Tese propõe superação de decisão do STF que mantém torturadores sob proteção da Lei da Anistia
- Detalhes
- 30/12/2013
Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a ADPF 153/DF, em que se decidiu sobre a abrangência da Lei 6.683, de 1979, a Lei da Anistia. O que estava em questão era se os crimes praticados por militares e policiais durante a ditadura – como torturas, desaparecimentos forçados, estupros, homicídios – também estariam cobertos pela lei. Na ocasião, o STF decidiu que a abrangência da lei autorizava a anistia inclusive desses agentes torturadores.
Mas agora uma pesquisa sugere a superação dessa controversa decisão tomada pelo STF – e acaba de vencer o Prêmio Capes de Tese 2013 na área de Direito e o Grande Prêmio UFMG de Teses 2013 na grande área de Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas e Linguística, Letras e Artes.
Em Responsabilização por graves violações de direitos humanos na ditadura de 1964-1985: a necessária superação da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 153/DF pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, o pesquisador Emilio Peluso Neder Meyer demonstra que a Lei de Anistia tem sido mobilizada como obstáculo a uma adequada “justiça de transição”, sedimentando um entendimento problemático “de que não seria possível responsabilizar os agentes e ex-agentes públicos por suas graves violações de direitos humanos”. “A Lei é recorrentemente invocada como o ‘acordo político’ que teria permitido o fim da ditadura e o início do regime constitucional de 1988”, explica.
Em seu trabalho, Emílio desconstrói os votos de ministros – Eros Grau, Ricardo Lewandowski, Ayres Britto, Celso de Mello e Gilmar Mendes –, detectando suas contradições e falhas, sua ausência de “integridade” e uma tendência reducionista de suas decisões. “No julgamento, várias das condições de possibilidade importantes para tal processo de aprendizado se perderam. É possível que pressões contingenciais das mais diversas tenham colocado a atuação do STF em risco, conduzindo a decisão judicial para longe daquilo que se espera em termos de legitimidade jurisdicional”, sugere o pesquisador.
Na tese, Meyer oferece elementos básicos para a formulação de uma teoria da "justiça de transição" e analisa a forma como ela vem (ou não) sendo aplicada no Brasil. Com efeito, o pesquisador lembra que a efetivação de um projeto constituinte não se dá de uma só vez, mas por meio de longo processo de aprendizado e constante autocorreção da rota.
Ao falar em “pressões contingenciais”, o pesquisador alude a um lobby militar que pode ter contribuído para o sufocamento da adequada justiça de transição durante os últimos 30 anos, influenciando o Poder Judiciário. O pesquisador sugere um histórico medo de que militares engendrassem novos golpes de Estado, mas sustenta que esse medo não pode impedir o início, ainda que tardio, de um projeto de afirmação de direitos humanos.
“Ainda se fazem ouvir as vozes de vítimas e familiares que almejam algum tipo de justiça”, lembra Emilio. “Trata-se de exigir a formação de uma ‘memória coletiva’ que não seja o resultado de um ‘esquecimento obrigado’, mas sim de um exercício ativo de constante diálogo público com o passado.”
Entendimentos opostos
Em geral, o Brasil é devedor do efetivo cumprimento de direitos humanos – mas de forma ainda mais grave no que diz respeito às violações ocorridas sistematicamente na ditadura. Com o olhar voltado para tal débito, Emílio se vale de entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos para propor a superação do olhar lançado pelo STF para a Lei da Anistia.
Em novembro de 2010, a Corte Interamericana determinou a condenação do Brasil pelas omissões estatais em relação aos crimes de “desaparecimento forçado” ocorridos na Guerrilha do Araguaia – e o entendimento da Corte, no que diz respeito à Lei da Anistia, foi diametralmente oposto ao entendimento do Supremo sobre a ditadura.
Ao analisar a visão conflitante entre as duas instâncias, Emilio demonstra que o entendimento da Corte Interamericana deve prevalecer sobre a decisão do Supremo. “Meu trabalho valida a hipótese de que deve ser dado total cumprimento à decisão da Corte Interamericana, uma vez que o STF descumpriu seu papel como um dos guardiães da Constituição da República ao julgar a ADPF 153/DF, comprometendo com isso o próprio projeto constituinte de 1988”, ele diz.
Assim, “a exigência, nesse sentido, é que sejam investigados e punidos não só os crimes de desaparecimento forçado praticados durante a Guerrilha do Araguaia, mas também todas as graves violações de direitos humanos ocorridas no período de 1964-1985 e seus autores, já que se trata de crimes contra a humanidade, que, como tais, são imprescritíveis”.
O pesquisador lembra que a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade desponta como uma das características elementares do constitucionalismo mundial pautado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos: “Punir é recordar”, afirma. E sua tese, nesse sentido, abre as portas não apenas para a revisão do que postulou o STF, mas também para o julgamento de agentes públicos torturadores e, consequentemente, para o cumprimento mais efetivo dos direitos humanos no Brasil.
“É preciso enxergar criticamente o momento anistiador de 1979. É extremamente discutível defender que a expressão ‘anistia ampla, geral e irrestrita’ corresponde a uma ‘anistia de mão dupla’: pelo contrário, ela se destinava a promover uma anistia ainda maior para opositores políticos, não para os agentes públicos”, afirma Emilio Meyer.
Tese: Responsabilização por graves violações de direitos humanos na ditadura de 1964-1985: a necessária superação da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 153/DF pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos
Autor: Emilio Peluso Neder Meyer
Orientador: Marcelo A. Cattoni de Oliveira
Defesa: julho de 2012, no Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG
Por Ewerton Martins Ribeiro, do site da UFMG.