A Copa do Mundo já começou
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- Valéria Nader, da Redação
- 19/06/2013
As manifestações prosseguem em todo o Brasil, agora adquirindo abrangência entre localidades menores, as médias e pequenas, ao lado das grandes capitais.
Como já disse editorial desse Correio, não é mais novidade que tamanha explosão de descontentamento não gire em torno somente do aumento de 20 centavos na tarifa do transporte, como no caso de São Paulo – revogado por Alckmin e Haddad quando se finalizava a revisão deste texto. Saúde, Educação, Repressão e Corrupção são temas que, em menos de duas semanas, entraram cabalmente no campo de enfrentamentos e discussões. Palavras de ordem como ‘Da Copa eu abro mão, quero saúde e também educação’ estão aí como elementos simbólicos que apontam para uma visão ampla da conjuntura e para o enriquecimento da pauta política. Também está aos olhos de todos uma reviravolta nos discursos de autoridades governamentais e nas abordagens da grande imprensa.
O governador que praticamente bradou ‘prenda e arrebente’, diante de uma manifestação massiva, passou a salientar o caráter democrático e pacifista de passeatas e também da polícia militar. O prefeito que apelava para planilhas de custo para ressaltar a impossibilidade de baixar uma das tarifas mais altas do mundo, na cidade com um dos transportes públicos mais sofríveis do país, e que ainda bradava a inviabilidade de negociar com um movimento ‘sem rosto e sem liderança’, passou a falar de possíveis gorduras nas tarifas de transporte, até, enfim, revogar o aumento, na véspera do terceiro ato de massas da mesma semana. E a presidente da República, um dia após as manifestações históricas de 17 de junho de 2013, fez um discurso com belas palavras, recheadas com as reminiscências de um passado de resistência democrática – as quais, no entanto, nem de longe esconderam o tom burocrático, as rugas de preocupação e o ambiente tecnocrático em meio ao qual foram pronunciadas.
Na imprensa, não é menos notória a mudança drástica de abordagem. De baderneiros e vândalos, aqueles que protestam passaram a ser chamados de manifestantes. Nem mesmo a noite mais acirrada, de 18 de junho, quando houve atos de depredação em algumas cidades, como no centro de São Paulo, foi suficiente para açodar o uso de termos acintosos contra os manifestantes. Termos poucos dias atrás utilizados pela mídia comercial, agora assombrada e cautelosa.
Mas não há como se impressionar muito e comemorar esta que parece ser uma mudança de tom ou postura, seja de governantes, seja de sua Armada de Branca Leone, a imprensa. Há, pelo contrário, de se manter postura vigilante e atenta para a leitura de entrelinhas, que agora serão o sinal mais aguçado e evidente das investidas que poderão ser lançadas contra a cidadania, sempre a favor da manipulação de mentes e corações. Neste sentido, as ‘indagações’ lançadas pela imprensa comercial prosseguem sendo aquelas que não se poderiam esperar dispensadas. Não seria este um movimento um tanto difuso? Qual é a sua pauta? Não estaria em jogo um número excessivo de demandas? Onde está a organização, a direção política?
Paulo Baía, cientista político e professor da UFRJ, em entrevista a uma das edições noturnas do jornal televisivo da Globo News, de 18 de junho (uma voz um tanto nova, e dissonante, talvez forçada por uma conjuntura inédita, em meio ao coro único que costuma fazer a grande imprensa, com seus interlocutores de plantão), traz para a análise um eixo que faz profundo sentido em face deste tipo de indagação. Diante do repórter âncora do jornal, que lhe dirigiu justamente pergunta sobre a falta de unidade do movimento, Baía ressaltou os sentimentos profundos que vieram a unificar esta movimentação, que vem adquirindo uma inusitada organicidade e abrangência nacional. A sensação de estar sendo diuturnamente desrespeitado pelo Estado, de não ser ouvido em hipótese alguma por políticos prepotentes e autoritários, corroborou para uma dimensão finalmente profunda, capaz agora de acirrar os ânimos da população, unindo-a nessa percepção e incitando-a à reação.
Está-se, de fato, diante de uma percepção que, notoriamente, saltou de patamar, motivada pelo baixo crescimento econômico, associado a serviços públicos de péssima qualidade e a um repique inflacionário que sacrifica especialmente as classes de baixa renda.
Nesse contexto, não mais bastarão palavras de ordem como aquelas que têm saído agora da boca dos governantes confrontados pela realidade, conforme acima se fez referência. Afinal, o povo não é estúpido, e é ele próprio que vem gritando pelas ruas que ‘acordou’. Como, portanto, acreditar em tão boas intenções nascidas na calada de uma única noite? Boas intenções, ressalte-se, que, conforme salienta Baía, podem ser desmascaradas pela própria e nova estrutura discursiva da fala de prefeitos, governadores e presidente da República, improvisada em meio ao desespero de uma conjuntura exasperante. Trata-se de uma estrutura repleta de um ranço autoritário, que, obviamente, não poderia ser desfeito em um passe de mágica.
Todos, prefeitos, governadores e presidente da República, não apenas fazem afirmações que correm em caminho diametralmente oposto ao que afirmavam até pouquíssimo tempo atrás – cenário por si só inspirador de desconfiança -, como o fazem de modo categórico e imperativo, beirando a soberba. Ainda que estejam sendo cabalmente compungidos ao atendimento de demandas pontuais (como baixar o valor das tarifas), estão bem longe de entender o clamor das ruas. Mesmo que de forma não necessariamente orgânica e consciente, um clamor que requer postura de troca e respeito, que implica em uma reação coletiva de reocupação de um espaço público negado constantemente à cidadania, a partir de uma construção e ocupação privada e autoritária de nossas cidades. Noções que estão bem longe de serem atingidas pelo autismo social, quando não cinismo, das autoridades.
Finalmente, o que estamos assistindo não está ainda ao alcance do pleno entendimento, de governantes, partidos políticos, movimentos sociais e da própria cidadania. Unificação de movimentos, busca de direção política ou novos esquemas de pensamento e ação face à inédita conjuntura que se abre são parte de uma reflexão que deverá ser feita. O registro, no entanto, primordial em um primeiro momento não pode escapar à noção de que se abre um novo tempo, em que o povo brasileiro parece convergir para a busca de seu protagonismo na história.
Vandalismo? Baderna?
Uma última palavra sobre os ataques frontais – e, portanto, mais facilmente discerníveis que as destacadas investidas subliminares – que a mídia grande continua e continuará a fazer aos protestos, especialmente após uma noite mais enfurecida, como a de 18 de junho, em várias das cidades do Brasil.
É bom notar que, à opressão e violência do Estado, contrapôs-se agora uma resposta popular e legítima. Com vitórias que ficarão na memória e não parecem suficientes para arrefecer ímpetos. O momento não é de passividade, que governos de plantão e imprensa corporativa são mestres em associar ao pacifismo, assimilação já feita por boa parte da população. Não há como conviver democraticamente sem movimentações que, obviamente, não vão se manter dentro de limites estritos e previsíveis. “Quem gosta de silêncio prefere ditaduras”, notou Vladimir Safatle na Folha de S. Paulo, de 18 de junho, contra-argumentando aquela que chamou de “concepção bisonha de democracia, que valia na semana passada e compreendia manifestações públicas como atentados contra o ‘direito de ir e vir’”.
E nunca é demais lembrar que os exímios defensores da ordem, aqueles mais propensos a enxergar os ‘jovens baderneiros e arruaceiros’, são, coincidentemente, os mesmos que enviam (continuarão a fazê-lo?) hordas de policiais armados de bala e fuzil para deslocar populações (novos Pinheirinhos andam por aí), que põem a polícia na rua pra dispersar ou espancar manifestantes, que mandam Exército, Polícia Militar e Força Nacional de Segurança pra deter violentamente índios e deslocados pelas barragens.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.