A Polêmica Fiscal
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- Paulo Passarinho
- 07/11/2013
Já abordei neste espaço de opinião a curiosa e elucidativa posição dos candidatos à nova etapa de gerência do Brasil colônia, que estará em disputa eleitoral no ano que vem.
Trata-se na verdade de uma ironia. Brasil colônia é apenas uma forma de mostrar o destino que está reservado ao país, de acordo com as posições defendidas por uma elite econômica e política carcomida, desvinculada de qualquer projeto de natureza popular e de defesa da nossa soberania.
Dentre os candidatos à gerência do país – outra ironia, afinal presidente é o cargo máximo de países republicanos e independentes – Dilma Rousseff, a atual gerente, pleiteará a sua reeleição. Nesta condição, ela sofre pesada crítica dos demais possíveis candidatos. Para esses, a atual gerente estaria sendo leniente, frágil, na defesa do tripé macroeconômico dos juros altos, câmbio flutuante e superávit primário.
A crítica ganhou maior força a partir dos resultados fiscais do último mês de setembro. Os números do Banco Central registraram, pelo segundo mês consecutivo, um déficit primário nas contas do governo federal. Este resultado compromete a própria meta do governo para o superávit primário neste ano de 2013, de 2,3% do PIB, para todo o setor público, o que inclui também as contas de estados, municípios e estatais. Até o mês de setembro, o superávit primário de todo o setor público atingiu 1,28% do PIB, distante, portanto, da meta almejada.
Mas, afinal, qual a importância desse debate? Em que medida esse resultado compromete a economia do país?
Primeiramente, há de se destacar que, se a referência maior de aferição de uma boa gestão econômica for a nossa Constituição e os deveres do Estado com a cidadania, nossa economia vai de mal a pior. Afinal, se, por exemplo, cotejarmos as responsabilidades do Estado no cumprimento do capítulo referente aos direitos sociais com o que de fato é efetivado verificaremos uma lacuna gigantesca entre o que se determina na chamada Carta Magna e o que é realizado.
Além disso, são evidentes os problemas de infraestrutura logística do país e a falta de investimentos em áreas vitais ao bem-estar da população, como são os casos dos transportes públicos, da habitação popular, do saneamento ou da segurança pública.
Entretanto, a relevância desse debate se relaciona à sustentação do modelo econômico que em linhas gerais se desenvolve no país, desde os anos 1990. Desde então, e a partir do objetivo de “se acabar com a inflação”, temos convivido com taxas reais de juros muito elevadas e um custo do dólar bastante reduzido. Por essa razão, o real, quando lançado – em julho de 1994 –, prometia manter uma paridade com a moeda norte-americana de um para um: um real deveria corresponder a um dólar.
Foi um truque e tanto. Com o dólar barato e com a redução dos impostos sobre os produtos importados, a demanda interna do país por bens passou cada vez mais a ter uma contribuição decisiva, pelo lado da oferta, por produtos finais ou por peças e componentes estrangeiros, com custos muito competitivos, que passavam a ser montados em fábricas instaladas por aqui mesmo.
É lógico que esse truque tem o seu preço e suas condições para poder ser realizado. A condição essencial é o país dispor de dólares suficientes para garantir essa dita paridade entre o real e o dólar. Juros reais elevados é uma maneira de atrair dólares para o país, especialmente se o nível da remuneração financeira oferecida for muito maior do que em qualquer outra parte do mundo.
Outra forma de se atraírem dólares é a oferta de negócios, de empresas lucrativas, sob ótimas condições de financiamento e com a garantia de mercados cativos. O papel das privatizações de empresas estatais, na era FHC, também obedeceu, portanto, a essas condições para sustentar o truque do “fim da inflação”. A privatização de empresas estatais, de concessionárias de serviços públicos - de empresas distribuidoras de energia elétrica até a área das telecomunicações - ou a venda de ações da Petrobrás na Bolsa de Nova York obedecia a essa funcionalidade do novo modelo de economia que se gestava e que exigia um colchão em dólares, para a garantia de sua sobrevivência. Um preço altíssimo ao país, que nesse processo perdeu instrumentos importantes de atuação do Estado, como foram os casos da Cia. Vale do Rio Doce, da Embratel, da Eletropaulo, entre outras empresas.
Mas esse custo também se refletiu na esfera social. O desemprego produzido significava a contrapartida de um modelo que – a pretexto de se combater a inflação – optava cada vez mais em contar com a entrada de produtos finais ou produção estrangeira para a garantia de taxas de inflação reduzidas.
Mesmo com todos esses artifícios dos primeiros tempos de vigor do Plano Real, em 1998 o país quebrou, com a falta de dólares para dar prosseguimento ao modelo, de interesse e inspiração especialmente dos bancos e das multinacionais. Foi quando o Brasil e seu governo foram bater às portas do FMI, em busca de mais dólares, através de linhas de financiamento especiais.
Foi nesse momento que, como exigência do FMI, abandonamos o regime de câmbio fixo, atrelado ao dólar. Passamos, assim, a adotar o chamado regime de câmbio flutuante, mas dentro de uma perspectiva de manter o real sobrevalorizado em relação ao dólar, como forma de garantir a competitividade dos importados em relação aos produtos de fabricação nacional, estratégia essencial do truque do “fim da inflação”.
No plano da política monetária, traduzida pelas elevadas taxas reais de juros, o modelo foi sofisticado, com a adoção das chamadas metas de inflação e, no plano da política fiscal, a novidade foi a exigência do FMI para a adoção das metas de superávit primário, agora, como vemos, objeto de muita polêmica entre o governo e a oposição de direita.
A ideia das metas de superávit primário é garantir um mínimo de recursos orçamentários do Estado que necessariamente venha a ser utilizado para o pagamento de apenas uma parte do pesado custo financeiro que o modelo econômico impõe ao país. É uma garantia, na verdade, de continuidade do esquema de funcionamento da economia que garante grandes vantagens aos rentistas e a todos os entes econômicos com acesso ao mercado financeiro internacional, especialmente as empresas multinacionais.
Formalmente, o objetivo do superávit primário – que é o resultado da receita fiscal do Estado, descontada todas as despesas não financeiras – é permitir que tenhamos uma redução do peso da dívida do Estado em relação ao PIB do país. Porém, este é um objetivo meramente formal. Desde janeiro de 1999, quando passamos a cumprir esta exigência, o peso da dívida em títulos do governo saltou de algo equivalente a 35% do PIB (R$ 343 bilhões, dado de dezembro de 1998) para, atualmente, mais de 60% do PIB (mais de R$ 2,5 trilhões).
Ora! Se anualmente não estamos gastando mais do que arrecadamos, tendo cumprido, entre os anos de 2003 e 2008, metas elevadíssimas de superávits primários, sempre superiores a 3% do PIB, como foi possível que a dívida em títulos do governo federal se elevasse dessa maneira?
A razão deste verdadeiro descalabro é a forma com que a dívida pública é administrada, com base em elevadas taxas reais de juros, o verdadeiro bezerro de ouro dos setores que, apostando de forma segura nas aplicações em títulos públicos, se beneficiam do lucrativo negócio.
O prejuízo desta história vai recaindo, como sempre, sobre o povo. Sob o mantra do “rigor fiscal”, hoje quase a metade do orçamento da União é consumido no pagamento de juros e amortizações. Ao mesmo tempo, os defensores do modelo – dentro ou fora do governo – preferem atribuir as dificuldades fiscais do governo às despesas previdenciárias, às despesas de pessoal ou ao custo do seguro-desemprego e do abono salarial, custeados pelo FAT – o Fundo de Amparo ao Trabalhador, conforme a última desculpa apresentada pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega.
Considerações sobre os custos financeiros da União, nem pensar...Parece que, de fato, o culpado deve ser sempre o mordomo.
Paulo Passarinho é economista e apresentador do programa de rádio Faixa Livre.
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