2014 e 2015 – A Guerra (dos EUA) aos BRICS
- Detalhes
- Ramez Philippe Maalouf
- 19/12/2014
Desde 1991, ano da queda da União Soviética (URSS), os EUA promovem o estabelecimento de uma ordem mundial liberal totalitária, fazendo lembrar o apogeu do imperialismo liberal dos séculos 19 até a metade do 20. Podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que a ordem liberal imposta mundialmente pelos EUA, vulgarmente chamada de “globalização”, é o primeiro, o verdadeiro e o único regime totalitário conhecido pela humanidade até os dias de hoje (há ainda quem confunda liberalismo com democracia e com liberdade, como se a associação multissecular entre escravismo e liberalismo no Brasil, em Cuba e nos EUA fossem resultados de “ideias fora do lugar”. Omite-se, deliberadamente, que a liberdade e a democracia defendidas pelos liberais são exclusivas da classe/casta racial dos proprietários).
Este totalitarismo liberal se caracteriza pelo fato de que quem está fora desta ordem, ou seja, a nação, o Estado, que ainda se mantém independente do poder dos EUA, é forçado a negociar permanentemente a sua soberania, pois, do contrário, pode sofrer um ataque militar devastador ou um processo de desestabilização política interna. Estas punições estabelecidas despótica e mundialmente pela casta racial/classe da burguesia branca anglo-saxã correspondem à chamada guerra em “duas vias”, propalada pelo jornalista, diplomata e geopolítico israelense Oded Yinon, em célebre artigo sobre a partição em bases étnicas e confessionais dos países do Oriente Médio.
A guerra seria a “via direta”, enquanto que a promoção de desordem interna, “caos”, “guerras civis”, “manifestações populares”, constituiriam a “via indireta”. Irã dos aiatolás, Síria e Iraque, ambos sob os governos do partido nacionalista árabe Ba’ath, a Jammahiryia da Líbia, sob a liderança de Kadafi, e a Iugoslávia, talvez, sejam os exemplos clássicos de países cujas soberanias constituíram-se em sérios desafios à hegemonia mundial dos EUA, na visão da sua casta racial/classe da burguesia branca anglo-saxã, protestante e pós-protestante. Os ianques e seus vassalos regionais não tardaram a sabotar e a destruir tais governos e Estados.
Excetuando a república islâmica persa, que permanece sob cerco militar e econômico ianque, todos os demais foram destruídos (Iraque, Iugoslávia e Líbia), ou parcialmente destruídos, como é o caso da Síria, sob ataque dos EUA desde 2011, cujo governo controla apenas 40% do seu território. Trata-se de uma sanha genocida sem paralelos na história contemporânea e que passa desapercebida da grande maioria das pessoas em decorrência da censura imposta pela mídia ocidental, pela academia e até mesmo pela grande parte dos partidos ditos de esquerda, submersos em empedernido eurocentrismo.
Na África, certamente, este ativismo genocida e “estatocida” promovido pelos EUA, desde 1990, resultou na devastação dos países do sahel subsaariano, que permanece até os dias de hoje abrindo caminho para os maiores genocídios conhecidos nos últimos 25 anos: o de Ruanda, com mais de 1 milhão de ruandeses exterminados, em 1994, e o da República Democrática do Congo, com mais de 7 milhões de congoleses exterminados entre 1997 e 2007. Para a mídia ocidental, academia e certos partidos “progressistas”, basta criar novas nomenclaturas - assim, estes países africanos atacados pelos EUA são “Estados falidos e patifes” e os genocídios e epidemias decorrentes das guerras promovidas pelos vassalos locais de Washington D.C. são reduzidos à mera “crise humanitária”.
Destruição da Ucrânia
Este imperialismo liberal anglo-saxão, genocida e totalitário encontrou uma barreira no verão de 2013: o veto russo ao ataque direto dos EUA à Síria. A resposta ianque não tardou, explicitando a geoestratégia brzezinskiana de encurralar a Rússia na Ásia, por meio da desestabilização/destruição da Ucrânia (a “ponte” que une a Europa à Rússia), sob o pretexto da não assinatura do acordo de livre comércio pelo então presidente ucraniano Victor Yanukovich com a União Europeia (U.E.), no final de 2013. Por meio de manifestações populares manipuladas e patrocinadas pelos EUA, Yanukovich foi deposto através de uma invasão militar ianque que resultou no golpe de Estado em fevereiro de 2014. Esta invasão ianque consistiu no envio de centenas de “assessores” do FBI e da CIA, respectivamente, a polícia federal, cuja jurisdição é tradicionalmente restrita ao território estadunidense, e seu serviço de espionagem.
Os ianques não tiveram dificuldades para angariar serviçais internos, todos tradicionais clientes da verba da CIA destinada a movimentos desestabilizadores: movimento gay, nazistas, feministas, liberais e a Igreja greco-melquita local. Com a invasão ianque e o golpe de Estado, o líder russo Vladimir Putin entendeu que Barack Obama rompia com a antiga cooperação russo-ianque estabelecida a partir do fim da União Soviética. Esta ruptura se traduziu no início de uma campanha militar de perseguição à população russo-ucraniana, que afetou as demais etnias e comunidades religiosas ucranianas; deu-se início a uma verdadeira limpeza étnica na Ucrânia. Os russo-ucranianos buscaram o apoio de Moscou e declararam a independência da Crimeia, que logo pediria a unificação com a Federação Russa. O ataque ianque à Ucrânia tinha por objetivo geoestratégico principal romper os laços russos com a Europa, encurralando-os na Ásia, e, se possível, se apoderando da base naval russa de Sebastopol, na Crimeia.
A rápida ação russa de reconhecer a independência da Crimeia e a decisão dela de se incorporar à Rússia fizeram os EUA recrudescerem a ofensiva sobre a Ucrânia, dando início a uma “guerra civil”, por meio das tropas do governo nazista-liberal imposto pela Casa Branca em Kiev, pois a população russa do leste ucraniano, no vale de Donbass, promoveu um levante militar, apoiado timidamente por Putin. Pois não se tratava de uma rebelião contra um governo tirânico e um exército de mercenários invasores; os rebeldes russos também traziam a chama não apagada da Revolução Comunista de 1917 e deram início à estatização dos serviços essenciais, tais como transportes, educação, saúde e financeiro. A destruição da Ucrânia, cuja fronteira dista apenas 550 km da capital russa, deixou claro que Washington D.C. trava uma guerra contra a Rússia.
Esta declaração de guerra dos EUA desnorteou as elites russas, forjadas nas décadas de liberalismo econômico dos governos de Bóris Yeltsin (1991-99) e do próprio Vladimir Putin (1999-2008 e 2012 até o presente), que se associaram aos interesses financeiros da elite anglo-saxã, mantendo suas fortunas na Inglaterra e investimentos no Ocidente. Uma vez expulsa do Ocidente, ao qual acreditava pertencer ou estar associada, a Rússia buscou novas parcerias, não refeita do previsível golpe imposto pelos EUA. A saída para os russos foi, sem dúvida, os BRICS, o grupo político de cooperação formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, considerados como os grandes “mercados emergentes” do século 21 pelos analistas financeiros do Ocidente.
BRICS, o novo alvo
No dia de 15 de julho de 2014, durante a Copa do Mundo do Brasil, ocorreu a Sexta Cúpula dos BRICS em Fortaleza, na qual os países-membros assinaram a formação de um Novo Banco de Desenvolvimento, cujo objetivo é financiar obras de infraestrutura e desenvolvimento em países pobres e subdesenvolvidos, além de substituir o dólar do comércio bilateral.
Como resposta ao desafio imposto pelos BRICS à sua ordem totalitária-liberal, os EUA deram continuidade à sua guerra em escala mundial pela “via indireta”. Assim sendo, fomentaram, através de verba de US$ 500 milhões aprovada pelo Congresso dos EUA para os mercenários que combatem o governo de Bashar al-Assad, a ascensão do “Estado Islâmico” (EI) no Iraque e na Síria, em junho de 2014, pelo desgaste interno provocado por anos de “guerras civis” nestes dois países que formavam o núcleo duro do nacionalismo árabe. O EI, assim como todos os grupos armados inimigos do governo do Ba’ath na Síria, é formado por mercenários recrutados por países europeus e árabes vassalos de Washington D.C. As novas invasões da Síria e do Iraque pelos EUA, por intermédio do EI, abriram caminho para Israel promover o maior massacre de palestinos desde a invasão israelense do Líbano de 1982: o ataque à Faixa de Gaza, no verão de 2014, que exterminou mais de 2 mil palestinos. Por outro lado, os atentados terroristas no noroeste da China e no Cáucaso russo não cessaram em momento algum.
As guerras no Paquistão e no Afeganistão, por sua vez, continuam, assim como a tensão permanente na península coreana e no Mar da China, atendendo à geoestratégia do “caos”, a “via indireta”, da agenda imperial ianque contra China e até mesmo contra a Índia.
A proliferação de conflitos em escala mundial, por “via indireta”, pelos EUA não deixou de alcançar a América do Sul. Como é o caso da Venezuela, cujo governo reformista nacionalista bolivariano enfrentou uma onda golpista iniciada ainda em 2013, após a vitória eleitoral do discípulo de Hugo Chávez, Nicolás Maduro. Na realidade, tal onda ainda não cessou e leva a economia do país a uma profunda crise.
No Brasil, o descontentamento popular com o descaso nos serviços públicos, especialmente de transportes, culminou em manifestações que tomaram conta do país em 2013, porém, rapidamente, estas manifestações passaram a ser dirigidas para a desestabilização do governo liberal do Partido dos Trabalhadores (PT) e ganharam um cunho conservador, preparando o caminho para a guinada extremista de direita da campanha eleitoral de 2014, após a morte misteriosa de um dos concorrentes, em que dois candidatos ultraliberais de oposição ao PT não escondiam o desejo de romperem com os BRICS e o Mercosul e aderirem aos acordos de “parceria” com os EUA e com a União Europeia.
Desestabilização ou guerras
Coincidentemente, a guinada ultradireitista das manifestações de 2013 e da campanha presidencial de 2014, com fortes suspeitas de fraudes eleitorais, ocorreu simultaneamente à nomeação de Liliana Ayalde como embaixadora dos EUA no Brasil, após ter servido no Paraguai no mesmo cargo, no qual se destacou pelas atividades golpistas junto a parlamentares paraguaios. Como se sabe, o então presidente paraguaio Fernando Lugo foi deposto por um golpe parlamentar travestido de impeachment, em processo que durou apenas 24 horas.
Certamente a agenda golpista no Brasil, camuflada de “combate à corrupção” e promovida pelos EUA, não é para corrigir os rumos da política econômica neoliberal adotada pelo PT, aprofundada após a reeleição de Dilma Rousseff, mas, sim, para minar os BRICS, do qual o Brasil faz parte, e ter o controle do pré-sal por meio da “neutralização” da Petrobrás. Toda esta campanha golpista e a guinada eleitoral ultradireitista se traduziram na redução do eleitorado progressista no Brasil, de quase 7% em 2006, quando partidos de esquerda formaram uma coalizão, para menos de 2% em 2014, onde os partidos de esquerda se recusaram a se unir.
Outro fator grave que pode ter contribuído para esta queda do eleitorado progressista é a adesão dos partidos de esquerda a um discurso e um programa que mais refletem a realidade de países desenvolvidos do que a de um país com graves problemas políticos, sociais e econômicos. Assim, temas como defesa nacional, economia, educação, saúde pública e política externa foram solenemente esquecidos pelos “progressistas” no debate eleitoral, dando vez às questões de gênero e o consumo de drogas. É de se surpreender que, no momento em que os EUA apertam o cerco militar aos países dos BRICS, a esquerda brasileira nada tenha a dizer sobre defesa nacional.
A guerra que os EUA declararam à humanidade pode se desdobrar em uma guerra nuclear, tamanha é a agressividade das elites ianques contra a Rússia e a China, países-chaves do poder mundial, e se desdobra na guerra aos BRICS. O cenário internacional para 2015 é o pior possível. Em decorrência do embargo ocidental imposto à Rússia, a economia russa já está em crise, reduzindo a capacidade de responder às provocações crescentes dos EUA, tais como o envio de armas para países europeus vizinhos da Rússia, os ataques à Síria, o cerco ao Irã e a criação de um Estado racial curdo no Iraque, vassalo de Washington D.C.
Os ianques provocam os chineses por meio do cerco imposto ao Mar da China, do rearmamento do Japão e das hostilidades à Coreia do Norte. A possibilidade de que um erro de cálculo dos EUA possa levar a uma III Guerra Mundial, aberta e nuclear, é grande. O papa Francisco foi o primeiro chefe de Estado a admitir que o mundo já vive em uma guerra fragmentada. Ainda que Rússia e China tenham se aproximado, resultando em inúmeros acordos e projetos de infraestrutura em comum, ainda não há uma aliança militar entre os dois países. Muito menos se cogita transformar os BRICS numa aliança militar para que possa se contrapor à aliança atlantista liderada pelos EUA.
Desta forma, em 2015, a redução da capacidade de atuação internacional da Rússia, que sofre uma crise econômica em virtude do embargo econômico imposto ao país, assim como a recessão à vista no Brasil, em decorrência da política ultraliberal do PT, pode levar os EUA a aumentarem a pressão em 2015 contra os BRICS, recrudescendo os conflitos em escala mundial. Mesmo o recente estabelecimento de relações entre Washington D.C. e Havana fortalece o sentimento de providência divina para a casta racial/classe burguesa branca e anglo-saxã, pois ela entende como sinal de fraqueza os Estados que aceitam cooperar e negociar com os EUA.
Assim, não existe distensão na ordem internacional imposta por esta elite, por isto é uma ordem totalitária-liberal. Os poderes nucleares de Rússia e China não se constituem em forças dissuasórias, pelo simples fato de que ambos cooperam em maior ou em menor grau. Para esta elite, só a força bruta e uma vontade de poder irredutível podem fazê-la se render.
Ramez Philippe Maalouf é mestre e doutorando em Geografia Humana pela USP.