CPI da Dívida Pública (1)
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- Paulo Passarinho
- 27/11/2009
Estive recentemente na Câmara Federal, onde prestei depoimento à CPI da Dívida Pública. O convite à minha participação foi uma iniciativa do deputado Ivan Valente, do PSOL de São Paulo. Na ocasião, também participou da sessão desta importante Comissão Parlamentar de Inquérito o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga.
Foi uma grande oportunidade de expor aos parlamentares a minha visão a respeito do que considero um dos mais graves problemas que temos de enfrentar: o endividamento do Estado brasileiro.
As conseqüências desse problema extrapolam a área econômico-financeira. Deixa seus nefastos efeitos no conjunto das demais políticas públicas, não somente em termos de restrições orçamentárias, mas nas próprias opções de conteúdo político dos governos.
O problema da dívida é complexo e se diversifica em múltiplas dimensões, desde a histórica dependência do país a interesses externos, até o plano das restrições fiscais às despesas de municípios, passando inclusive por diversos aspectos da ordem legal vigente.
Contudo, em função do tempo disponível a cada convidado que participa da CPI, optei por abordar especificamente o endividamento em títulos do governo federal, o problema da chamada evolução da dívida mobiliária federal, particularmente entre os anos de 1995 e 2009.
A escolha desse período não foi gratuita. Além de trazer o problema para os dias de hoje, esse é o período que se inicia a partir da plena efetivação do Plano Real, plano econômico apontado como exitoso e responsável por ter reduzido com sucesso as altas taxas de inflação no país.
Há, entretanto, uma conta oculta, e gravíssima, por trás desse aparente êxito. Em dezembro de 1994, a dívida em títulos do governo federal era de R$ 59,4 bilhões. Hoje, essa dívida já ultrapassa a cifra astronômica de R$ 1,8 trilhão.
Os anos que se seguiram, até 1998, foram o período de auge do referido plano. As taxas mensais de inflação foram drasticamente reduzidas, e o governo de então acelerou as privatizações, com o objetivo declarado de "pagar a dívida" e liberar o Estado para investimentos necessários nas áreas sociais e na infra-estrutura do país. Porém, ao final de 1998, a dívida em títulos já havia alcançado a cifra de R$ 343,82 bilhões, um crescimento nominal de 479%. Como proporção do PIB, a dívida, que em dezembro de 1995 correspondia a 12%, já superava o percentual de 35%.
Muitos lembram, inclusive parlamentares membros da CPI, que este aumento espantoso da dívida se deu por conta de o governo federal ter assumido alguns "esqueletos" à época – nome que era dado para dívidas existentes no setor público, mas em geral não contabilizadas a contento. De fato, este dado não foi por mim desprezado. Recordei aos parlamentares que a mais importante dessas dívidas, oriunda do endividamento de estados e municípios, foi objeto de negociações que implicaram federalizar as mesmas, restando a esses entes federativos o ônus, até hoje muito pesado, do pagamento de parte de suas receitas fiscais ao governo federal.
Porém, citei que o governador de São Paulo nesse período, Mário Covas, sempre afirmava que o governo federal não havia feito nada mais do que a sua obrigação. O falecido ex-governador destacava que desde o primeiro dia do seu mandato, em 1995, jamais havia "gastado mais do que arrecadava", uma máxima da lógica financista, além de ter dado início às privatizações em seu estado. Mesmo assim, ao final de dois anos do seu mandato, a dívida do Estado de São Paulo havia simplesmente triplicado.
A razão para tanto era a taxa de juros praticada pelo Banco Central, que incidia sobre o endividamento e a rolagem dessas dívidas de estado e também de municípios, independentemente da vontade de seus governantes.
E por que as taxas de juros eram tão elevadas? Conforme os leitores devem se recordar, o Plano Real se baseava na chamada âncora cambial, com uma paridade entre o dólar e a nova moeda, na proporção de um para um. Para que o governo garantisse essa taxa de câmbio, e evitasse a volatilidade da nova moeda, era necessário dispor de reservas internacionais em volume suficiente para bancar esse objetivo. As altas taxas de juros, desse modo, assim como as próprias privatizações, cumpriam essa funcionalidade de atrair recursos externos para o país e fortalecer as nossas reservas cambiais.
O Plano Real se constituiu em um esquema de integração do Brasil ao circuito financeiro internacional. Para que esse esquema desse certo foi necessária a desmontagem dos mecanismos vigentes de restrição à livre movimentação de capitais no país. Este foi um trabalho que se iniciou no âmbito do Banco Central do Brasil, em 1988, muito antes, portanto, do próprio lançamento do Real, porém coincidindo com o início explícito da captura dessa instituição estatal brasileira pelos interesses do sistema financeiro, a partir da nomeação de Maílson da Nóbrega para o ministério da Fazenda, na gestão presidencial de José Sarney.
Este fato foi por mim lembrado aos membros da CPI da Dívida Pública, pois, de acordo com as procuradoras Valquíria Nunes e Raquel Branquinho, esse processo de alteração das regras para o capital estrangeiro no país foi totalmente irregular. Essas procuradoras ofereceram à Justiça Federal, em setembro de 2003, uma acusação formal por crime de improbidade administrativa contra ex-dirigentes do Banco Central, do Banco do Brasil e de outras instituições financeiras. Na ótica das mesmas, as alterações, que continuaram e continuam a ocorrer, foram na verdade ilegais, pois não cabe ao Banco Central legislar em torno dessa matéria, sendo que essa atribuição é de responsabilidade do Congresso. Sugeri, assim, que a CPI convoque essas procuradoras, para que elas possam expor aos parlamentares esse lado da história.
Mas, como sabemos, já em 1998 o Plano Real naufragou e o esquema da âncora cambial foi abandonado no início de 1999. Adotamos, por força de um acordo com o FMI, o chamado câmbio flutuante, introduzimos as metas de inflação - para a orientação da política monetária -, e passamos a ter de cumprir metas de superávit primário fiscal.
Destaquei aos parlamentares que esse curioso conceito de resultado fiscal exclui a contabilização do pagamento de juros, principal despesa pública nesses tempos de domínio financista. Lembrei, também, que, no período entre 1995 e 1998, apenas em 1997 tivemos um pequeno déficit primário (de 0,25% do PIB) e que esse esforço de nada adiantava para a redução da dívida pública.
De fato, entre 1999 e 2002 a dívida em títulos continuou a sua trajetória ascendente, atingindo a soma de R$ 687,43 bilhões, em dezembro de 2002, equivalendo a 46,5% do PIB.
A administração da dívida, a partir de 2001, teve forte influência no cenário das eleições de 2002. Manifestei essa minha opinião aos integrantes da CPI. A direção do Banco Central, sob o pretexto de enfrentar uma nova crise, elevou as taxas de juros, dolarizou boa parte da dívida (em setembro de 2002, os títulos públicos com correção cambial representavam quase 38% do total de títulos negociados) e principalmente encurtou os prazos de vencimento dos mesmos. Foi uma gestão temerária, mas surtiu os seus efeitos. Foi armada uma verdadeira bomba-relógio a explodir no colo do próximo presidente da República. Todos os candidatos assumiram os termos da negociação que FHC fez com o FMI, em função de um novo acordo com a instituição, e o candidato eleito, Lula, se rendeu por completo à lógica financeira.
Armínio Fraga, ao responder aos parlamentares, admitiu que de fato teria sido obrigado a assim agir – era ele mesmo o presidente do Banco Central à época – por uma singela explicação: o mercado simplesmente não aceitava rolar a dívida naquele momento, pois desconfiava das posições que Lula e o seu partido sempre defenderam. Segundo ele, não poderia haver outro caminho a escolher, fora daquilo que foi feito.
Fiquei cá pensando com os meus botões: como podemos ter autoridades monetárias e um banco central tão débeis e sem instrumentos mais efetivos de defesa de nossa moeda, de nossa economia, e da nossa própria soberania?
Vou aqui encerrar esse artigo. Não quero abusar da paciência dos leitores, com tantas informações, e deformações, da nossa história recente. Mas voltarei à parte conclusiva desse depoimento que prestei à CPI.
Caso haja interesse, no endereço http://www2.camara.gov.br/internet/comissoes/temporarias53/cpi/cpidivi/ é possível assistir aos depoimentos, na íntegra, prestados nessa sessão da CPI da Dívida Pública, ocorrida em 18 de novembro último.
Paulo Passarinho, economista, é presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.
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Comentários
Um pouco de ficção.
Imaginemos a seguinte situação: o Pafúncio tem uma empresa que está devendo R$ 48 mil. Então, ele contrata uma equipe de gerentes para gerir a empresa com o intuito de saneá-la e de reduzir essa dívida. O Pafúncio entrega a empresa nas mãos dos ditos gerentes.
Passados oito anos e meio, o Pafúncio se dá conta de que os gerentes, além de aumentarem a dívida em mais de 14 vezes, para R$ 685 mil, ainda venderam, a preço de banana (podre), quase 70% do patrimônio dele.
O que o Pafúncio deveria fazer?
Ficar agradecido a esses gerentes?
Deixar por isso mesmo?
Impetrar um processo judicial contra eles?
Pois, agora transportemos a historinha acima à realidade:
- multipliquemos os valores em questão por R$ 1 milhão;
- vamos dar aos gerentes os nomes de FHC e os de seus ministros;
- substituamos o Pafúncio por nós todos, o povo brasileiro, umas 180 milhões de almas;
- vamos dar à empresa o nome de Brasil;
Isto mesmo, nós estamos retratando o que aconteceu no Brasil desde que o Sr. FHC implantou o Plano Real e passou a ser o manda-chuva em nosso país.
Um caso clássico de "excelência gerencial" tucana.
A história, como ela aconteceu:
Ao ser lançado o Plano Real, em julho de 1994, a dívida interna brasileira era de R$ 48 bilhões.
Uma vez presidente, a partir de janeiro de 1995, FHC passou a afirmar que os recursos arrecadados com as privatizações seriam investidos na saúde e educação públicas. Porém, essa suposta vontade de investir no social não foi muito longe e, pouco tempo depois, FHC mudava o discurso: os recursos seriam destinados à amortização da dívida pública. E FHC descambou a privatizar (doar) o patrimônio pertencente ao povo brasileiro - sem perguntar a esse povo se poderia fazer isso, é preciso dizer. Resultado: quase 70% desse patrimônio foram entregues para a engorda dos lucros da iniciativa privada - leia-se grandes empresários.
Pois bem. Quando FHC passava a presidência ao Lula, em janeiro de 2003, essa mesma dívida já somava R$ 685 bilhões. Ou seja, o doutor em sociologia e sua equipe de mestres e doutores em economia e administração, conseguiram uma proeza: venderam quase 70% do que pertence aos brasileiros e, mesmo assim, pasmem, multiplicaram a dívida interna por 14.
A "excelência gerencial" tucana em estado puro.
Na verdade, eu entendo assim: eles fizeram um acordo tácito com o povo. Pela parte visível do acordo, eles nos garantiriam índices extremamente baixos de inflação. Em contrapartida, na parte não visível, teríamos que aceitar a privatização (doação) de grande parte (em torno de 70%) do patrimônio a nós pertencente, além de um aumento desmesurado no desemprego e do corte de direitos dos trabalhadores, entre outras “bondades” do plano.
Então, a propaganda avassaladora que se seguiu após o lançamento do plano inebriou os brasileiros, que, em sua grande maioria, passaram a acreditar que FHC era “o cara”. Estava aberto o caminho para que a plataforma neoliberal vencesse facilmente a eleição de 1994 e retomasse o trabalho de destruição da estrutura público-estatal construída durante décadas, principalmente com o advento da Era Vargas. Collor dera uma acelerada nessa destruição, iniciada por Sarney anos antes, mas não conseguira dar seqüência a esse “trabalho” pelas razões que todos conhecemos.
O pior, meu caro Paulo, é constatar que quinze anos se passaram e a grande maioria do povo não se deu conta do grande engodo a que foi submetido. No ano que vem, há a possibilidade de que o projeto implementado por FHC com o Plano Real volte ao poder. Se vencedor, o Sr José Serra (ou seria Aécio Neves?) vai retomar o bom trabalho prestado por FHC ao grande capital nacional e estrangeiro.
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