O governo Lula e os intelectuais
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- Paulo Passarinho
- 25/02/2010
Há um enorme esforço de intelectuais que se situam à esquerda – e que apóiam o PT e o governo Lula – para justificar, explicar e defender as opções adotadas a partir de 2002 pelos atuais mandatários do governo federal.
Há alegações de vários tipos. Ganhar um governo não significa chegar ao poder; maioria eleitoral não deve se confundir com hegemonia política; há uma correlação de forças desfavorável a mudanças, pois a hegemonia é conservadora; ao ser eleito, Lula não dispunha do apoio da maioria do Congresso; a maior parte dos governadores eleitos em 2002 era de direita... São algumas das razões apresentadas para se dar respaldo e apoio às decisões que vêm sendo tomadas pelo governo do PT e de seus aliados.
É fato que um processo político que tenha como objetivo a transformação de estruturas políticas, econômicas ou sociais requer base política, capacidade de formulação de diagnósticos e proposições, quadros dirigentes aptos, além de firmeza política e ideológica para enfrentar as naturais resistências e dificuldades, conflitos que inevitavelmente irão surgir.
As propostas que foram sendo amadurecidas no Partido dos Trabalhadores, desde os anos 1980, absorviam com clareza – de maneira formal, ao menos por parte de sua maioria – a necessidade de uma dita estratégia democrático-popular, cujo maior objetivo seria a efetivação de reformas na estrutura do capitalismo brasileiro. Essa estratégia não tinha como objetivo a efetivação de um programa de natureza socialista, mas a criação, dentro do sistema capitalista brasileiro, de um arcabouço jurídico-institucional e de um modelo econômico voltados para o fortalecimento do mundo do trabalho.
Esta proposição ganhou maior relevância e emergência a partir das importantes, e dramáticas, contra-reformas iniciadas no governo Collor e aprofundadas e consolidadas no governo de FHC. Abertura financeira do país; privatizações de empresas estatais e de serviços públicos essenciais, através de pesadas intervenções na ordem legal e de aportes financeiros do próprio Estado e de fundos de pensão de empresas controladas pela União; esvaziamento das funções de planejamento do Estado e flexibilização dos mecanismos regulatórios sobre a atividade econômica; enfraquecimento da dimensão universal das políticas sociais – apesar das obrigações constitucionais do Estado – e a consagração de uma estratégia de focalização dessas políticas são exemplos das mudanças que procuraram sepultar algumas características de um modelo chamado de desenvolvimentista, e que havia se iniciado no país desde os anos 1930.
É importante destacar que esse modelo, que nos embalou até os anos 1980, possuía concepções bastante diferenciadas, da direita à esquerda, e onde o papel a ser conferido ao capital estrangeiro, por exemplo, diferenciava-se de acordo com cada corrente política, assim como a visão de Estado que deveríamos construir.
O choque político representado pelo golpe civil-militar de 1964 é conseqüência direta dessas visões diferenciadas, conflitantes e antagônicas, que conviviam e disputavam a direção do modelo desenvolvimentista.
Quando FHC, em determinado momento de seus dois governos, afirma que "a era Vargas está sepultada", o que ele indicava era que um novo arcabouço jurídico-institucional e um novo modelo econômico encontrava-se implantado, embora algumas mudanças precisassem ainda ser aprofundadas. É o caso, por exemplo, da legislação trabalhista.
A posição do PT e de seus aliados, naquela conjuntura dos anos 1990, foi extremamente importante. Não para barrar o furor reformista liberal, mas para resistir, denunciar e apontar que a resposta mais adequada ao país, e aos seus trabalhadores, à crise do modelo desenvolvimentista não era a alternativa neoliberal. A alternativa seria justamente o modelo democrático-popular.
A impossibilidade de se barrarem as mudanças em curso no governo FHC estava relacionada a algumas conquistas que haviam sido conseguidas, ainda no governo Itamar. O lançamento do Plano Real, com a redução expressiva do quadro inflacionário que marcava a economia até então, permitiu a primeira eleição de FHC, ao mesmo tempo em que houve uma aliança significativa de amplos setores para a aprovação de uma agenda de reformas de caráter liberalizante.
Contudo, o modelo liberal-periférico que se consolida no primeiro governo de FHC entra em profunda crise, já a partir de 1998, em meio a um quadro de grande instabilidade internacional, especialmente a partir da crise que afeta um conjunto de países da Ásia e a Rússia.
O segundo governo de FHC já se inicia sob o signo da instabilidade e das exigências do FMI de arrocho fiscal e maior controle do Banco Central na gestão econômico-financeira do país. A conseqüência política desse processo foi o início de um profundo desgaste do bloco de forças que sustentava o governo e que culminou com a derrota do candidato governista de 2002, José Serra, para o candidato das forças de oposição, justamente Lula.
Neste momento, contudo, os antigos comandantes da oposição ao neoliberalismo já não mais se colocam como adversários do modelo exigido pelo FMI e assumido por FHC.
Em um quadro de instabilidade financeira, aguçada por uma gestão extremamente temerária da direção do Banco Central na administração da dívida pública, e em nome de uma concepção equivocada de pragmatismo, Lula e seus aliados aceitam os novos termos de um novo acordo com o FMI e, uma vez no governo, tornam-se mais realistas do que o próprio rei: adotam um arrocho fiscal mais duro do que o acertado com o FMI e praticado por FHC; elevam as taxas de juros; prosseguem as mudanças constitucionais na área previdenciária; aprofundam a abertura financeira do país e dinamizam a desnacionalização do parque produtivo do país.
Ao mesmo tempo, nenhuma das mudanças jurídico-institucionais implementadas por FHC foi questionada ou alterada. O processo de privatização de algumas empresas, como é o caso da Vale do Rio Doce, eivado de irregularidades, continuou a ser defendido pela Advocacia Geral da União, agora sob o comando de Lula, e não de FHC.
Sequer o suspeito acordo dos acionistas que compõem o bloco controlador da empresa foi alterado. Apesar de a maioria das ações desse bloco pertencer a capitais estatais e para-estatais (BNDESPAR, fundos de pensão e subsidiárias do Banco do Brasil), a direção da empresa continua sob comando do Bradesco.
Na área do setor elétrico, onde uma verdadeira lambança foi feita pelos tucanos, nada se fez para alterar esse quadro de forma substantiva e, assim, continuamos a pagar uma das mais altas tarifas de energia elétrica do mundo.
E os serviços públicos voltados à população continuam em acelerado processo de degradação, conseqüência direta do fato de mais de 30% do Orçamento Público da União ser direcionado para o pagamento de despesas financeiras, fomentadas por uma política monetária elogiada por todos os liberais e banqueiros, além do próprio Lula, é claro.
Entretanto, conjunturalmente, tivemos uma melhoria nas nossas contas externas, provocada pela explosão da demanda chinesa e asiática por produtos agrícolas e minerais, itens de peso relativo cada vez maior em nossa pauta de exportações. Este fato nos propiciou taxas de crescimento econômico maiores do que no governo anterior, além dos programas de transferência de renda aos miseráveis terem sido contemplados com maiores recursos financeiros.
Podemos concluir, desse modo, que o governo Lula cumpriu de algum modo o que na campanha de 2002 era a promessa de José Serra: "um governo de continuidade, sem continuísmo".
Há um inegável apoio popular ao governo. Particularmente, para os setores miseráveis e pobres, houve uma mudança importante em relação ao que esses setores sofreram durante especialmente o segundo mandato do governo FHC.
Mas, aqui retorno ao ponto inicial deste artigo. E o papel dos ditos intelectuais de esquerda, apoiadores de Lula e seus aliados? Continuarão a cumprir a função de apoiar um governo e correntes políticas que deram sobrevida ao modelo liberal-periférico, no momento em que ele agonizava? Continuarão a entender que houve uma mudança na rota do modelo econômico, confundindo os efeitos da mesma com a essência de uma política que continua ditada por bancos e transnacionais?
Ou irão preferir o silêncio, contrastante com a ebulição e conflitos que animam vários dos nossos vizinhos da América do Sul?
Paulo Passarinho é economista e membro do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.
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Comentários
minhas divergências em relação a seu artigo - não falo, obviamente, das concordâncias -
são táticas, como assinalei no comentário anterior.
Lutar por reformas democráticas é o oposto de se adequar a "reformas na estrutura do capitalismo brasileiro".
Lutamos por reformas, pelo próprio objetivo democrático das reformas, único meio das classes populares se fortalecerem e abrirem caminho rumo ao socialismo.
Como diz nossa Rosa de Luxemburgo, reformas democráticas autênticas só se conseguem se lutarmos de maneira revolucionária, isto é, com objetivos parciais bem definidos, mobilizadores do povo, capazes de enfrentar a constante sanha antidemocrática do capitalismo.
Igualmente o artigo me desagradou por não diferençar a oposição de direita e o governo Lula, avaliação causadora de problemas políticos e, particularmente, eleitorais, à tática da esquerda revolucionária e socialista.
Se considero o governo Lula um governo do grande capital (embora não seja o governo que o grande capital desejaria), não o defendo com "unhas e dentes" (o que é óbvio quando caracterizo sua natureza de classe), mas acho muito acertado e necessário defendê-lo dos ataques da oposição de direita (PSDB-DEM-mídia conservadora), e que nos aliemos às bases populares do lulismo justamente para enfrentar com eficácia, no plano político, nossos inimigos centrais, o imperialismo e o grande capital brasileiro.
Abraços,
Antônio
quando lembro que o programa democrático-popular defendia reformas dentro do capitalismo, apenas quero frisar que a idéia do antigo PT não era taticamente implementar um programa de natureza socialista.
Minha intenção foi a de rejeitar liminarmente a idéia de que quem contesta o governo Lula não passa de esquerdista ou qualquer coisa semelhante.
Haveria, assim, propostas que - sem desrespeitar a correlação de forças - poderiam ser totalmente diferentes do que foi feito a partir de 2002.
Constatar essa questão, por outro lado, não significa que dentro de um novo quadro jurídico-institucional e um novo modelo econômico - e sem temor ou vergonha de lembrar que estaríamos ainda nos marcos do capitalismo - deveríamos manter a mesma tática, ou passar a defender o capitalismo.
Por que você chega a essa conclusão?
Não sei, assim, de onde você tirou que a minha visão de reformas é não contestadora ou \"não oposta aos interesses do capitalismo\".
Não vejo também nenhuma contraposição entre a tática por reformas e a perspectiva do socialismo. Apenas, acacianamente, admito serem coisas distintas.
Na luta por reformas, poderemos ter forças que serão aliadas na luta estratégica, mas teremos também outros segmentos que estarão contrários a essa visão.
Caberia aos socialistas, aos comunistas, aos anarquistas, aos anti-capitalistas, enfim, as tarefas pertinentes a cada uma dessas diferentes correntes, para melhor poderem aproveitar uma nova conjuntura política que abrir-se-ia. Pelo menos é isso o que imagino. Por isso apontei que o objetivo tático do programa democrático-popular seria o fortalecimento do mundo do trabalho...(obviamente, contra o mundo do capital, Antonio!).
E um processo dessa natureza - que no Brasil seria riquíssimo, com muitos conflitos e rupturas - não significaria o \"fim da história\", não é mesmo?
Por que você me acusa de querer parar por aí?
Sinceramente, ou bem você não entendeu o que eu escrevi, ou infelizmente você quer apenas tentar demarcar posições de uma forma precipitada e pouco refletida.
Não sei, sinceramente, a razão desse artigo ter lhe contrariado. Ao menos, é lógico, você sendo - ou se considerando - um combativo comunista, ao mesmo tempo em que defenda, com unhas e dentes, o governo Lula.
Atenciosamente,
Paulo Passarinho
PS: capitalista - ou \"o grande capital\" - não sonha: atua de acordo com seus interesses, e de acordo com as circunstâncias. Por mais que o José Agripino, o Artur Virgílio, ou o William Waak berrem (a direita partidária e ideológica), o Roberto Setúbal, o Blairo Maggi, o Roger Agnelli, ou o Emilio Odebrecht (a direita orgânica) estão é com o Lula. Se isso lhe desagrada...paciência...devem ser os caprichos da luta de classes.
Porem pensar que a politica adotada pelo Lula e progressista e um grande engano :Significado um desastre em nivel ambiental , maior submicao ao capital internacional e reciclagem da depedencia aos Estados Unidos.
Nos anos 70 enquanto o "desenvolvimento " economico era feito de maneira a beneficiar as transnacionais e nos afirmar como uma nacao de periferia ;ganhavamos a Copa e dizia-se que seriamos uma potencia .Exatamente como agora .Ah nao !tambem teremos olimpidas .
"As propostas que foram sendo amadurecidas no Partido dos Trabalhadores, desde os anos 1980, absorviam com clareza – de maneira formal, ao menos por parte de sua maioria – a necessidade de uma dita estratégia democrático-popular, cujo maior objetivo seria a efetivação de reformas na estrutura do capitalismo brasileiro. Essa estratégia não tinha como objetivo a efetivação de um programa de natureza socialista, mas a criação, dentro do sistema capitalista brasileiro, de um arcabouço jurídico-institucional e de um modelo econômico voltados para o fortalecimento do mundo do trabalho."
Defender o programa democrático-popular não tem como "maior objetivo... a efetivação de reformas na estrutura do capitalismo brasileiro". O programa democrático-popular luta por reformas democráticas e populares às quais o capitalismo brasileiro se opõe, a luta democrática e popular se confronta em cada uma dessas reformas com a oposição tenaz capitalista.
A luta por reformas é a forma concreta da encarniçada luta de classes na sociedade capitalista, ainda mais num capitalismo reacionário e tardio como o brasileiro. Só por meio da luta por um programa democrático-popular, apoiado na luta das massas populares, se combate o capitalismo e se abre o caminho para as transformações estratégicas que todos queremos, a luta pela destruição do capitalismo e a conquista do socialismo.
Ver a luta por reformas como não contestadora e não oposta aos interesses do capitalismo, esse o horizonte de Passarinho, além de errôneo, leva à completa esterilidade política.
Contrapor a indispensável e imprescindível luta tática por reformas a "um programa de natureza socialista" é não compreender nem a luta democrática nem a luta socialista. Se estrategicamente defendemos o socialismo, só poderemos conquistá-lo pelo caminho da luta popular por reformas democráticas, precisamos acumular quantitativamente na luta democrática para o salto qualitatativo, a ruptura com o capitalismo e a conquista de um novo modo de produção, de uma nova sociedade, socialista.
A luta imediata pelo socialismo não está na ordem do dia. Um programa socialista imediato não enfrentaria as tarefas imediatas da luta de classes, na verdade fugiria à luta de classes, facilitaria completamente a vida da burguesia e do imperialismo, nos reduziria a meras seitas sem outro horizonte que o sectário, tornaria completamente impossível o caminho rumo ao socialismo.
O erro de fundo de Passarinho está aí, do qual derivam os outros, como o de considerar idêntico, no essencial, o governo Lula ao de FHC. Se o governo Lula é um governo do grande capital, está longe de ser o governo dos sonhos do grande capital, como era o governo FHC. Discutir isso, também imprescindível, já é, no entanto, outro capítulo da mesma história, o do estabelecimento da tática classista, democrática e popular, rumo ao socialismo.
O que eu faço para colaborar com minha pátria neste ano eleitoral? Continuo votando nos candidatos do PT, contra o PT ou o senhor oferece uma terceira via superior a tudo o que existe e que nós, os manobrados, não conhecemos.
Forte abraço,
Picasso.
Mas como fazer isto se foi assinada a carta ao povo brasileiro se comprometendo a manter os compromissos assumidos.
Seria, no mínimo, levianddade do presidente Lula. Mas ele honrou os compromissos, ortodoxou a economia encontrada, dando credibilidade e respeito internacional ao país, pois não assumia o governo uma esquerda irresponsável.
Muito ainda tem que ser conquistgado, respeitando a instituição existente, ou rompendo-a subrepticiamente.
A vida se faz a cada dia e se ficaramos no passado, não nos permitindo atualizar, corremos o risco de voltar à idade da pedra.
O materialismo histórico e seu instrumento de análises o materialismo dialético, além de concepções francamente progressistas de muitos que comungam de Fé religiosa, têm me mostrado, que dificilmente surgirá algo tão inusitado e novo, que superará a dolorosa e difícil caminhada dos Povos, através de suas próprias experi^encias históricas.
Na história moderna republicana não há uma só experiência de aliança de classes antagônicas, que tenha produzido benefícios reais ao Povo Pobre e aos Trabalhadores.
Muito ao contrário. Aliança com JK, a experiência chilena que desemboca agora na direita, o pacto de Moncloa na Espanha, entre outras, apenas nos mostram a desarticulação as classes exploradas, e aumento da exploração.
Que os cientistas políticos da adesão me contestem.
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