ficam calados neste caso. Entende-se, porque sabem que as mulheres na Síria têm muitos mais direitos do que na Arábia Saudita, “uma monarquia absoluta que castiga a contestação com o cárcere e a reprime com balas, e onde as vidas das mulheres estão controladas pelos pais, os maridos e outro entes, desde o berço até a cova”. A organização síria Irmandade Muçulmana, apoiada pela Arábia Saudita e Catar, lidera o SNC e o FSA e apela para a intervenção da OTAN. Não é especialmente conhecida pela sua defesa dos direitos da mulher.
A triste verdade é que as organizações democráticas e antiimperialistas da Síria estão por enquanto frágeis demais para liderar a luta contra o regime de Assad e lograr uma mudança democrática. Além do mais, os sacrifícios do povo sírio foram sequestrados pela OTAN e os ditadores sauditas e cataris.
Os que advogam por uma intervenção humanitária da OTAN na Síria afirmam amiúde que ali não se acontecerá como no Iraque. Têm razão: o que ali acontecer será muito pior. A mudança de regime através de sanções e o apoio a grupos armados da oposição vão assassinar ainda mais pessoas, mergulhando a Síria, o Líbano, o Iraque e possivelmente a Turquia num banho de sangue ainda mais terrível. Será também o prelúdio duma guerra israelita-americana contra o Irã financiada pela Arábia Saudita e Catar. A guerra contra o Irã não apenas porá em risco as vidas de milhões de iranianos como ainda poderia introduzir a Rússia e a China no conflito.
Por Sami Ramadani ,Stop War; tradução de Alberto Lozano para o Diário Liberdade.