Correio da Cidadania

Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (4)

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6. Saddam Hussein massacrou os comunistas iraquianos, por isto, ele era anticomunista.

 

Como visto acima, os governos pós-revolução de 1958 eram esquerdistas, o que explica o fato de os comunistas agrupados no Partido Comunista Iraquiano (PCI) terem participado em inúmeras oportunidades do CCR, órgão executivo máximo do Iraque até a invasão de 2003. Não foi diferente após o golpe de 1968, que levou ao poder Ahmed Hassan al-Bakr, na presidência, e Saddam Hussein, como secretário-geral do Ba’ath, chefe do CCR e o homem forte de facto do Iraque, com a participação do PCI como um dos partidos membros do CCR. Como medida mais audaciosa, Saddam Hussein, em direto desafio ao Ocidente, anunciou a nacionalização do petróleo, 15 anos após o golpe que derrubou o primeiro-ministro iraniano Mohammed Mossadegh. Assim sendo, o Iraque assinaria um Tratado de Amizade e Cooperação com a URSS, em 1972.

 

Toda a política social, econômica, diplomática e, inclusive, a repressiva de segurança interna adotada no Iraque sob a liderança de Saddam Hussein, a partir de 1968, nos leva a concluir que o país mesopotâmico era quase um membro não oficial do bloco soviético. Estas políticas esquerdistas, inclusivistas e igualitárias do Ba’ath foram combatidas ferozmente pelo partido iraquiano al-Da’wah, formado por religiosos iranianos patrocinados pelo Irã (sob os regimes do e de Khomeini), que incitavam a deposição do Ba’ath e o separatismo em favor de Teerã.

 

Somente após a paz momentânea com o Irã, em 1975, aliviando a pressão externa, e com a alta dos preços do petróleo, Saddam se afastou da URSS procurando verdadeiramente uma política de não alinhamento, buscando as melhores oportunidades para o desenvolvimento do Iraque (de modo análogo como havia procedido o marechal Tito da Iugoslávia e, em menor grau, Nicolau Ceaucescu da Romênia). Certamente, este distanciamento com os soviéticos, sem jamais romper os acordos firmados, provocou conflitos entre o Ba’ath e o PCI. Não há dúvidas de que a participação do PCI no CCR era controlada pelo Ba’ath por meio de coerção e repressão. Em 1977, o PCI rompeu com o CCR e passou para a clandestinidade.

 

O distanciamento com a URSS e a ruptura com o PCI não representaram em hipótese alguma o abandono da construção do Estado de bem-estar social iraquiano, pelo contrário, marcou justamente o aprofundamento deste projeto, que, em 1979, atingiria seu ápice, a ponto de o Ba’ath convocar eleições e a formação de um parlamento. A esta altura, o partido nacionalista já havia empreendido a reforma agrária, transformando por completo as condições sociais dos camponeses, promovendo a educação pública e universal, além de ter criado um sistema de previdência social para as classes trabalhadoras urbanas e os pobres.

 

Por fim, os governos nacionalistas empreenderam um programa de investimento e de desenvolvimento industrial, de tal modo que o Iraque foi, ao longo da década de 1980, uma das nações mais desenvolvidas do Terceiro Mundo, superando o Brasil, o mais industrializado do Terceiro Mundo. Por este motivo, classificar o governo de Saddam Hussein, assim como dos demais presidentes iraquianos, como anticomunista, pelo único motivo de ter rompido com o PCI, é uma visão rasa da História do Iraque e não condiz com a natureza dos governos pós-Revolução de 1958.

 

Em 1980, porém, teve início a guerra Irã-Iraque. Embora o Irã estivesse no curso de uma revolução que libertou o país do domínio dos EUA, a tomada gradual do poder por Khomeini deixaria claro o caráter conservador, direitista e sectário da República Islâmica. Assim sendo, grande parte dos esquerdistas iranianos, como o grupo islâmico-marxista Mujaheddin al-Kalq, buscara refúgio no Iraque de Saddam Hussein, fugindo da feroz repressão anticomunista do regime islâmico. O próprio governo do Ba’ath buscaria uma reaproximação com o PCI ao longo da Guerra, sem muito sucesso.

 

Saddam Hussein e demais lideranças do Ba’ath anteriores a ele, assim como o governo do general Kassem, não podem ser reduzidos à visão estereotipada pela mídia ocidental e de vários movimentos ditos esquerdistas de que eram aventureiros demagogos, sanguinários ditadores ou gangsteres que saqueavam as riquezas do país. Eles estavam verdadeiramente comprometidos com o programa nacionalista, socialista e desenvolvimentista do Ba’ath e, naquele momento, entre os anos 1960 e 1980, os únicos modelos de desenvolvimento social e nacional nãoliberais existentes eram os do bloco socialista do Leste Europeu, sendo, por isto, imitados pelos governos de Kassem até Saddam. A riqueza do petróleo e a proximidade com o modelo soviético tornaram ao Ba’ath aceitável a tentação do governo unipartidário. E foi do Leste Europeu que o Ba’ath encontrou o modelo para a formação do Estado policial, que foi aceito sem maiores questionamentos em decorrência, principalmente, da permanente e real ameaça que Irã, Israel e os curdos iraquianos representavam para a integridade territorial do Iraque.

 

Em 2003, a cúpula do PCI apoiaria a invasão anglo-americana, enquanto grande parte de seus militantes aderiam à resistência aos invasores. Com a destruição do Iraque, o PCI participaria, ao lado do bloco “sunita”, das “eleições” parlamentares, em moldes sectários, impostas pelos EUA aos iraquianos, em 2005. Assim, a cúpula do PCI tentou anular o longo histórico de luta dos comunistas iraquianos contra o imperialismo anglo-saxão associado aos israelenses, curdos e iranianos.

 

Saddam Hussein não era um anticomunista, assim como não foi um vassalo dos EUA no Oriente Médio.

 

7. “Nem Saddam Hussein, nem EUA”


Não há sombra de dúvidas de que a alternativa “nem, nem” é a mais cômoda e, aparentemente, a mais “neutra” possível. Só que em política não existe “neutralidade”. No caso do Iraque, assim como havia acontecido com presidente constitucional e democrático da Iugoslávia Slobodan Milosevic, comprova-se mais uma vez que ser “neutro” é a senha para aceitar o poder do mais forte, no caso, os EUA, e o extermínio do mais fraco.

 

Na teoria pós-moderna (com aceitação cada vez maior na esquerda), que apregoa o relativismo absoluto, não há distinção entre opressor e oprimido, entre agressor e agredido, entre dominantes e dominados, todos os atores no embate político são igualmente responsáveis. Assim sendo, nas relações internacionais, não há hierarquias e nem assimetrias. Desta forma, o relativismo pós-moderno é um atalho para o regresso de dogmas e de obscurantismos ideológicos, que caracterizaram o medievo europeu, como podemos testemunhar as palavras do guru máximo do neoconservadorismo dos EUA (e de Israel também) Thomas L. Friedman, que chega ao ponto de afirmar que o “mundo é plano”.

 

Por isto, ao colocarmos agressor e vítima no mesmo patamar (moral), tendemos a aceitar os mais bárbaros crimes cometidos contra a Humanidade, como atestam os genocídios e limpezas étnicas promovidos pelos EUA e clientes locais na Iugoslávia e no Iraque numa escala sem precedentes. Se o governo de Saddam Hussein foi repressor e sangrento, como afirmam seus opositores, as invasões ianques do Iraque provaram que nada supera a capacidade destrutiva da maior máquina de extermínio já construída pelo Homem, os EUA e suas forças armadas, que ainda contaram com o cooperação de tropas mercenárias.

 

Depois de promoverem um genocídio no Iraque ao longo de 20 anos ininterruptos de ocupação militar, os EUA instilaram deliberadamente os germes de uma guerra civil permanente no país mesopotâmico, ao financiar e armar grupos extremistas sectários (verdadeiros esquadrões da morte), para que pudessem neutralizar a feroz resistência iraquiana à invasão de 2003, como também desestabilizar e derrubar tanto os governos sectário “xiita” iraquiano de Nuri al-Maliki e o da seção síria do partido Ba’ath do presidente Bashar al-Assad, a partir de 2011. Aí estão as raízes do ISIS, que hoje serve como atrator para os ataques dos EUA à Síria e ao Iraque.

 

Com a derrubada e assassinato de Saddam Hussein e a remoção do Ba’ath do poder, entre 2003 e 2006, marcando a destruição do Estado iraquiano, abriu-se o caminho para Israel promover os maiores massacres contra os palestinos desde a invasão israelense do Líbano de 1982, culminando com o Segundo Massacre de Gaza, no verão de 2014, que exterminou mais de 2 mil palestinos. E não podemos deixar de mencionar que a destruição do Iraque em 2003 permitiu aos EUA fomentar a “guerra civil” na Síria, em 2011, que já assassinou mais de 200 mil pessoas.

 

A guerra dos EUA contra a Síria teve início justamente quando Bashar al-Assad, que cooperava com Saddam Hussein no burla do embargo ao Iraque, se recusou a se juntar a George W. Bush no ataque ao país vizinho. Para desestabilizar o regime nacionalista e esquerdista de Damasco, W. Bush autorizou o ataque israelense ao Líbano no verão de 2006, que exterminou cerca de 1200 árabes (palestinos e libaneses), rechaçado pela resistência do Hizbollah.

 

Por este motivo, não podemos, portanto, nos surpreender com a ascensão do grupo terrorista ISIS no Iraque e na Síria, que está promovendo massacres contra as populações locais e a limpeza étnica de “minorias” iraquianas e sírias, servindo, assim, como excelente pretexto para mais um ataque direto dos EUA ao Iraque e ao primeiro bombardeio ianque à Síria desde a pequena guerra aérea travada em 1983, no curso da Guerra “Civil” do Líbano (1975-90).

 

Por fim, a derrubada do governo de Saddam Hussein (a concretização do sonho do aiatolá e líder do Irã Khomeini) é o caminho que os EUA estão abrindo para o cerco e o ataque final ao Irã, demonstrando como o Estado nacionalista e esquerdista iraquiano promovia a estabilidade regional.

 

Considerações finais

 

Saddam Hussein, sem sombra de dúvida alguma, governava de forma autoritária, era de facto um ditador, mas tentar reduzir seu governo apenas aos seus aspectos formais, sem levar em consideração a tremenda pressão geopolítica que uma nação sofria por ousar criar um projeto pluralista e igualitário, chega a ser leviano.

 

O Iraque não está localizado na Patagônia e nem na Escandinávia, era um país que outrora fora o centro irradiador de inúmeros processos civilizatórios, espremido por três potências regionais exclusivistas e sectárias (Irã, Arábia Saudita e Israel) que temiam o crescimento de um Estado com um passado glorioso e com um projeto de futuro inclusivista e igualitário. Os governos militares de Kassem, dos dois irmãos Aref e de Saddam Hussein, estes três últimos sob a bandeira do partido Ba’ath, foram as encarnações deste projeto do povo iraquiano, visando combater o legado de opressão social deixado pelo domínio britânico.

 

Por fim, em referência ao Irã, não podemos incorrer no mesmo erro de avaliação cometido com o governo de Saddam Hussein em afirmar que, dado a longa colaboração do Irã com os EUA (presente até os dias de hoje), Teerã seja um aliado estratégico de Washington D.C. Pelo contrário, a destruição do Iraque (e da Síria, em curso) foi apenas um passo a mais para os EUA atacarem o Irã num futuro não tão longínquo. Ainda que o Irã incentive o sectarismo religioso no Iraque (favorecendo indiretamente os planos dos EUA, Israel e Arábia Saudita), sua existência pura e simples ainda é uma barreira para a imposição total do poder dos EUA sobre o sudoeste asiático.

 

A simples derrubada do regime islâmico que não dê vez a um governo genuinamente comprometido com a luta contra o imperialismo fortaleceria os governos regionais pró-ocidentais, beneficiando o projeto dos EUA de transformar a Ásia e a África à imagem e semelhança de Israel, isto é, criar mini-Estados fundamentados nos ódios étnicos e religiosos, forjados sob fronteiras sangrentas e militar e economicamente dependentes de ajuda externa. Mais ainda, o Irã é um dique que impede o expansionismo militar-territorial israelense sobre o sudoeste asiático e o extermínio e expulsão completa de toda a população palestina de Israel e dos territórios ocupados.

 

Portanto, a República Islâmica do Irã é, a despeito de suas relações obscuras com os EUA, uma força anti-imperialista no sudoeste asiático. É muito provável que o Irã esteja sofrendo ameaças de ataques nucleares dos EUA neste momento.

 

 

Bibliografia


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Leia também:

Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (3)

Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (2)

Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (1)

 

Ramez Philippe Maalouf é historiador e doutorando em Geografia Humana pela USP.


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