Correio da Cidadania

O Ocidente contra a Síria: segundo round

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Guerra da Síria: não é de agora

 

A recusa do mundo árabe em combater militarmente a ocupação militar israelense de territórios árabes, iniciada com a destruição da Palestina em 1947, é a principal causa interna da destruição dos países árabes. Israel foi fundado em nome do exclusivismo comunitário numa região marcada desde os primórdios da civilização pelo entrelaçamento de povos e de comunidades religiosas. A vitória do projeto exclusivista israelense e a consequente desestabilização permanente do mundo árabe abriram caminho para as sucessivas invasões estrangeiras (Suez, 1956; Líbano, 1982; Sudão, 1998; Iraque, 1980, 1991 e 2003), como a que se configura agora na Síria, a ser perpetrada mais uma vez pelos EUA.

 

A guerra da Síria não está sendo iniciada agora, e muito menos teve começo em 2011 – na verdade, já estava sendo preparada desde o ataque anglo-americano-australiano ao Iraque, em 2003, que exterminou mais de 1 milhão de iraquianos. A grande invasão israelense do Líbano em 2006, patrocinada pelos EUA, já era um ensaio para um ataque à Síria, segundo documentos revelados recentemente pelo site Wikileaks. As grandes manifestações em março de 2011 deram a oportunidade para se colocar em prática o plano de derrubada do regime do Ba’ath (de viés laico nacionalista-desenvolvimetista pan-arabista), no poder desde 1963 e liderado por Bashar al-Assad e seu clã, desde 1971.

 

Grupos oposicionistas patrocinados pelos EUA

 

Em 2011, teve o aparecimento no exterior de grupos oposicionistas ao regime, patrocinados pelos EUA, grandes potências européias, Turquia e as petromonarquias, o Conselho Nacional Sírio (CNS), que englobava desde dissidentes do regime como Abdel Khalim Khaddam, vice-presidente da Síria entre 1984 e 2005, até a Irmandade Muçulmana, proscrita pelo regime. Esta oposição rapidamente se transfigurou em grupos armados, dando origem ao Exército Livre da Síria (ELS), cujos integrantes eram indivíduos recrutados tanto dentro da Síria quanto de outros países árabes e não árabes do mundo muçulmano, cujo apoio restrito popular lhe permitiu conquistar vários territórios, até mesmo em grandes cidades como Alepo e Homs. O ELS é armado e treinado pelas potências ocidentais e aliados regionais (especialmente Catar e Turquia), além de ser financiado pelo Tesouro Nacional dos EUA. A ação militar deste grupo armado tem como base a ação dos contrarrevolucionários nicaraguenses em sua luta contra o regime sandinista, sob a liderança de Daniel Ortega, na década de 1980.

 

Aos poucos, o ELS se converteu de facto num braço armado da seção síria da Irmandade Muçulmana. Ao ELS se somaram grupos armados salafistas e wahhabitas (patrocinados pela Arábia Saudita e Catar, rivais do Catar e da Turquia), dos quais destacamos a afiliada da al-Qaeda, a Frente al-Nusra. As ações destes grupos não visam apenas combater militarmente o regime do Ba’ath, mas, sim, também promover, além do desmonte do Estado sírio, a desarticulação da sociedade multiconfessional e multiétnica da Síria.

 

Apesar de ser majoritariamente árabe muçulmana sunita, há mais de vinte comunidades religiosas (desde muçulmanos alauítas, cristãos até yaziditas), além de cerca de quinze etnias (desde árabes sírios e palestinos até curdos, armênios, turcos, abecazes e albaneses), que convivem entrelaçados milenarmente. Esta devastação ocorre no plano cultural, como a destruição de igrejas, mosteiros, santuários cristãos, mesquitas não sunitas, museus, bibliotecas, centros culturais e mausoléus, além de prédios das confrarias sufis (versão mística e popular do sunismo). Os ataques dos milicianos também atingem sunitas que se recusam a aceitar o domínio wahhabita-salafista. Quem se recusa, recebe a alcunha de “traidor”.

 

A retomada da ofensiva governamental

 

No começo da guerra, as tropas governamentais, que não pouparam violência, se encontravam desorientadas, oferecendo grande vantagem estratégica aos milicianos, patrocinados pelo Ocidente. Uma grande devastação se abateu sobre o país, destruindo cidades inteiras, até mesmo as mais importantes. A infraestrutura do país foi seriamente comprometida e a economia se apresenta em processo de colapso. A partir do início de 2013, o quadro se reverteu, com a retomada da ofensiva governamental, que recebeu forte apoio da Rússia, Irã e China.

 

O apoio russo se materializou na presença de 100 mil técnicos e militares russos no país e nos vetos a três resoluções da ONU patrocinadas pelos EUA e Europa, cujo objetivo, ao condenar o regime sírio, era abrir caminho para uma intervenção militar direta. Com isto, o governo sírio recuperou grande parte do território sírio e promoveu grandes baixas entre os milicianos. Retomaram-se as rotas estratégicas de abastecimentos dos grupos armados oposicionistas.

 

Apesar de a imprensa ocidental – que se converteu numa agência de propaganda de guerra contra qualquer grupo ou país antiocidental – afirmar que o governo Assad se utiliza de violência indiscriminada contra civis, dados do Observatório Sírio dos Direitos Humanos (patrocinada pelo Catar e o Ocidente) mostram que, dos cerca de 100 mil mortos, a grande maioria das vítimas fatais é de milicianos, paramilitares e militares (61%). Há mais de 2 milhões de refugiados sírios fora do país. Por outro lado, a Síria também abrigava, até o início da guerra, cerca 2 milhões de refugiados iraquianos (da invasão de 2003) e cerca de 400 mil refugiados palestinos, todos vítimas dos ataques dos oposicionistas e até mesmo de tropas do governo.

 

A contra-ofensiva do regime sírio, iniciada no final de 2012, contou com a participação do Hizbollah, grupo político-militar libanês xiita, o que causou inquietação no Líbano, ainda traumatizado pela guerra entre 1975 e 1990. Recentemente, atentados no Líbano (Trípoli e em Beirute) tiveram como alvos bairros alauítas e xiitas, que foram complementados por disparos de foguetes contra Israel, assim como também enfrentamentos de fronteira entre Hizbollah e milicianos sírios e ataques contra o exército libanês, visando a desestabilização do país através de confrontos sectários para abrir caminho para uma invasão estrangeira. Após os disparos de foguetes no sul do Líbano, Israel atacou o sul do país. A fomentação de conflitos no Líbano também tem como objetivo aumentar a tensão na Síria, uma vez que o governo de Damasco estava muito próximo da vitória final sobre os milicianos, pondo fim à guerra no país.

 

A ação ambígua de potências regionais e internacionais e as armas químicas

 

Neste cenário de grave instabilidade, as ações das potências regionais e internacionais se tornam cada vez mais ambíguas e nebulosas, como a recente visita do príncipe Bandar bin-Sultan, chefe do aparato de segurança saudita, ao presidente russo Vladimir Putin em Moscou, visando por fim ao apoio aos separatistas chechenos em troca da derrubada do regime do Ba’ath na Síria. Tendo o mesmo objetivo, a queda Bashar al-Assad, o sultão do Omã (aliado dos EUA e da Arábia Saudita) visitou o Irã, oferecendo o relaxamento dos embargos comerciais impostos ao país pela ONU.

 

É neste momento que surge o “ataque de armas químicas” num subúrbio de Damasco, em agosto de 2013, que matou centenas de pessoas, em situação muito semelhante à que levou à invasão do Iraque, em 2003, cuja alegação foi a eliminação das supostas “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein. Em março, os EUA advertiram a Síria com a “linha vermelha” sobre o uso de armas químicas na guerra. No entanto, em janeiro de 2013, o site Yahoo afirmou que o presidente dos EUA, Barack Obama, autorizaria o uso de armas químicas pelos milicianos oposicionistas para culpar o regime sírio. Com o suposto ataque com armas químicas pelo governo sírio, como acusa Washington, criou-se o pretexto para o Ocidente desencadear um ataque militar direto à Síria.

 

No entanto, há dissidências na frente ocidental. O parlamento britânico vetou a participação do Reino Unido no ataque aos sírios, numa ação inédita nas relações anglo-americanas, pois os britânicos sempre apoiaram os ianques nas suas ações militares abertas e de desestabilização ao redor do planeta nos últimos sessenta anos. O veto inglês inibiu uma iniciativa mais agressiva de Washington contra Damasco. Assim, o presidente Obama pretende obter o apoio do Congresso do seu país. Até o presente momento, somente a França (governada pelo socialista François Hollande) explicitou apoio a uma agressão à Síria. Mas é muito provável que Turquia e Israel tenham papel ativo no ataque militar à Síria.

 

Guerra mundial não declarada contra potências asiáticas

 

Para a extrema-direita dos EUA, a Síria rompeu a “linha vermelha” imposta por Obama. Por este motivo, não atacar a Síria seria considerado uma vitória do eixo Teerã-Moscou-Pequim e uma desmoralização do poder norte-americano no Oriente Médio e no mundo. Face à determinação belicista de Washington, temos as reações tímidas da Rússia e da China, numa situação que se configura numa ameaça direta às suas respectivas soberanias nacionais. Os milicianos que combatem a  Síria podem combater amanhã a Rússia e a China, como são os casos dos chechenos e uigures, que participam do ELS. Além disto, ambos os países estão sofrendo um cerco militar, cujo objetivo final é a rendição ao Ocidente ou a aniquilação. Neste contexto, a campanha contra a Síria é parte de uma guerra mundial não declarada que tem como alvo principal estas duas potências asiáticas, mesmo que a China tenha fortes laços econômicos e financeiros com os EUA. Laços que visam neutralizar o poder chinês.

 

É preciso observar que, embora as declarações dos líderes russos e chineses sejam muito tímidas para a gravidade do fato, circulam pela internet notícias a respeito de supostas retaliações militares russas às forças ocidentais, incluindo um suposto uso de armas nucleares, bem como de um ataque à Arábia Saudita. Seriam tais notícias verdadeiras?

 

No momento, aguardamos o resultado das iniciativas ocidentais, diante da inércia da comunidade internacional, especialmente dos grandes aliados da Síria.

 

Leia também:

Ataque à Síria: o mundo está contra

Obama sabe que se aliou à al-Qaeda?

 

Ramez Philippe Maalouf é historiador e doutorando em Geografia Humana pela USP.

José Ailton Dutra Júnior é historiador e mestrando em História Econômica pela USP

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